Livro - O Reinado e a Lei na Idade Média, de Fritz Kern (o rei era antes de tudo um servidor da ordem divina)


Publicado originalmente em 1914 sob o título Gottesgnadentum und Widerstandsrecht im früheren Mittelalter, o livro O Reinado e a Lei na Idade Média é uma obra seminal do historiador alemão Fritz Kern. Nele, o autor examina os fundamentos do poder político na Idade Média, destacando a íntima relação entre autoridade régia e justiça, e revelando que a realeza medieval estava profundamente enraizada em concepções religiosas, jurídicas e morais que hoje costumam ser negligenciadas pelas visões modernas do período. A obra se estrutura em torno de duas grandes ideias complementares: o reinado por graça divina e o direito de resistência.

Essa estrutura dual, analisada por Kern, ecoa a tensão fundamental que, segundo Olavo de Carvalho, define a civilização ocidental: o conflito entre a autoridade espiritual (representada pela Igreja) e o poder temporal (representado pelo Império ou pelos reinos). A obra de Kern, portanto, não descreve apenas uma estrutura política, mas o próprio palco onde se desenrolou a luta entre o que Carvalho denomina "as duas espadas" ou "os dois braços da cruz", uma disputa que moldou a consciência e as instituições do Ocidente (CARVALHO, 1998).

Kern mostra que, na mentalidade medieval, o rei não era apenas um governante terreno, mas antes de tudo um servidor da ordem divina. Sua autoridade derivava de Deus — não de um contrato social ou de uma origem humana ou racionalista — e essa investidura sagrada era simbolicamente expressa por meio de ritos como a unção e a consagração régia. A monarquia era, assim, dotada de um caráter sacral. O rei deveria agir como defensor da justiça, guardião da paz e promotor da ordem cristã.

Este modelo de realeza contrasta de maneira absoluta com a concepção moderna de soberania, que Olavo de Carvalho identifica com a ascensão da "religião de César". Enquanto o rei medieval de Kern é um vigário de Cristo, subordinado a uma ordem que o transcende, o soberano moderno — seja um monarca absolutista como Luís XIV ou um Estado revolucionário — torna-se ele próprio a fonte da ordem, um "deus mortal" que não reconhece autoridade acima de si. A transição que Kern implicitamente descreve é a passagem de uma autoridade legitimada pela submissão ao sagrado para uma autoridade que se autossacraliza, absorvendo para si as prerrogativas antes reservadas a Deus (CARVALHO, 1998, p. 146-148).

Essa concepção impunha deveres religiosos ao monarca: ele devia obedecer à lei divina e garantir o bem comum, sendo seu poder limitado por princípios morais transcendentes. A legitimidade do poder real não era, portanto, absoluta, mas condicionada ao cumprimento de sua missão espiritual e moral. O rei era um mediador entre o céu e a terra, e sua autoridade só era legítima enquanto permanecesse fiel a essa missão.

Aqui, a análise de Kern oferece um contraponto histórico à crítica objetivista da fé como fonte de autoridade. Do ponto de vista do Objetivismo, qualquer autoridade derivada da fé é, por definição, arbitrária, pois não se baseia na razão e na realidade objetiva. No entanto, o que Kern descreve é um sistema onde essa "fé" não era um cheque em branco para o capricho, mas a fonte de um conjunto estrito de deveres que limitavam o poder. O rei não governava porque tinha fé, mas porque se submetia aos deveres que essa fé impunha. Estruturalmente, embora a fonte de legitimidade seja mística (fé) e não racional (razão), o resultado era um governo de leis, não de homens — um ideal que, paradoxalmente, se alinha com o princípio objetivista de que o governo deve ser subordinado a princípios morais objetivos e não ao arbítrio de quem governa.

O segundo grande eixo da análise de Kern diz respeito à concepção medieval de lei, que diferia fundamentalmente da noção moderna. Na Idade Média, a lei era predominantemente consuetudinária: resultava dos usos e costumes históricos do povo, legitimados pelo tempo e pela tradição. Ela não era criada por um legislador soberano de maneira unilateral, mas expressava um senso de justiça comunitária, enraizado em valores coletivos e no direito natural cristão.

Essa distinção é crucial na análise de Carvalho sobre a decadência moderna. Para ele, a modernidade substitui uma concepção de lei como descoberta — um dado objetivo da realidade (seja ela natural ou divina) que a consciência humana apreende — por uma concepção de lei como criação da vontade humana. O positivismo jurídico, que domina o pensamento moderno, é a expressão máxima dessa inversão: a lei não é mais o que é justo, mas o que a autoridade vigente decreta. A lei medieval descrita por Kern, ao contrário, representa um paradigma de realismo jurídico: sua validade provém de sua conformidade com uma ordem preexistente e objetiva, e não do ato de vontade de um legislador (CARVALHO, 1998, p. 174).

O rei, portanto, não era o criador da lei, mas seu guardião. Ele não podia governar conforme sua vontade, pois estava subordinado tanto à lei divina (revelada nas Escrituras e ensinada pela Igreja) quanto à lei consuetudinária. A justiça e a fidelidade ao direito eram elementos essenciais do bom governo. Quando o rei violava a lei ou quebrava juramentos — como o de proteger os fracos, respeitar os costumes e agir com equidade — ele deixava de ser um rei legítimo.

Nesse ponto, o rei medieval se assemelha estruturalmente ao "governo ideal" do Objetivismo, que existe não para criar direitos, mas para proteger os direitos preexistentes do indivíduo, derivados de sua natureza. A função do rei de Kern era análoga: proteger uma ordem de justiça que ele não inventou. A perversão moderna, criticada tanto por Kern (em sua análise histórica) quanto por Carvalho (em sua filosofia política), ocorre quando o Estado deixa de ser o guardião da lei para se tornar seu autor e, consequentemente, o autor dos "direitos" que ele mesmo concede e revoga. O rei medieval, ao jurar fidelidade à lei, reconhecia uma autoridade superior a si; o Estado moderno, ao se declarar a fonte da lei, afirma sua própria soberania absoluta.

A partir disso, Fritz Kern introduz a ideia do Widerstandsrecht, o “direito de resistência”, que, longe de ser uma ideia revolucionária moderna, já tinha raízes profundas no pensamento jurídico e político medieval. Quando o rei se tornava injusto, perjuro ou tirânico — isto é, quando deixava de cumprir os deveres associados à sua dignidade — abria-se, dentro da própria ordem jurídica tradicional, a possibilidade legítima de oposição ao poder.

É fundamental, seguindo a análise de Carvalho sobre as revoluções, distinguir essa forma de resistência da revolução moderna. O Widerstandsrecht não era um ato para destruir a ordem existente e criar uma nova a partir do zero (uma utopia), mas sim um ato para restaurar a ordem tradicional que fora violada pelo governante. A resistência era, em essência, conservadora, pois agia em nome da lei e da tradição contra o arbítrio individual do tirano. A revolução moderna, ao contrário, é a negação de toda ordem preexistente em nome de um ideal abstrato a ser imposto pela força. A primeira defende a realidade da lei contra o poder; a segunda, o poder da ideologia contra a realidade (CARVALHO, 1998, p. 121).

Essa resistência não se dava em nome de uma soberania popular abstrata, mas em defesa da ordem jurídica superior que o rei havia traído. Os responsáveis por essa resistência podiam ser tanto os nobres quanto os conselhos ou as corporações eclesiásticas, dependendo das circunstâncias. Resistir ao tirano era, nesse sentido, um dever moral e religioso, mais do que uma questão política. O direito de resistência era assim um limite natural e jurídico à autoridade real, embasado na moral cristã e na estrutura tradicional da sociedade feudal.

Ao longo de toda a obra, Kern evidencia como a Idade Média concebia o poder político de maneira teocrática e orgânica, e não contratual ou individualista como nas teorias modernas. A autoridade régia era inseparável da religião, da moral e da ordem cósmica cristã. O rei era visto como o primeiro entre os iguais, e seu poder estava intrinsecamente vinculado à justiça, fidelidade, temperança e serviço ao bem comum.

Em contraste com o absolutismo moderno, que separa o poder político da religião e da moral, a Idade Média concebia uma monarquia onde o poder era condicionado, limitado e subordinado a normas superiores. Assim, a obra de Fritz Kern revela uma sociedade medieval dotada de alta complexidade institucional e jurídica, que estabelecia equilíbrios de poder e formas legítimas de controle e oposição.

Essa subordinação do poder a uma esfera transcendente é, para Carvalho, a própria fonte da liberdade ocidental. A tensão permanente entre o poder do rei e a autoridade da Igreja impedia que qualquer um dos dois se tornasse absoluto, criando um "vácuo" de poder onde a consciência individual e as liberdades civis puderam florescer. O absolutismo moderno nasce precisamente quando o Estado, como no caso de Henrique VIII, absorve a função da Igreja, unificando as "duas espadas" numa só mão e eliminando qualquer instância de apelação superior a si mesmo (CARVALHO, 1998, p. 146). A obra de Kern, ao descrever o período anterior a essa fusão, revela a anatomia da liberdade europeia em sua origem.

A importância da obra de Kern reside também em sua crítica às interpretações simplistas da Idade Média como uma era de obscurantismo ou de autoritarismo primitivo. Ao contrário, Kern demonstra que o período medieval elaborou formas sofisticadas de limitação do poder e de integração entre direito, moral e política. Sua análise resgata o valor da tradição, do costume e da religião como fontes legítimas da ordem política — uma visão que, para Kern, se perdeu no racionalismo e no positivismo jurídico modernos.

Nesse sentido, o trabalho de Kern pode ser visto como um ato de "reforma da inteligência", nos termos de Carvalho: uma desconstrução de mitos historiográficos que servem de alicerce para as ideologias modernas. Ao demonstrar que o autoritarismo absolutista não é uma herança medieval, mas uma invenção moderna que se opõe radicalmente à estrutura de poder da Idade Média, Kern realiza uma operação análoga à que Carvalho se propõe em suas obras: a de desmascarar as narrativas falsas sobre as quais se assenta o poder intelectual e político contemporâneo.

Além disso, O Reinado e a Lei na Idade Média antecipa discussões sobre o Estado de direito, a legitimidade moral do poder e o papel das instituições no controle da autoridade. Ao abordar a legitimidade do poder a partir de sua submissão à lei e à justiça, Kern oferece uma reflexão perene sobre o fundamento ético da autoridade e o dever de resistência à injustiça, em qualquer época.

A obra de Fritz Kern é um marco na historiografia política medieval por mostrar que a Idade Média conheceu uma concepção de poder legítimo baseada em lei, justiça e moralidade, muito distante da caricatura de despotismo irracional. Ao afirmar que o poder do rei estava condicionado à lei divina e ao costume, e que era legítimo resistir a um governante injusto, Kern resgata um modelo de autoridade ordenada e limitada que ainda hoje oferece lições profundas para as reflexões sobre política, direito e ética.

Em suma, a análise de Kern fornece o pano de fundo histórico que confirma a tese central de Olavo de Carvalho sobre a tragédia moderna: a substituição de uma ordem política fundada na transcendência por uma ordem baseada na imanência do poder estatal. O rei medieval de Kern, limitado pela Lei de Deus e pelos costumes, é a antítese do "Estado-bedel" moderno, o Leviatã que, tendo devorado a autoridade espiritual, se torna a única fonte de lei, moral e sentido, pavimentando o caminho para o que Carvalho chama de "a religião de César" (CARVALHO, 1998, p. 174). A obra de Kern é, assim, o retrato de uma ordem perdida, cujo desaparecimento é a chave para a compreensão da patologia do poder no mundo contemporâneo.

Referência

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.