Livro - Ousamos esperar que ‘todos os homens se salvem’? de Hans Urs von Balthasar


A obra de Hans Urs von Balthasar, "Ousamos esperar que ‘todos os homens se salvem’?" (1986), representa um marco teológico do século XX, propondo uma visão audaciosa sobre a possibilidade da salvação universal. Ao defender que o cristão tem não apenas o direito, mas quase o dever de esperar que todos se salvem, Balthasar busca reequilibrar a escatologia cristã, enfatizando a primazia do amor divino sobre a justiça retributiva. No entanto, quando examinada sob a luz da teologia tradicional, especificamente através da lente de Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, O.P., e de sua crítica à "nova teologia", a proposta de Balthasar revela tensões profundas que merecem uma análise rigorosa. Este artigo se propõe a examinar a tese de Balthasar à luz dos princípios tomistas defendidos por Garrigou-Lagrange, buscando discernir os limites entre a legítima esperança cristã e os riscos de um subjetivismo teológico.

🕯️ Capítulo 1: Resumo da Obra de Hans Urs von Balthasar

Hans Urs von Balthasar, em sua obra, articula uma teologia da esperança fundamentada na primazia ontológica do amor de Deus. A obra é estruturada em torno de quatro eixos principais: a análise das Escrituras, a tradição da Igreja, o testemunho dos santos e as conclusões teológicas.

Balthasar argumenta que a tradição eclesial, historicamente focada na possibilidade da danação, negligenciou textos bíblicos "universalistas" que sugerem a vontade salvífica universal de Deus (1Tm 2,4; Rm 11,32; 1Cor 15,22-28). Ele sustenta que, embora o juízo divino seja uma realidade inegável, ele não implica necessariamente na condenação de fato. A distinção crucial reside entre a possibilidade real da danação e a probabilidade de sua efetivação. Para Balthasar, o "sim" de Deus à criação, manifestado na Cruz, é ontologicamente superior a qualquer "não" humano, tornando a rejeição final a Deus, embora possível, teologicamente improvável.

A tese central é resumida na fórmula: "Podemos esperar (sperare) a salvação de todos os homens, mas não podemos saber (scire)". Balthasar defende que, dado que a Igreja nunca definiu dogmaticamente que algum ser humano específico (além, talvez, de Judas, cuja condenação não é dogma) esteja no inferno, é lícito esperar que o inferno, embora real como possibilidade, possa estar vazio.

🛑 Capítulo 2: A Crítica Tomista: Esperança ou Presunção?

Ao aplicarmos a lente de Garrigou-Lagrange, a proposta de Balthasar enfrenta objeções fundamentais. A primeira diz respeito à natureza da verdade teológica. Garrigou-Lagrange, em "La nouvelle théologie où va-t-elle?", alerta contra a substituição da verdade objetiva (adaequatio rei et intellectus) por uma verdade subjetiva ou vitalista (adaequatio mentis et vitae). A esperança de Balthasar, ao se basear fortemente em uma interpretação "existencial" do amor divino e em intuições místicas (como as de Adrienne von Speyr), corre o risco de desviar-se da objetividade da Revelação.

Para o tomismo clássico, a esperança é uma virtude teologal que se apoia na promessa divina, mas que não pode contradizer a justiça divina revelada. A Escritura não apenas fala da vontade salvífica universal de Deus, mas também adverte repetidamente sobre a realidade da perdição eterna (Mt 25,41; Mc 9,43). Garrigou-Lagrange argumentaria que transformar a "possibilidade" da condenação em uma improbabilidade estatística, baseada em uma suposta "vitória necessária" do amor, flerta com a presunção e com a negação prática do livre-arbítrio humano, que inclui a capacidade real e terrível de rejeitar a Deus definitivamente.

🛡️ Capítulo 3: O Perigo do Relativismo Dogmático e a Mediação de Maria

A crítica de Garrigou-Lagrange à "nova teologia" também se aplica à hermenêutica de Balthasar. Ao reinterpretar textos bíblicos e a tradição para favorecer uma visão universalista, Balthasar pode estar incorrendo no erro de adaptar o dogma às sensibilidades modernas, um traço característico do movimento que Garrigou-Lagrange combateu.

A mariologia de Garrigou-Lagrange oferece um contraponto teológico robusto. Em sua doutrina sobre Maria como Medianeira de Todas as Graças, ele demonstra como a misericórdia e a justiça divinas se harmonizam. Maria, ao pé da Cruz, coopera na Redenção, mas essa cooperação pressupõe a realidade objetiva do pecado e da necessidade de satisfação. A mediação de Maria é universal na distribuição das graças, mas a recepção dessas graças depende da correspondência livre das almas.

Se Balthasar sugere que o amor de Deus torna a condenação "improvável", a teologia tomista, através da mediação mariana, lembra que a graça é oferecida a todos, mas não imposta. A liberdade humana, ferida pelo pecado, pode resistir a essa graça. A verdadeira esperança cristã, portanto, não reside na expectativa de um inferno vazio, mas na confiança nos méritos infinitos de Cristo e na intercessão de Maria, que tornam a salvação acessível a todos os que não colocam um obstáculo definitivo (o "óbice") à graça.

🏁 Conclusão

A obra de Hans Urs von Balthasar é, sem dúvida, um apelo apaixonado à confiança no amor de Deus. No entanto, à luz da crítica de Réginald Garrigou-Lagrange, ela deve ser lida com cautela. A "teologia da esperança" de Balthasar caminha na tênue linha entre a confiança filial e a reinterpretação subjetivista do dado revelado. A defesa do dogma imutável e a compreensão objetiva da verdade, pilares do pensamento de Garrigou-Lagrange, servem como balizas necessárias para garantir que a esperança cristã permaneça ancorada na realidade da justiça e da misericórdia divinas, sem cair no otimismo ingênuo ou no esquecimento da gravidade da liberdade humana diante do destino eterno.

📚 Referências

Balthasar, Hans Urs von. Ousamos esperar que ‘todos os homens se salvem’?. São Paulo: Paulus, 1989.
Garrigou-Lagrange, O.P., Fr. Réginald. "La nouvelle théologie où va-t-elle?". Angelicum, vol. 23, nº 3-4, 1946, pp. 126-145.
Garrigou-Lagrange, O.P., Fr. Réginald. "On Mary as Mediatrix of All Graces". Capítulo 6 de The Three Ages of the Interior Life, Vol. 1. Baronius Press, 2013.