Da perspectiva da tradição católica, a narrativa moderna que apresenta a condenação de Galileu Galilei como o "embate definitivo entre a ciência autônoma e o dogma religioso" é não apenas uma simplificação anacrônica, mas uma distorção ideológica que serve aos interesses do modernismo e à mentalidade característica do nosso tempo. Essa visão, propagada por correntes laicistas e progressistas, ignora o contexto teológico, jurídico e científico da época, reduzindo um episódio complexo a um confronto maniqueísta entre "razão iluminada" e "obscurantismo eclesial". Em vez disso, a condenação de 1633 pela Sagrada Congregação do Santo Ofício representou uma defesa legítima da autoridade divinamente instituída da Igreja na interpretação das Sagradas Escrituras, contra uma hipótese científica ainda não comprovada e que ameaçava a unidade da fé. Longe de ser um "erro", foi um ato de prudência pastoral. O verdadeiro equívoco surge apenas no século XX, com o pedido de perdão promovido por João Paulo II, que constitui uma capitulação ao "espírito do século" (Amerio, 2011, p. 32), enfraquecendo a noção de uma autoridade perene e representando um sintoma da "autodemolição" da Igreja pós-conciliar (Amerio, 2011, p. 6).
🔭A Condenação de Galileu: Defesa da Verdade Revelada, não Erro
Para compreender o caso, é essencial retornar aos fatos históricos sem o filtro do historicismo moderno. Em 1616, a Congregação do Índice, sob a autoridade do Papa Paulo V, declarou o heliocentrismo copernicano como "falso e contrário à Sagrada Escritura", proibindo sua defesa como verdade absoluta. Isso não foi uma rejeição arbitrária da ciência, mas uma resposta a uma teoria que, na época, carecia de provas empíricas irrefutáveis – o próprio Galileu não conseguiu demonstrar o movimento da Terra com evidências conclusivas, como as paralaxes estelares, que só viriam séculos depois. A teoria permanecia, portanto, no campo da hipótese matemática, não da certeza física. Mais importante, o heliocentrismo colidia com passagens bíblicas interpretadas literalmente pela tradição patrística e magisterial, como Josué 10:12-13 ("Sol, detém-te em Gabaon"), que sugerem um geocentrismo cosmológico.
Galileu, um católico devoto, foi advertido em 1616 a não ensinar o heliocentrismo como fato, mas como hipótese. No entanto, em 1632, publicou o Diálogo Sobre os Dois Grandes Sistemas do Mundo, onde defendia abertamente a teoria copernicana, ridicularizando opositores e desobedecendo à injunção papal. Isso levou à sua condenação em 1633 por "veemente suspeita de heresia", com sentença de prisão domiciliar perpétua – uma pena branda para os padrões da época, sem tortura física, como mitos modernos alegam. Do ponto de vista tradicional, essa ação da Inquisição não foi um "embate" contra a ciência, mas uma afirmação da primazia da teologia sobre as ciências naturais. Como ensina o Concílio de Trento, a interpretação da Escritura pertence à Igreja, não a indivíduos privados, e a ciência deve se subordinar à Revelação quando há conflito aparente. Galileu, portanto, incorreu no erro de imiscuir-se em matéria teológica, propondo uma hermenêutica bíblica inovadora para a qual não possuía autoridade, prefigurando o princípio de independência que viria a ser a raiz das crises posteriores (Amerio, 2011, p. 22).
Essa perspectiva rejeita a ideia de um "conflito inerente" entre fé e razão. Pelo contrário, a Igreja fomentou a ciência medieval e renascentista. A condenação foi disciplinar, não dogmática infalível, e o geocentrismo nunca foi definido como artigo de fé irrevogável. Assim, chamar isso de "embate definitivo" é uma falsificação histórica que ignora como a Igreja permitiu o estudo hipotético do heliocentrismo após 1616 e removeu obras copernicanas do Índice em 1758.
🔄O Pedido de Perdão de João Paulo II: O Verdadeiro Desvio da Igreja Pós-Conciliar
Se a condenação de 1633 não foi um erro, o verdadeiro desvio surge no contexto do período pós-conciliar, culminando no pedido de perdão articulado por João Paulo II. Em 31 de outubro de 1992, o Papa reconheceu "erros" no processo contra Galileu, admitindo que teólogos da época falharam em distinguir entre a fé e as interpretações científicas mutáveis. Isso foi ampliado em 12 de março de 2000, durante o Grande Jubileu, quando João Paulo II pediu perdão público por "pecados dos filhos da Igreja", incluindo o tratamento dispensado a Galileu.
Da ótica da tradição, esse ato representa um erro mais profundo, influenciado pelo espírito do Concílio Vaticano II, que promoveu uma "abertura ao mundo" que, em muitos casos, se revelou uma "verdadeira invasão do pensamento mundano na Igreja" (Amerio, 2011, p. 9). Primeiramente, ao admitir "erros" onde não houve desvio doutrinal, o pedido enfraquece a autoridade do Magistério histórico, sugerindo que a Igreja pode "errar" em matérias ligadas à fé e à moral, o que contradiz a promessa de perenidade. Esta atitude é um exemplo da "denigração da Igreja histórica" (Amerio, 2011, p. 95), na qual o passado é julgado com a mentalidade do presente para justificar as transformações atuais.
Em segundo lugar, esse pedido promove um relativismo historicista, onde a verdade parece depender da época, negando a perenidade do dogma e da prudência pastoral que o protege. A Igreja parece pedir perdão por ter defendido a fé contra inovações perigosas. Isso reflete a perda da antítese essencial entre a Igreja e o mundo, uma acomodação ao invés de uma oposição sadia às várias circunstâncias históricas (Amerio, 2011, p. 3). Assim, o "embate definitivo" não foi em 1633, mas no século XX, quando a Igreja cedeu à autonomia da ciência secularizada, transformando a fé em algo subjetivo e apologético perante o mundo.
Em resumo, a perspectiva da tradição inverte a narrativa: a condenação de Galileu foi uma defesa da fé contra o erro incipiente, enquanto o pedido de perdão do século XX é o triunfo do espírito moderno, que convida a Igreja a se humilhar perante os ídolos seculares. Isso reforça a necessidade de retornar à doutrina perene, preservando a integridade católica contra as variações do tempo presente.
📚Referências
Amerio, Romano. Iota Unum: Estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida, 2011.
Galilei, Galileo. Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Tradução de Stillman Drake. Berkeley: University of California Press, 1967.
João Paulo II. Homilia no Dia do Perdão, 12 de março de 2000. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2000.
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A Crise da Duplicidade: Análise das últimas contradições na Igreja de Leão XIV
O artigo "Burke’s Trans Nun Amnesia: How a Cardinal Who Approved a Male “Sister” Now Hosts a Conference Warning About Them" (A Amnésia da Freira Trans de Burke: Como um Cardeal que Aprovou uma “Irmã” Masculina Agora Organiza uma Conferência Alertando Sobre Elas), de Chris Jackson, publicado em 14 de agosto de 2025, articula uma crítica contundente à liderança da Igreja Católica contemporânea, apontando para uma série de contradições e hipocrisias. O autor identifica cinco questões centrais: 1) A suposta duplicidade do Cardeal Raymond Burke, que agora alerta contra a ordenação de transexuais, embora no passado tenha aprovado uma congregação co-fundada por um homem que passou por cirurgia de mudança de sexo. 2) A acolhida oficial do Papa Leão XIV ao movimento dissidente "We Are Church", que defende abertamente pautas contrárias à doutrina católica, como a ordenação de mulheres e a agenda LGBTQ+. 3) A inclusão da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) no calendário do Jubileu do Vaticano, ao lado de grupos ativistas LGBT, sugerindo uma estratégia de neutralização em vez de uma restauração da Tradição. 4) A apostasia em massa de católicos (nove em cada dez), que o autor atribui não à falta de comunidade, mas à sistemática demolição da fé sobrenatural, da liturgia sagrada e da moralidade clara no período pós-conciliar. 5) O legado do Papa Francisco, exemplificado por uma "Encíclica das Crianças" focada no ativismo climático, que substitui a catequese e a soteriologia por uma agenda secular de sustentabilidade. A tese central do artigo é que a hierarquia pós-conciliar opera um "jogo duplo", afirmando a doutrina em teoria enquanto a mina na prática, resultando em uma perda de credibilidade e na contínua desintegração da Igreja.
Os fenômenos descritos no artigo de Jackson (2025) não são eventos isolados ou meras falhas pessoais, mas sim sintomas de uma desorientação sistêmica que aflige a Igreja há décadas. A aparente contradição entre o discurso e a prática, a coexistência pacífica da ortodoxia e da heterodoxia sob o mesmo teto institucional, e a substituição das finalidades sobrenaturais por objetivos temporais constituem as manifestações de uma profunda crise de identidade. Trata-se de uma variação que, embora preserve certas nomenclaturas, ataca a própria substância da fé católica.
⚖️A Desistência da Autoridade e a Primazia do Pastoral
O caso do prelado que, em momentos distintos, adota posturas opostas sobre a mesma questão fundamental — a identidade sexual no contexto da vida religiosa — exemplifica um fenômeno mais amplo: a desintegração da autoridade. A verdadeira autoridade eclesiástica não se baseia na arbitrariedade, mas na sua coerência com um corpo de doutrina imutável. Quando a "discrição pastoral" se sobrepõe ao princípio ontológico e teológico, a autoridade cessa de governar e passa a gerir contradições.
Este modo de operar, um "Sim e Não" (Sic et Non) institucionalizado, reflete uma profunda incerteza (Amerio, 2011, p. 125). A decisão de permitir uma anomalia em nome da pastoralidade, para depois condenar a mesma anomalia em teoria, revela uma autoridade que renunciou à sua função de ensinar, corrigir e, quando necessário, excluir o erro. A consequência direta é a paralisia do governo e a perda da clareza, pois a Igreja passa a "golpear a si mesma" através de suas próprias ambiguidades (Amerio, 2011, p. 6).
🤝Diálogo e Ecumenismo como Instrumentos de Neutralização
A recepção de movimentos abertamente dissidentes e a inclusão simultânea de grupos tradicionalistas e ativistas progressistas no mesmo calendário oficial são manifestações de um desvio no conceito de unidade. O ecumenismo pós-conciliar, que originalmente visava a reintegração dos separados na única Igreja de Cristo, transformou-se em um "diálogo" perpétuo onde a verdade não é mais o objetivo final, mas uma das muitas vozes em uma conversação interminável (Amerio, 2011, p. 281-283).
Nesse novo paradigma, a unidade não é mais concebida como uma convergência na verdade, mas como a coexistência em uma "grande tenda" que acomoda teses contraditórias. A inclusão da FSSPX ao lado de ativistas LGBT não representa uma vitória da Tradição, mas sua assimilação em um sistema que neutraliza todas as posições ao tratá-las como equivalentes. A antítese essencial entre a Igreja e o mundo — ou, neste caso, entre a doutrina católica e as ideologias que a negam — é dissolvida. O objetivo deixa de ser a conversão e passa a ser a convivência, um fim político, não religioso (Amerio, 2011, p. 443).
📉A Evaporação do Sobrenatural e a Apostasia Silenciosa
A estatística alarmante da perda de fiéis é a consequência lógica e inevitável de um processo de "dessubstanciação" da fé. A proposta de soluções meramente sociológicas, como "mais vida comunitária" ou "grupos de jovens", revela uma falha em diagnosticar a raiz do problema. As pessoas não abandonam a Igreja por falta de interação social, mas porque a própria Igreja deixou de oferecer aquilo que é sua razão de ser: o acesso ao sobrenatural.
Quando a religião é reduzida a seus efeitos secundários e subordinados — como a promoção da paz, da justiça social ou da consciência ecológica —, ela se torna um "cristianismo secundário" (Amerio, 2011, p. 400). Este cristianismo horizontal, focado no homem e em seus problemas temporais, não pode competir com as inúmeras organizações seculares que executam essas mesmas tarefas com maior eficiência. A degradação do sagrado na liturgia, a dissolução da catequese em pedagogias experienciais e a substituição da soteriologia pela sustentabilidade esvaziam a Igreja de seu conteúdo único e insubstituível. O resultado é a indiferença e o êxodo, pois ninguém sente a necessidade de permanecer em uma instituição que se tornou um pálido reflexo do mundo que deveria converter.
🌀Conclusão: O Jogo Duplo como Sistema
O "jogo duplo" identificado por Jackson (2025) não é uma estratégia consciente, mas o resultado inevitável da crise. É a manifestação de uma mentalidade que perdeu a percepção da incompatibilidade entre o ser e o não-ser. A Igreja contemporânea tenta manter a unidade de regime enquanto permite a perda da unidade de fé e de culto (Amerio, 2011, p. 562-566). A afirmação teórica da doutrina serve como um álibi para a permissividade prática, criando uma ilusão de continuidade enquanto a ruptura avança. Esta duplicidade não é um desvio temporário, mas o próprio modus operandi de uma estrutura que, tendo renunciado à clareza de seus princípios, só pode sobreviver administrando suas próprias contradições internas, até que estas a consumam por completo.
📚Referências
Amerio, Romano. Iota Unum: Estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida, 2011.
Jackson, Chris. Burke’s Trans Nun Amnesia: How a Cardinal Who Approved a Male “Sister” Now Hosts a Conference Warning About Them.
Os fenômenos descritos no artigo de Jackson (2025) não são eventos isolados ou meras falhas pessoais, mas sim sintomas de uma desorientação sistêmica que aflige a Igreja há décadas. A aparente contradição entre o discurso e a prática, a coexistência pacífica da ortodoxia e da heterodoxia sob o mesmo teto institucional, e a substituição das finalidades sobrenaturais por objetivos temporais constituem as manifestações de uma profunda crise de identidade. Trata-se de uma variação que, embora preserve certas nomenclaturas, ataca a própria substância da fé católica.
⚖️A Desistência da Autoridade e a Primazia do Pastoral
O caso do prelado que, em momentos distintos, adota posturas opostas sobre a mesma questão fundamental — a identidade sexual no contexto da vida religiosa — exemplifica um fenômeno mais amplo: a desintegração da autoridade. A verdadeira autoridade eclesiástica não se baseia na arbitrariedade, mas na sua coerência com um corpo de doutrina imutável. Quando a "discrição pastoral" se sobrepõe ao princípio ontológico e teológico, a autoridade cessa de governar e passa a gerir contradições.
Este modo de operar, um "Sim e Não" (Sic et Non) institucionalizado, reflete uma profunda incerteza (Amerio, 2011, p. 125). A decisão de permitir uma anomalia em nome da pastoralidade, para depois condenar a mesma anomalia em teoria, revela uma autoridade que renunciou à sua função de ensinar, corrigir e, quando necessário, excluir o erro. A consequência direta é a paralisia do governo e a perda da clareza, pois a Igreja passa a "golpear a si mesma" através de suas próprias ambiguidades (Amerio, 2011, p. 6).
🤝Diálogo e Ecumenismo como Instrumentos de Neutralização
A recepção de movimentos abertamente dissidentes e a inclusão simultânea de grupos tradicionalistas e ativistas progressistas no mesmo calendário oficial são manifestações de um desvio no conceito de unidade. O ecumenismo pós-conciliar, que originalmente visava a reintegração dos separados na única Igreja de Cristo, transformou-se em um "diálogo" perpétuo onde a verdade não é mais o objetivo final, mas uma das muitas vozes em uma conversação interminável (Amerio, 2011, p. 281-283).
Nesse novo paradigma, a unidade não é mais concebida como uma convergência na verdade, mas como a coexistência em uma "grande tenda" que acomoda teses contraditórias. A inclusão da FSSPX ao lado de ativistas LGBT não representa uma vitória da Tradição, mas sua assimilação em um sistema que neutraliza todas as posições ao tratá-las como equivalentes. A antítese essencial entre a Igreja e o mundo — ou, neste caso, entre a doutrina católica e as ideologias que a negam — é dissolvida. O objetivo deixa de ser a conversão e passa a ser a convivência, um fim político, não religioso (Amerio, 2011, p. 443).
📉A Evaporação do Sobrenatural e a Apostasia Silenciosa
A estatística alarmante da perda de fiéis é a consequência lógica e inevitável de um processo de "dessubstanciação" da fé. A proposta de soluções meramente sociológicas, como "mais vida comunitária" ou "grupos de jovens", revela uma falha em diagnosticar a raiz do problema. As pessoas não abandonam a Igreja por falta de interação social, mas porque a própria Igreja deixou de oferecer aquilo que é sua razão de ser: o acesso ao sobrenatural.
Quando a religião é reduzida a seus efeitos secundários e subordinados — como a promoção da paz, da justiça social ou da consciência ecológica —, ela se torna um "cristianismo secundário" (Amerio, 2011, p. 400). Este cristianismo horizontal, focado no homem e em seus problemas temporais, não pode competir com as inúmeras organizações seculares que executam essas mesmas tarefas com maior eficiência. A degradação do sagrado na liturgia, a dissolução da catequese em pedagogias experienciais e a substituição da soteriologia pela sustentabilidade esvaziam a Igreja de seu conteúdo único e insubstituível. O resultado é a indiferença e o êxodo, pois ninguém sente a necessidade de permanecer em uma instituição que se tornou um pálido reflexo do mundo que deveria converter.
🌀Conclusão: O Jogo Duplo como Sistema
O "jogo duplo" identificado por Jackson (2025) não é uma estratégia consciente, mas o resultado inevitável da crise. É a manifestação de uma mentalidade que perdeu a percepção da incompatibilidade entre o ser e o não-ser. A Igreja contemporânea tenta manter a unidade de regime enquanto permite a perda da unidade de fé e de culto (Amerio, 2011, p. 562-566). A afirmação teórica da doutrina serve como um álibi para a permissividade prática, criando uma ilusão de continuidade enquanto a ruptura avança. Esta duplicidade não é um desvio temporário, mas o próprio modus operandi de uma estrutura que, tendo renunciado à clareza de seus princípios, só pode sobreviver administrando suas próprias contradições internas, até que estas a consumam por completo.
📚Referências
Amerio, Romano. Iota Unum: Estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida, 2011.
Jackson, Chris. Burke’s Trans Nun Amnesia: How a Cardinal Who Approved a Male “Sister” Now Hosts a Conference Warning About Them.
Cardeal Newman: Doutor da Igreja ou Cavalo de Troia na Cidadela Católica? (proclamação por Leão XIV)
A recente notícia da iminente proclamação de John Henry Newman como Doutor da Igreja por Leão XIV causou euforia em muitos círculos católicos, especialmente nos países anglófonos. Contudo, essa aclamação universal deveria dar lugar a uma análise mais sóbria, principalmente entre os que professam fidelidade à Tradição perene da Igreja. Há muito se forma, em torno da figura de Newman, um consenso artificial, forjado por políticas eclesiásticas mais interessadas em reconciliações diplomáticas com o anglicanismo do que em preservar a integridade da doutrina católica. A questão, portanto, não é meramente histórica, mas metafísica: trata-se de discernir se o seu pensamento preserva a distinção fundamental entre a substância imutável do dogma e as suas expressões acidentais, ou se, pelo contrário, abre a porta a uma variação de fundo.
Um teólogo liberal sob vestes católicas
Newman é frequentemente celebrado como um “pai da ortodoxia moderna”, um exemplo de conversão sincera e uma ponte entre fé e razão. No entanto, sua teologia está profundamente marcada por princípios que antecipam o modernismo condenado por São Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907). Não é sem razão que o teólogo dominicano francês Réginald Garrigou-Lagrange, ao analisar os erros do modernismo nascente, cita ideias análogas às defendidas por Newman, sobretudo no que diz respeito à noção de desenvolvimento do dogma.
Na obra An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), Newman sustenta que o dogma pode evoluir de forma análoga ao desenvolvimento das ideias humanas, através de processos históricos e culturais. Isso abre brecha para o relativismo doutrinário, algo totalmente incompatível com o ensinamento tradicional da Igreja, segundo o qual a verdade revelada é imutável e não está sujeita à mutação dos tempos (Dei Filius, Vaticano I). O critério católico para o desenvolvimento do dogma, expresso por São Vicente de Lérins e reafirmado ao longo dos séculos, é que todo progresso ocorra in eodem scilicet dogmate, eodem sensu eademque sententia (no mesmo dogma, com o mesmo sentido e o mesmo juízo) (Amerio, p. 559). A teoria de Newman, contudo, ao propor sete "notas" ou critérios para discernir um desenvolvimento legítimo, desloca o fundamento da certeza da autoridade divina da Igreja para uma análise quase empírica e subjetiva. A verdade deixa de ser um objeto a ser conservado para se tornar um processo a ser verificado.
Esta abordagem arrisca transformar a substância em modalidade, como se a essência do dogma pudesse ser alterada sob o pretexto de uma nova formulação (Amerio, p. 559). O erro consiste em confundir o desenvolvimento orgânico de um princípio com uma mutação que o transforma em outra coisa, ad aliud.
O próprio P. Franzelin, importante teólogo jesuíta e perito do Concílio Vaticano I, já havia criticado duramente o uso que Newman fazia do conceito de “desenvolvimento do dogma”, por considerá-lo perigosamente próximo das teses historicistas.
Silêncios, omissões e ambiguidades
Newman escreveu milhares de páginas, mas raramente se pronunciava com clareza sobre pontos dogmáticos decisivos. Seu estilo é conhecido por sua ambiguidade calculada. Ele mesmo dizia que preferia não definir certas verdades para “não ferir susceptibilidades”. Essa postura é típica dos liberais católicos do século XIX, como Montalembert e Lacordaire, que tentavam conciliar a fé com os ideais da Revolução Francesa. O Papa Pio IX condenou essa tendência na encíclica Quanta Cura e no Syllabus Errorum (1864), ao qual Newman nunca demonstrou adesão explícita. Tal estilo, que evita a clareza em favor da polissemia, tornou-se o método característico da teologia pós-conciliar, na qual a ambiguidade dos textos permite interpretações opostas, destruindo a unidade doutrinal (Amerio, p. 62). A recusa em condenar o erro, preferindo o "remédio da misericórdia", como no discurso de abertura do Vaticano II, encontra um precedente intelectual nesta mentalidade que prefere a persuasão subjetiva à afirmação objetiva da verdade (Amerio, p. 65).
A tentativa de alguns de seus defensores — como o cardeal Avery Dulles — de absolver Newman dessas acusações com base em sua suposta ortodoxia tardia ignora o fato de que o núcleo de seu pensamento sempre permaneceu contaminado por uma epistemologia subjetivista e por uma eclesiologia historicista. Como observado no estudo sobre as transformações na Igreja, a linha que leva de Newman ao Vaticano II não é um desvio, mas um desenvolvimento lógico de sua teologia da consciência e da evolução doutrinária, que forneceram o arcabouço intelectual para justificar as variações pós-conciliares (Amerio, p. 558).
Um cavalo de Troia anglicano?
Não se pode compreender a benevolência da hierarquia católica com relação a Newman sem considerar o contexto de sua conversão. Ao abandonar o anglicanismo, Newman tornou-se uma espécie de troféu católico: uma figura de prestígio cultural que poderia ajudar na “conversão da Inglaterra”. Por isso, muitos de seus erros teológicos foram ignorados ou relativizados em nome de um bem diplomático maior. Aqui se manifesta o erro do cristianismo secundário, que julga a religião por seus efeitos subordinados em ordem à civilização ou ao prestígio mundano, fazendo-os prevalecer sobre os fins sobrenaturais que a caracterizam (Amerio, p. 2, 400). A utilidade ecuménica ou o ganho de reputação cultural são postos acima da pureza e da clareza da doutrina, numa inversão da ordem correta.
O problema é que esse silêncio cúmplice permitiu a entrada de ideias perigosas no interior da teologia católica. O modernismo, que se tornaria a “síntese de todas as heresias” (Pio X), encontrou em Newman não apenas um precursor, mas um modelo de “pensamento evolutivo” sobre os dogmas. Mesmo os teólogos mais prudentes que o defendem, como Ian Ker, admitem que Newman foi "o teólogo do subjetivismo cristão moderno".
A questão Ambrose St. John
Além dos problemas doutrinários, há o aspecto moral e simbólico da relação de Newman com o sacerdote Ambrose St. John, com quem viveu por mais de 30 anos e pediu para ser sepultado no mesmo túmulo. Embora não haja provas de escândalo objetivo, as cartas de Newman a St. John revelam um grau de intimidade afetiva que escandalizou mesmo comentaristas liberais — como no artigo do Guardian de 2008 que falava em "paixão sublimada". A decisão do Vaticano de não transferir seus restos mortais para um túmulo separado durante a beatificação foi, segundo muitos, uma maneira de evitar que essa questão ressurgisse.
A questão não é levantar acusações infundadas, mas reconhecer que a canonização de uma figura com tantos elementos ambíguos deveria ter exigido mais cautela e prudência, especialmente diante da crise moral atual na Igreja. Este episódio, independentemente do juízo moral, é sintomático de um relaxamento das formas e de um obscurecimento das distinções que caracterizavam a disciplina eclesiástica tradicional. A clareza das formas externas é um reflexo da clareza da substância interna; a ambiguidade nelas introduzida é um sintoma da corrupção desta.
Conclusão
A elevação de Newman ao título de Doutor da Igreja, além de pastoralmente inoportuna, representa a canonização de uma certa hermenêutica da ambiguidade. Sua teologia, marcada pelo subjetivismo, pelo evolucionismo doutrinal e por silêncios estratégicos, ajudou a minar a clareza da doutrina católica e preparar o terreno para os desastres do século XX. A crise contemporânea da Igreja consiste precisamente na substituição da verdade objetiva, imutável e transcendente, por um processo subjetivo, histórico e imanente. Em tal processo, Newman figura não como um baluarte contra o erro, mas como o pensador que forneceu as ferramentas intelectuais para a sua justificação. É legítimo perguntar se estamos diante de um verdadeiro mestre da fé ou de um Cavalo de Troia que, sob aparência de ortodoxia, introduziu na Igreja os germes da confusão contemporânea.
Referências
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida. Septiembre 2011.
FRANZELIN, Johannes B. De Divina Traditione et Scriptura. Roma, 1870.
GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Théologie du Saint Esprit. Paris: Gabalda, 1944.
KER, Ian. John Henry Newman: A Biography. Oxford: Oxford University Press, 1988.
PAPA PIO IX. Encíclica Quanta Cura e Syllabus Errorum, 1864.
PAPA SÃO PIO X. Encíclica Pascendi Dominici Gregis, 1907.
PRIMEIRO CONCÍLIO DO VATICANO. Constituição Dogmática Dei Filius, 1870.
Um teólogo liberal sob vestes católicas
Newman é frequentemente celebrado como um “pai da ortodoxia moderna”, um exemplo de conversão sincera e uma ponte entre fé e razão. No entanto, sua teologia está profundamente marcada por princípios que antecipam o modernismo condenado por São Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907). Não é sem razão que o teólogo dominicano francês Réginald Garrigou-Lagrange, ao analisar os erros do modernismo nascente, cita ideias análogas às defendidas por Newman, sobretudo no que diz respeito à noção de desenvolvimento do dogma.
Na obra An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), Newman sustenta que o dogma pode evoluir de forma análoga ao desenvolvimento das ideias humanas, através de processos históricos e culturais. Isso abre brecha para o relativismo doutrinário, algo totalmente incompatível com o ensinamento tradicional da Igreja, segundo o qual a verdade revelada é imutável e não está sujeita à mutação dos tempos (Dei Filius, Vaticano I). O critério católico para o desenvolvimento do dogma, expresso por São Vicente de Lérins e reafirmado ao longo dos séculos, é que todo progresso ocorra in eodem scilicet dogmate, eodem sensu eademque sententia (no mesmo dogma, com o mesmo sentido e o mesmo juízo) (Amerio, p. 559). A teoria de Newman, contudo, ao propor sete "notas" ou critérios para discernir um desenvolvimento legítimo, desloca o fundamento da certeza da autoridade divina da Igreja para uma análise quase empírica e subjetiva. A verdade deixa de ser um objeto a ser conservado para se tornar um processo a ser verificado.
Esta abordagem arrisca transformar a substância em modalidade, como se a essência do dogma pudesse ser alterada sob o pretexto de uma nova formulação (Amerio, p. 559). O erro consiste em confundir o desenvolvimento orgânico de um princípio com uma mutação que o transforma em outra coisa, ad aliud.
O próprio P. Franzelin, importante teólogo jesuíta e perito do Concílio Vaticano I, já havia criticado duramente o uso que Newman fazia do conceito de “desenvolvimento do dogma”, por considerá-lo perigosamente próximo das teses historicistas.
Silêncios, omissões e ambiguidades
Newman escreveu milhares de páginas, mas raramente se pronunciava com clareza sobre pontos dogmáticos decisivos. Seu estilo é conhecido por sua ambiguidade calculada. Ele mesmo dizia que preferia não definir certas verdades para “não ferir susceptibilidades”. Essa postura é típica dos liberais católicos do século XIX, como Montalembert e Lacordaire, que tentavam conciliar a fé com os ideais da Revolução Francesa. O Papa Pio IX condenou essa tendência na encíclica Quanta Cura e no Syllabus Errorum (1864), ao qual Newman nunca demonstrou adesão explícita. Tal estilo, que evita a clareza em favor da polissemia, tornou-se o método característico da teologia pós-conciliar, na qual a ambiguidade dos textos permite interpretações opostas, destruindo a unidade doutrinal (Amerio, p. 62). A recusa em condenar o erro, preferindo o "remédio da misericórdia", como no discurso de abertura do Vaticano II, encontra um precedente intelectual nesta mentalidade que prefere a persuasão subjetiva à afirmação objetiva da verdade (Amerio, p. 65).
A tentativa de alguns de seus defensores — como o cardeal Avery Dulles — de absolver Newman dessas acusações com base em sua suposta ortodoxia tardia ignora o fato de que o núcleo de seu pensamento sempre permaneceu contaminado por uma epistemologia subjetivista e por uma eclesiologia historicista. Como observado no estudo sobre as transformações na Igreja, a linha que leva de Newman ao Vaticano II não é um desvio, mas um desenvolvimento lógico de sua teologia da consciência e da evolução doutrinária, que forneceram o arcabouço intelectual para justificar as variações pós-conciliares (Amerio, p. 558).
Um cavalo de Troia anglicano?
Não se pode compreender a benevolência da hierarquia católica com relação a Newman sem considerar o contexto de sua conversão. Ao abandonar o anglicanismo, Newman tornou-se uma espécie de troféu católico: uma figura de prestígio cultural que poderia ajudar na “conversão da Inglaterra”. Por isso, muitos de seus erros teológicos foram ignorados ou relativizados em nome de um bem diplomático maior. Aqui se manifesta o erro do cristianismo secundário, que julga a religião por seus efeitos subordinados em ordem à civilização ou ao prestígio mundano, fazendo-os prevalecer sobre os fins sobrenaturais que a caracterizam (Amerio, p. 2, 400). A utilidade ecuménica ou o ganho de reputação cultural são postos acima da pureza e da clareza da doutrina, numa inversão da ordem correta.
O problema é que esse silêncio cúmplice permitiu a entrada de ideias perigosas no interior da teologia católica. O modernismo, que se tornaria a “síntese de todas as heresias” (Pio X), encontrou em Newman não apenas um precursor, mas um modelo de “pensamento evolutivo” sobre os dogmas. Mesmo os teólogos mais prudentes que o defendem, como Ian Ker, admitem que Newman foi "o teólogo do subjetivismo cristão moderno".
A questão Ambrose St. John
Além dos problemas doutrinários, há o aspecto moral e simbólico da relação de Newman com o sacerdote Ambrose St. John, com quem viveu por mais de 30 anos e pediu para ser sepultado no mesmo túmulo. Embora não haja provas de escândalo objetivo, as cartas de Newman a St. John revelam um grau de intimidade afetiva que escandalizou mesmo comentaristas liberais — como no artigo do Guardian de 2008 que falava em "paixão sublimada". A decisão do Vaticano de não transferir seus restos mortais para um túmulo separado durante a beatificação foi, segundo muitos, uma maneira de evitar que essa questão ressurgisse.
A questão não é levantar acusações infundadas, mas reconhecer que a canonização de uma figura com tantos elementos ambíguos deveria ter exigido mais cautela e prudência, especialmente diante da crise moral atual na Igreja. Este episódio, independentemente do juízo moral, é sintomático de um relaxamento das formas e de um obscurecimento das distinções que caracterizavam a disciplina eclesiástica tradicional. A clareza das formas externas é um reflexo da clareza da substância interna; a ambiguidade nelas introduzida é um sintoma da corrupção desta.
Conclusão
A elevação de Newman ao título de Doutor da Igreja, além de pastoralmente inoportuna, representa a canonização de uma certa hermenêutica da ambiguidade. Sua teologia, marcada pelo subjetivismo, pelo evolucionismo doutrinal e por silêncios estratégicos, ajudou a minar a clareza da doutrina católica e preparar o terreno para os desastres do século XX. A crise contemporânea da Igreja consiste precisamente na substituição da verdade objetiva, imutável e transcendente, por um processo subjetivo, histórico e imanente. Em tal processo, Newman figura não como um baluarte contra o erro, mas como o pensador que forneceu as ferramentas intelectuais para a sua justificação. É legítimo perguntar se estamos diante de um verdadeiro mestre da fé ou de um Cavalo de Troia que, sob aparência de ortodoxia, introduziu na Igreja os germes da confusão contemporânea.
Referências
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida. Septiembre 2011.
FRANZELIN, Johannes B. De Divina Traditione et Scriptura. Roma, 1870.
GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Théologie du Saint Esprit. Paris: Gabalda, 1944.
KER, Ian. John Henry Newman: A Biography. Oxford: Oxford University Press, 1988.
PAPA PIO IX. Encíclica Quanta Cura e Syllabus Errorum, 1864.
PAPA SÃO PIO X. Encíclica Pascendi Dominici Gregis, 1907.
PRIMEIRO CONCÍLIO DO VATICANO. Constituição Dogmática Dei Filius, 1870.
A Evidência Numérica e o Princípio da Crise (O Vaticano II devastou a Igreja)
Em artigo de 30 de julho de 2025, intitulado The Data Is In! Vatican II Devastated the Church, o autor Chris Jackson propõe-se a demonstrar, por meio de dados estatísticos, uma relação causal direta entre o Concílio Vaticano II e o colapso da vida católica. O texto resume e confronta duas análises principais. A primeira é um estudo de 2025, de autoria dos economistas Robert Barro, Edgard Dewitte e Laurence Iannaccone, intitulado “Looking Backward: Long-Term Religious Service Attendance in 66 Countries”. Este estudo, aplicando um método de evento-estudo, conclui que o Concílio "desencadeou" (triggered) um declínio mundial na frequência à missa, um fenómeno singularmente católico e não correlato a uma tendência geral de secularização. A segunda análise provém da obra de 2003 de Kenneth C. Jones, The Index of Leading Catholic Indicators, que compila estatísticas da Igreja nos Estados Unidos, contrastando o crescimento robusto em 1960 com um colapso em todas as categorias mensuráveis (sacerdotes, seminaristas, religiosas, frequência à missa) em 2002. Jackson conclui que tais dados refutam a objeção comum de que se trataria de uma falácia post hoc ergo propter hoc, afirmando que a causalidade está empiricamente verificada.
A compilação de dados estatísticos que evidenciam um declínio na prática religiosa após o Concílio Vaticano II não constitui, para um observador atento, uma revelação, mas antes a quantificação de um desastre já reconhecido, ainda que intermitentemente, pelo próprio Sumo Pontífice (Amerio, p. 6). A acumulação de números sobre a queda no número de sacerdotes, o abandono da vida religiosa ou a diminuição da frequência aos sacramentos serve para dar contornos mensuráveis a uma crise que, em sua essência, não é de ordem numérica, mas de princípios. A estatística é o efeito visível, cuja causa reside numa alteração da substância.
O valor de tais estudos reside em sua capacidade de refutar o otimismo espúrio que tenta apresentar o período pós-conciliar como uma "nova primavera" ou de negar a própria existência da crise, atribuindo os fenómenos de decadência a um vago "espírito do tempo" ou a tendências seculares que teriam afetado a Igreja de qualquer modo (Amerio, p. 2, 7). Os dados apresentados por Barro, Dewitte e Iannaccone são significativos precisamente porque isolam o fenómeno: o declínio católico não acompanha o de outras confissões, mas se inicia de modo singular e agudo precisamente após 1965. Isto confirma que a crise é interna, nascida de uma autodemolição, e não primariamente de um assalto exterior (Amerio, p. 6).
Contudo, a análise não pode deter-se na simples correlação temporal, ainda que causalmente estabelecida. Os números são um sintoma. A redução de 90% dos seminaristas nos Estados Unidos, mencionada por Jones, não é um fenómeno isolado, mas o resultado da crise do sacerdócio, onde o próprio conceito de sacerdócio foi alterado, aproximando-o do sacerdócio comum dos fiéis e esvaziando-o de sua especificidade ontológica (Amerio, p. 145, 152). A drástica queda no número de religiosas corresponde a uma crise análoga nas ordens religiosas, onde os princípios de estabilidade, obediência e a própria finalidade da vida consagrada (a salvação da própria alma) foram substituídos por uma orientação horizontal e mundana (Amerio, p. 261, 263).
A queda da frequência à Missa de 75% para 25% reflete diretamente a perda da unidade de culto (Amerio, p. 566). A reforma litúrgica, com a abolição do latim e a introdução do princípio de criatividade, transformou a ação sagrada, objetiva e teocêntrica, numa ação subjetiva, psicológica e antropocêntrica (Amerio, p. 485, 500). Quando 70% dos jovens católicos negam a Presença Real, como aponta Jones, isto não é um fracasso catequético abstrato, mas a consequência lógica de uma teologia eucarística que diluiu o dogma da transubstanciação, favorecendo noções de transignificação ou de uma mera presença espiritual na assembleia (Amerio, p. 471). A mesma Institutio Generalis do novo Missal, em seu artigo 7 original, continha uma definição da Missa que se afastava notavelmente da doutrina do Sacrifício, como foi amplamente demonstrado (Amerio, p. 479).
O aumento vertiginoso das anulações matrimoniais, de 338 para 50.000, é a manifestação jurídica da crise do matrimónio, onde a indissolubilidade, antes defendida como lei natural e divina, cede lugar a uma nova espiritualidade conugal que prioriza a "comunidade de vida e amor" em detrimento do fim procreador e do vínculo objetivo (Amerio, p. 517, 519).
Portanto, a estatística não é a causa, nem sequer a causa primária é o Concílio como evento histórico isolado. A causa é a variação de fundo nos princípios que informam a fé e a vida da Igreja. Os números não mentem, mas também não explicam tudo. Eles apenas medem o afastamento de um estado anterior. A verdadeira análise consiste em identificar a alteração dos princípios que tornou possível tal decadência. A crise não é que os números tenham caído; a crise é que as doutrinas que sustentavam esses números foram alteradas, tornando a queda uma consequência inevitável. O valor de tais estudos é confirmar que a mudança de princípios não conduziu a uma renovação, como se esperava, mas a uma vasta ruína.
Referências
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida. Septiembre 2011.
JACKSON, Chris. The Data Is In! Vatican II Devastated the Church. Hiraeth In Exile, 30 jul. 2025.
A compilação de dados estatísticos que evidenciam um declínio na prática religiosa após o Concílio Vaticano II não constitui, para um observador atento, uma revelação, mas antes a quantificação de um desastre já reconhecido, ainda que intermitentemente, pelo próprio Sumo Pontífice (Amerio, p. 6). A acumulação de números sobre a queda no número de sacerdotes, o abandono da vida religiosa ou a diminuição da frequência aos sacramentos serve para dar contornos mensuráveis a uma crise que, em sua essência, não é de ordem numérica, mas de princípios. A estatística é o efeito visível, cuja causa reside numa alteração da substância.
O valor de tais estudos reside em sua capacidade de refutar o otimismo espúrio que tenta apresentar o período pós-conciliar como uma "nova primavera" ou de negar a própria existência da crise, atribuindo os fenómenos de decadência a um vago "espírito do tempo" ou a tendências seculares que teriam afetado a Igreja de qualquer modo (Amerio, p. 2, 7). Os dados apresentados por Barro, Dewitte e Iannaccone são significativos precisamente porque isolam o fenómeno: o declínio católico não acompanha o de outras confissões, mas se inicia de modo singular e agudo precisamente após 1965. Isto confirma que a crise é interna, nascida de uma autodemolição, e não primariamente de um assalto exterior (Amerio, p. 6).
Contudo, a análise não pode deter-se na simples correlação temporal, ainda que causalmente estabelecida. Os números são um sintoma. A redução de 90% dos seminaristas nos Estados Unidos, mencionada por Jones, não é um fenómeno isolado, mas o resultado da crise do sacerdócio, onde o próprio conceito de sacerdócio foi alterado, aproximando-o do sacerdócio comum dos fiéis e esvaziando-o de sua especificidade ontológica (Amerio, p. 145, 152). A drástica queda no número de religiosas corresponde a uma crise análoga nas ordens religiosas, onde os princípios de estabilidade, obediência e a própria finalidade da vida consagrada (a salvação da própria alma) foram substituídos por uma orientação horizontal e mundana (Amerio, p. 261, 263).
A queda da frequência à Missa de 75% para 25% reflete diretamente a perda da unidade de culto (Amerio, p. 566). A reforma litúrgica, com a abolição do latim e a introdução do princípio de criatividade, transformou a ação sagrada, objetiva e teocêntrica, numa ação subjetiva, psicológica e antropocêntrica (Amerio, p. 485, 500). Quando 70% dos jovens católicos negam a Presença Real, como aponta Jones, isto não é um fracasso catequético abstrato, mas a consequência lógica de uma teologia eucarística que diluiu o dogma da transubstanciação, favorecendo noções de transignificação ou de uma mera presença espiritual na assembleia (Amerio, p. 471). A mesma Institutio Generalis do novo Missal, em seu artigo 7 original, continha uma definição da Missa que se afastava notavelmente da doutrina do Sacrifício, como foi amplamente demonstrado (Amerio, p. 479).
O aumento vertiginoso das anulações matrimoniais, de 338 para 50.000, é a manifestação jurídica da crise do matrimónio, onde a indissolubilidade, antes defendida como lei natural e divina, cede lugar a uma nova espiritualidade conugal que prioriza a "comunidade de vida e amor" em detrimento do fim procreador e do vínculo objetivo (Amerio, p. 517, 519).
Portanto, a estatística não é a causa, nem sequer a causa primária é o Concílio como evento histórico isolado. A causa é a variação de fundo nos princípios que informam a fé e a vida da Igreja. Os números não mentem, mas também não explicam tudo. Eles apenas medem o afastamento de um estado anterior. A verdadeira análise consiste em identificar a alteração dos princípios que tornou possível tal decadência. A crise não é que os números tenham caído; a crise é que as doutrinas que sustentavam esses números foram alteradas, tornando a queda uma consequência inevitável. O valor de tais estudos é confirmar que a mudança de princípios não conduziu a uma renovação, como se esperava, mas a uma vasta ruína.
Referências
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida. Septiembre 2011.
JACKSON, Chris. The Data Is In! Vatican II Devastated the Church. Hiraeth In Exile, 30 jul. 2025.
A teologia política de Leão XIV: a Lei Natural Desnaturada
No seu blog Duc in altum, o jornalista Aldo Maria Valli publicou um artigo de Martino Mora que analisa com justificada apreensão um discurso proferido pelo pontífice fictício Leão XIV (anteriormente Robert Prevost) aos governantes, em 21 de junho de 2025. Mora descreve o discurso como um "manifesto de teologia política liberal", que, sob um verniz de termos católicos e tomistas, promove a ideologia individualista e mundialista das Nações Unidas. Os pontos centrais da crítica de Mora são: a subordinação do bem espiritual da unidade religiosa católica aos princípios da "liberdade religiosa" e do "diálogo inter-religioso"; a priorização do bem-estar material sobre a verdade religiosa; e, mais gravemente, a identificação da Lei Natural, imutável e universal, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948. Mora conclui que tal pontificado, apesar das aparências tradicionais (estola e mozeta), representa a continuação da "autodemolição" da Igreja, uma rendição à ideologia dominante. A análise que se segue visa aprofundar e fundamentar estas críticas, recorrendo aos princípios e categorias encontrados num magistral estudo sobre as transformações na Igreja no século XX.
A análise de Martino Mora, embora correta na sua intuição, pode ser vastamente enriquecida e solidificada quando se aplicam as categorias de uma crítica mais profunda da crise eclesial. O discurso de "Leão XIV" não é um desvio acidental, mas a manifestação consequente de um processo de alteração substancial que uma notável obra denominou "Cristianismo secundário".
O Cristianismo secundário é aquele que, invertendo a ordem dos fins, julga a religião pelos seus efeitos secundários e subordinados em ordem à civilização, fazendo-os prevalecer sobre os sobrenaturais que a caracterizam (Amerio, p. 3). Quando o pontífice fala do "bem da comunidade" e o exemplifica unicamente com a questão da desproporção econômica, relegando a unidade religiosa a um plano inferior, ele opera precisamente esta inversão. O fim primário da Igreja, que é a salvação das almas através da adesão à Verdade revelada, é substituído por um fim secundário e terreno: a construção de uma "ecúmene humanitária", justa e fraterna segundo os cânones do mundo.
Os instrumentos para realizar esta transmutação são, como bem nota Mora, a "liberdade religiosa" e o "diálogo". O conceito de diálogo, estranho a toda a tradição eclesial anterior ao Concílio Vaticano II, pressupõe não a comunicação de uma verdade possuída, mas uma busca heurística em que os interlocutores, colocados em pé de igualdade, caminham para uma verdade que nenhum deles possui plenamente. Este método invalida o próprio conceito de Revelação, que é um dom, uma verdade recebida, e não o resultado de uma construção humana. Assim, o dever de evangelizar e converter é substituído pelo "dever de dialogar com o mundo" (Amerio, p. 282), num processo que não busca a rendição do erro, mas um "enriquecimento" mútuo que só é possível se verdade e erro forem considerados modalidades de um mesmo sentir.
O ponto mais grave do discurso, contudo, é a fusão da Lei Natural com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Trata-se de uma contradição nos termos. A Lei Natural, na doutrina católica, é a "participação da lei eterna na criatura racional" (S. Tomás, S. Th., I-II, q. 91, a. 2), uma ordem objetiva, teocêntrica e imutável. Os direitos humanos modernos, pelo contrário, nascem de uma matriz filosófica individualista e antropocêntrica, que postula um sujeito desvinculado de qualquer ordem teleológica natural ou divina. O "direito" moderno não deriva de um dever para com uma ordem superior, mas da vontade autônoma do indivíduo. A tentativa de conciliar estas duas visões é um sofisma já presente na encíclica Pacem in Terris de João XXIII, que "descuida o nexo dialético sempre premente entre o que as massas pensam e o que as massas fazem sem conexão com a ideologia, a qual só teria a função de dar início ao movimento" (Amerio, p. 217). Ao adotar a linguagem e os pressupostos da ONU, a Igreja não cristianiza o mundo, mas seculariza-se a si mesma, adotando uma "autonomia de valores" que é a negação do seu próprio fundamento (Amerio, p. 379).
A menção a Santo Agostinho para justificar o ecumenismo e o laicismo é uma paródia. A doutrina agostiniana das duas Cidades descreve o antagonismo irredutível entre a civitas Dei, que chega até ao desprezo de si por amor de Deus, e a civitas hominis, que chega até ao desprezo de Deus por amor de si. A tendência moderna é precisamente fundir as duas cidades, ou melhor, dissolver a primeira na segunda (Amerio, p. 399). O que se assiste não é a uma interpretação benigna, mas a uma inversão do pensamento do Santo de Hipona.
Conclui-se, portanto, que o diagnóstico de Mora é exato. O pontificado de "Leão XIV", tal como descrito, é a continuação do processo de "autodemolição" — expressão usada pelo próprio Paulo VI para descrever a crise (Amerio, p. 6). É a perda da substância, a "dessubstanciação da Igreja" (Amerio, p. 220), onde os termos católicos são mantidos, mas esvaziados do seu conteúdo e preenchidos com um significado oposto. A estola e a mozeta tornam-se o disfarce de uma rendição à "axiologia puramente terrestre", que "constitui uma mutação substancial da religião" (Amerio, p. 557). A crise da Igreja não é de costumes ou de disciplina, mas uma crise de fé que atinge a própria identidade do catolicismo, que se dissolve numa religiosidade vaga e humanitária, perfeitamente alinhada com os objetivos das potências mundanas.
Referência
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudo sobre as transformações na Igreja no século XX. Edição corrigida. [S.l.: s.n.], 2011.
A análise de Martino Mora, embora correta na sua intuição, pode ser vastamente enriquecida e solidificada quando se aplicam as categorias de uma crítica mais profunda da crise eclesial. O discurso de "Leão XIV" não é um desvio acidental, mas a manifestação consequente de um processo de alteração substancial que uma notável obra denominou "Cristianismo secundário".
O Cristianismo secundário é aquele que, invertendo a ordem dos fins, julga a religião pelos seus efeitos secundários e subordinados em ordem à civilização, fazendo-os prevalecer sobre os sobrenaturais que a caracterizam (Amerio, p. 3). Quando o pontífice fala do "bem da comunidade" e o exemplifica unicamente com a questão da desproporção econômica, relegando a unidade religiosa a um plano inferior, ele opera precisamente esta inversão. O fim primário da Igreja, que é a salvação das almas através da adesão à Verdade revelada, é substituído por um fim secundário e terreno: a construção de uma "ecúmene humanitária", justa e fraterna segundo os cânones do mundo.
Os instrumentos para realizar esta transmutação são, como bem nota Mora, a "liberdade religiosa" e o "diálogo". O conceito de diálogo, estranho a toda a tradição eclesial anterior ao Concílio Vaticano II, pressupõe não a comunicação de uma verdade possuída, mas uma busca heurística em que os interlocutores, colocados em pé de igualdade, caminham para uma verdade que nenhum deles possui plenamente. Este método invalida o próprio conceito de Revelação, que é um dom, uma verdade recebida, e não o resultado de uma construção humana. Assim, o dever de evangelizar e converter é substituído pelo "dever de dialogar com o mundo" (Amerio, p. 282), num processo que não busca a rendição do erro, mas um "enriquecimento" mútuo que só é possível se verdade e erro forem considerados modalidades de um mesmo sentir.
O ponto mais grave do discurso, contudo, é a fusão da Lei Natural com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Trata-se de uma contradição nos termos. A Lei Natural, na doutrina católica, é a "participação da lei eterna na criatura racional" (S. Tomás, S. Th., I-II, q. 91, a. 2), uma ordem objetiva, teocêntrica e imutável. Os direitos humanos modernos, pelo contrário, nascem de uma matriz filosófica individualista e antropocêntrica, que postula um sujeito desvinculado de qualquer ordem teleológica natural ou divina. O "direito" moderno não deriva de um dever para com uma ordem superior, mas da vontade autônoma do indivíduo. A tentativa de conciliar estas duas visões é um sofisma já presente na encíclica Pacem in Terris de João XXIII, que "descuida o nexo dialético sempre premente entre o que as massas pensam e o que as massas fazem sem conexão com a ideologia, a qual só teria a função de dar início ao movimento" (Amerio, p. 217). Ao adotar a linguagem e os pressupostos da ONU, a Igreja não cristianiza o mundo, mas seculariza-se a si mesma, adotando uma "autonomia de valores" que é a negação do seu próprio fundamento (Amerio, p. 379).
A menção a Santo Agostinho para justificar o ecumenismo e o laicismo é uma paródia. A doutrina agostiniana das duas Cidades descreve o antagonismo irredutível entre a civitas Dei, que chega até ao desprezo de si por amor de Deus, e a civitas hominis, que chega até ao desprezo de Deus por amor de si. A tendência moderna é precisamente fundir as duas cidades, ou melhor, dissolver a primeira na segunda (Amerio, p. 399). O que se assiste não é a uma interpretação benigna, mas a uma inversão do pensamento do Santo de Hipona.
Conclui-se, portanto, que o diagnóstico de Mora é exato. O pontificado de "Leão XIV", tal como descrito, é a continuação do processo de "autodemolição" — expressão usada pelo próprio Paulo VI para descrever a crise (Amerio, p. 6). É a perda da substância, a "dessubstanciação da Igreja" (Amerio, p. 220), onde os termos católicos são mantidos, mas esvaziados do seu conteúdo e preenchidos com um significado oposto. A estola e a mozeta tornam-se o disfarce de uma rendição à "axiologia puramente terrestre", que "constitui uma mutação substancial da religião" (Amerio, p. 557). A crise da Igreja não é de costumes ou de disciplina, mas uma crise de fé que atinge a própria identidade do catolicismo, que se dissolve numa religiosidade vaga e humanitária, perfeitamente alinhada com os objetivos das potências mundanas.
Referência
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudo sobre as transformações na Igreja no século XX. Edição corrigida. [S.l.: s.n.], 2011.