O texto, de autoria de Robert Lazu Kmita, parte da tese de doutorado de Joseph Ratzinger sobre São Boaventura para diagnosticar a crise moderna. Ele destaca o alerta de Boaventura contra um racionalismo teológico puramente especulativo, que o santo identificou como a "Besta do Apocalipse". Este racionalismo, ao privilegiar a "luz natural da razão" em detrimento da fé e da "ciência infusa", esvazia a realidade de seu conteúdo simbólico e teofânico. O autor recorre a Jean Borella para argumentar que a física galileana provocou um "choque epistemológico", reduzindo o cosmo a mera geometria e tornando a Encarnação e a Ressurreição conceitos sem sentido num universo materialista. O modernismo teológico é apresentado como uma tentativa de adaptar a fé a essa nova mentalidade, e a reação neotomista, por ser excessivamente racionalista, é vista como inadequada. A solução, segundo o texto, reside no retorno a uma teologia mística que subordine a razão à fé e recupere o "primado do sobrenatural". A nota final, de "Chiesa e post-concilio", acusa Ratzinger de subjetivizar o conceito de Revelação, alinhando-o com o modernismo ao fundir a verdade revelada com o sujeito que a recebe (a Igreja).
A análise dos perigos de um racionalismo que se opõe à fé, embora perspicaz em seu diagnóstico sintomático, arrisca-se a confundir a natureza do adversário e, consequentemente, a eficácia do remédio. A crise descrita não nasce de um mero excesso de lógica ou de uma falha epistemológica inaugurada pela ciência moderna, mas de uma escolha espiritual e metafísica muito mais antiga: a deliberada amputação do horizonte da consciência para aprisioná-la nos limites do mundo físico e intramundano.
🧠A Verdadeira Natureza do Inimigo: A Escolha pelo Jardim Fechado
O problema central não é o "racionalismo" como exercício da lógica, mas o materialismo disfarçado de filosofia, cuja função primária é psicológica e não cognitiva. Trata-se de uma estratégia para obter a paz de espírito (a ataraxia de Epicuro) através da negação de tudo o que possa causar angústia: Deus, a imortalidade da alma, o juízo e o sentido transcendente da vida. O epicurismo, com sua cosmologia de átomos caindo ao acaso no vazio, já oferecia o protótipo perfeito de um universo esvaziado de propósito, onde os deuses, se existem, são indiferentes aos assuntos humanos. Este sistema não é uma busca pela verdade, mas uma fuga dela; um narcótico para a alma que teme o infinito (Carvalho, 1998). A razão, nesse contexto, não é um instrumento de conhecimento, mas uma ferramenta de autodefesa psíquica, usada para construir uma fortaleza ideológica contra a realidade transcendente. Os argumentos tornam-se meros pretextos para justificar uma decisão preexistente de não querer ver.
💥A Demolição da Realidade: Mais que um "Choque Epistemológico"
Atribuir à física galileana a destruição do universo simbólico é tomar o efeito pela causa. A ciência moderna não destruiu a capacidade teofânica do mundo; ela apenas floresceu num terreno cultural previamente arado por uma filosofia que já havia declarado a matéria como a única realidade. A redução do mundo a "pura geometria" é a consequência lógica de uma visão de mundo que, a priori, nega que as formas e as qualidades sensíveis possam ser veículos de um significado superior. O "choque" não foi o telescópio de Galileu, mas a aceitação de uma cosmovisão que transforma o cosmos (um todo ordenado e significativo) num mero universo (uma coleção de fatos brutos e sem finalidade). Essa mentalidade não é ciência, mas a religião civil do materialismo, que instrumentaliza a ciência para impor sua visão de mundo como a única "racional" e "objetiva", tratando qualquer outra percepção da realidade como "subjetiva" ou "primitiva" (Carvalho, 1998). O resultado é a substituição do mundo real por uma segunda realidade, artificial e empobrecida, administrada por uma elite intelectual.
🏛️A Religião Civil e a Ressurreição de César
Quando a autoridade espiritual da Igreja é enfraquecida e o homem é convencido de que o céu está vazio, o poder não desaparece; ele simplesmente migra do domínio espiritual para o temporal. O vácuo deixado por Deus é imediatamente preenchido por um novo candidato a absoluto: o Estado, a Sociedade, a Humanidade, a História. O "Culto da Razão" da Revolução Francesa foi apenas o batismo de uma nova fé: a religião do Império mundano, cujo objetivo não é a salvação da alma na eternidade, mas a construção de um paraíso terrestre sob a gestão de um poder centralizado (Carvalho, 1998). Esta é a verdadeira "Bestia" apocalíptica: o poder temporal que se arroga funções espirituais, prometendo a felicidade coletiva e exigindo, em troca, o controle total sobre a vida e a consciência dos indivíduos. Seus sacerdotes são os intelectuais, os engenheiros sociais e os burocratas, que administram as almas em nome de um bem comum puramente terreno.
⚔️A Inadequação da Resposta e a Natureza da Guerra
A crítica a um neotomismo "excessivamente racionalista" erra o alvo. O problema não foi o excesso de razão, mas uma falha catastrófica no diagnóstico da natureza do inimigo. Tentou-se combater com argumentos lógicos e silogismos uma força que não opera no plano do debate filosófico, mas no da guerra psicológica e da manipulação mágica da consciência. O adversário moderno não apresenta uma tese para ser refutada; ele lança um feitiço para paralisar a inteligência, usando a linguagem não para descrever a realidade, mas para hipnotizar e induzir um estado de sonolência mental (Carvalho, 1998). Discutir com ele é como tentar ler o Código Penal para um assaltante em pleno ato. A resposta adequada não seria uma teologia "mais mística", mas sim uma que fosse mais realista, capaz de desmascarar a fraude, de expor as intenções ocultas e de nomear o mal pelo seu nome. Exige-se uma atitude de combatente espiritual, não de debatedor acadêmico. A crise não é de epistemologia, mas de percepção da realidade e de coragem para nomeá-la.
Referências
Carvalho, Olavo de. O jardim das aflições: de Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o materialismo e a religião civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
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Entre a Percepção dos Sintomas e a Ignorância das Causas (Sobre o colapso moral do Ocidente)
Um texto recente, intitulado “Sobre o colapso moral doOcidente”, de autoria de Andrea Zhok, propõe-se a analisar a decadência
espiritual e moral do mundo contemporâneo. O autor parte da premissa de que o
“Ocidente” é um conceito espúrio, uma construção político-militar-financeira
recente (“Ocidente Atlântico”), fundamentalmente distinta da milenar “Europa
cultural” de raízes greco-latinas e cristãs. Segundo Zhok, esta construção
ocidental, hegemônica desde o final do século XX, teria provocado uma
“desertificação da alma” ao reduzir todo o valor a um preço monetário, gerando
uma das classes dominantes “mais moralmente infames” da história, caracterizada
não pela crueldade, mas por um niilismo cínico e uma adesão ilimitada à mentira
como instrumento de poder. O autor expressa a preocupação de que a autêntica
cultura europeia seja arrastada para a “condenação histórica” junto com a
obscenidade do Ocidente contemporâneo, perdendo assim não apenas a hegemonia,
mas a própria alma.
A análise, em sua apreensão do estado de abjeção moral e da desertificação espiritual, descreve com notável precisão os sintomas de uma enfermidade profunda. A percepção de que a mentira ilimitada se tornou a prática corrente das classes dominantes e de que a vida humana foi rebaixada a um valor instrumental é, sem dúvida, correta. Contudo, ao tentar diagnosticar as causas do mal, o autor incorre em erros de perspectiva histórica e filosófica tão graves que sua análise, em vez de esclarecer, acaba por engrossar o coro das confusões que constituem a própria doença que pretende descrever.
O erro fundamental reside na distinção radical e historicamente insustentável entre uma “Europa cultural” virtuosa e um “Ocidente” espúrio e recente. O que o autor descreve como o “Ocidente Atlântico” não é uma negação ou um desvio da cultura europeia, mas a sua culminação lógica e inevitável; o resultado final de um processo de inversão espiritual cujas raízes são muito mais antigas e profundas do que um “século e meio”. A tragédia moderna não nasceu da hegemonia do capitalismo financeiro nas últimas décadas do século XX; este é apenas um dos seus muitos frutos tardios.
A gênese do colapso remonta a um drama que se desenrola há séculos, marcado pela supressão progressiva da dimensão vertical e transcendente da existência e pela divinização das forças do plano horizontal: o espaço e o tempo (Carvalho, 1998, p. 96). A passagem de uma cosmologia teocêntrica para uma visão de mundo matematizada e, posteriormente, para uma divinização do processo histórico, representou a transferência da autoridade espiritual de Deus para as estruturas impessoais do cosmos e, enfim, da História. O “Ocidente” que o autor critica é a fase final deste processo, onde a religião do Império — uma religião civil e laica — se estabelece como a única autoridade espiritual, reduzindo todas as tradições sagradas a meros “fatos culturais” ou, na melhor das hipóteses, a opções privadas desprovidas de qualquer poder ordenador da vida pública (Carvalho, 1998, p. 135).
A confusão do diagnóstico torna-se patente quando o autor elenca, entre os expoentes da “extraordinária eflorescência” europeia, a figura de Karl Marx. Ora, Marx não é uma vítima do processo de desertificação da alma, mas um de seus mais potentes agentes. Sua filosofia é a expressão acabada da inversão gnóstica que submete a theoria (a contemplação da verdade) à praxis (a ação transformadora do mundo), reduzindo a realidade a mera matéria-prima para a vontade de poder revolucionária. Colocar Marx como um representante da tradição espiritual que se opõe ao niilismo moderno é um equívoco de proporções colossais, que revela uma incompreensão fundamental da natureza das forças em jogo. O marxismo, como foi demonstrado, é ele mesmo um herdeiro direto da matriz epicurista que busca não compreender, mas transformar o mundo, substituindo a realidade por uma construção voluntarista (Carvalho, 1998, p. 77). A combinação do ateísmo marxista com o calvinismo, que o autor aponta como a matriz do Ocidente Atlântico, não é um acidente, mas a fusão de duas correntes da mesma revolução gnóstica.
A classe dominante “moralmente infame” que o autor descreve não é um produto do “capitalismo financeiro” enquanto força econômica autônoma, mas o sacerdócio da nova Religião Civil. Seu poder não reside apenas no dinheiro, mas na capacidade de manipular o imaginário social e de se apresentar como a administradora única e exclusiva do “sentido da História”. A mentira ilimitada e a negação da evidência não são meras ferramentas de poder; são os dogmas centrais desta nova fé, cuja liturgia consiste em dissolver a estrutura ontológica da realidade num fluxo de interpretações arbitrárias, legitimadas unicamente por sua eficácia pragmática. É a ascensão do Estado-bedel, que, ao se tornar o árbitro de todas as questões morais e espirituais, promove a “confusão das línguas do bem e do mal” (Carvalho, 1998, p. 173).
Por fim, a preocupação com uma futura “condenação histórica” revela que o autor, apesar de suas críticas, permanece prisioneiro da mentalidade historicista que é um dos pilares do mal que descreve. O problema real não é o julgamento que as futuras gerações farão da Europa, mas a perda efetiva da alma no aqui e agora. A tragédia não é uma questão de imagem histórica, mas de realidade espiritual. A perda da alma não é uma possibilidade futura, mas um processo em curso que só pode ser compreendido e combatido pela restauração do primado da consciência individual e da sua ligação com a dimensão transcendente, e não pela lamentação de uma glória cultural passada ou pela criação de falsas genealogias.
Em suma, o texto de Andrea Zhok oferece um retrato vívido dos efeitos da catástrofe espiritual moderna, mas falha em identificar suas causas. Ao projetar a origem do mal numa entidade externa e recente — o “Ocidente” —, ele isenta a tradição intelectual europeia de sua cumplicidade ativa na construção do próprio deserto que agora lamenta. A verdadeira genealogia do niilismo contemporâneo é longa e complexa, e seus agentes mais eficazes se encontram precisamente entre aqueles que o autor, por uma trágica ironia, ainda celebra como heróis da cultura. A cura não virá de um apego nostálgico a uma Europa idealizada, mas do reconhecimento de que o inimigo não está fora, mas dentro, e que sua vitória foi preparada por séculos de erros filosóficos e apostas espirituais suicidas.
Referências
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
A análise, em sua apreensão do estado de abjeção moral e da desertificação espiritual, descreve com notável precisão os sintomas de uma enfermidade profunda. A percepção de que a mentira ilimitada se tornou a prática corrente das classes dominantes e de que a vida humana foi rebaixada a um valor instrumental é, sem dúvida, correta. Contudo, ao tentar diagnosticar as causas do mal, o autor incorre em erros de perspectiva histórica e filosófica tão graves que sua análise, em vez de esclarecer, acaba por engrossar o coro das confusões que constituem a própria doença que pretende descrever.
O erro fundamental reside na distinção radical e historicamente insustentável entre uma “Europa cultural” virtuosa e um “Ocidente” espúrio e recente. O que o autor descreve como o “Ocidente Atlântico” não é uma negação ou um desvio da cultura europeia, mas a sua culminação lógica e inevitável; o resultado final de um processo de inversão espiritual cujas raízes são muito mais antigas e profundas do que um “século e meio”. A tragédia moderna não nasceu da hegemonia do capitalismo financeiro nas últimas décadas do século XX; este é apenas um dos seus muitos frutos tardios.
A gênese do colapso remonta a um drama que se desenrola há séculos, marcado pela supressão progressiva da dimensão vertical e transcendente da existência e pela divinização das forças do plano horizontal: o espaço e o tempo (Carvalho, 1998, p. 96). A passagem de uma cosmologia teocêntrica para uma visão de mundo matematizada e, posteriormente, para uma divinização do processo histórico, representou a transferência da autoridade espiritual de Deus para as estruturas impessoais do cosmos e, enfim, da História. O “Ocidente” que o autor critica é a fase final deste processo, onde a religião do Império — uma religião civil e laica — se estabelece como a única autoridade espiritual, reduzindo todas as tradições sagradas a meros “fatos culturais” ou, na melhor das hipóteses, a opções privadas desprovidas de qualquer poder ordenador da vida pública (Carvalho, 1998, p. 135).
A confusão do diagnóstico torna-se patente quando o autor elenca, entre os expoentes da “extraordinária eflorescência” europeia, a figura de Karl Marx. Ora, Marx não é uma vítima do processo de desertificação da alma, mas um de seus mais potentes agentes. Sua filosofia é a expressão acabada da inversão gnóstica que submete a theoria (a contemplação da verdade) à praxis (a ação transformadora do mundo), reduzindo a realidade a mera matéria-prima para a vontade de poder revolucionária. Colocar Marx como um representante da tradição espiritual que se opõe ao niilismo moderno é um equívoco de proporções colossais, que revela uma incompreensão fundamental da natureza das forças em jogo. O marxismo, como foi demonstrado, é ele mesmo um herdeiro direto da matriz epicurista que busca não compreender, mas transformar o mundo, substituindo a realidade por uma construção voluntarista (Carvalho, 1998, p. 77). A combinação do ateísmo marxista com o calvinismo, que o autor aponta como a matriz do Ocidente Atlântico, não é um acidente, mas a fusão de duas correntes da mesma revolução gnóstica.
A classe dominante “moralmente infame” que o autor descreve não é um produto do “capitalismo financeiro” enquanto força econômica autônoma, mas o sacerdócio da nova Religião Civil. Seu poder não reside apenas no dinheiro, mas na capacidade de manipular o imaginário social e de se apresentar como a administradora única e exclusiva do “sentido da História”. A mentira ilimitada e a negação da evidência não são meras ferramentas de poder; são os dogmas centrais desta nova fé, cuja liturgia consiste em dissolver a estrutura ontológica da realidade num fluxo de interpretações arbitrárias, legitimadas unicamente por sua eficácia pragmática. É a ascensão do Estado-bedel, que, ao se tornar o árbitro de todas as questões morais e espirituais, promove a “confusão das línguas do bem e do mal” (Carvalho, 1998, p. 173).
Por fim, a preocupação com uma futura “condenação histórica” revela que o autor, apesar de suas críticas, permanece prisioneiro da mentalidade historicista que é um dos pilares do mal que descreve. O problema real não é o julgamento que as futuras gerações farão da Europa, mas a perda efetiva da alma no aqui e agora. A tragédia não é uma questão de imagem histórica, mas de realidade espiritual. A perda da alma não é uma possibilidade futura, mas um processo em curso que só pode ser compreendido e combatido pela restauração do primado da consciência individual e da sua ligação com a dimensão transcendente, e não pela lamentação de uma glória cultural passada ou pela criação de falsas genealogias.
Em suma, o texto de Andrea Zhok oferece um retrato vívido dos efeitos da catástrofe espiritual moderna, mas falha em identificar suas causas. Ao projetar a origem do mal numa entidade externa e recente — o “Ocidente” —, ele isenta a tradição intelectual europeia de sua cumplicidade ativa na construção do próprio deserto que agora lamenta. A verdadeira genealogia do niilismo contemporâneo é longa e complexa, e seus agentes mais eficazes se encontram precisamente entre aqueles que o autor, por uma trágica ironia, ainda celebra como heróis da cultura. A cura não virá de um apego nostálgico a uma Europa idealizada, mas do reconhecimento de que o inimigo não está fora, mas dentro, e que sua vitória foi preparada por séculos de erros filosóficos e apostas espirituais suicidas.
Referências
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
A peste mortífera do comunismo e seu processo oculto (análise da Carta Encíclica Divinis Redemptoris, do Sumo Pontífice Papa Pio XI)
- Publicada em 19 de março de 1937, a Carta Encíclica Divinis Redemptoris, do Sumo Pontífice Papa Pio XI, dirige-se ao episcopado universal com o fito de condenar o "comunismo ateu", descrever sua doutrina, expor a doutrina católica oposta e indicar os remédios para combatê-lo. O documento surge num contexto de grave ameaça, em que o movimento comunista, já consolidado na Rússia e em expansão, se apresentava como um perigo universal para a civilização cristã, desencadeando perseguições violentas no México e na Espanha.
- A presente análise não busca avaliar a Encíclica em seu mérito teológico ou canônico geral, mas sim examiná-la estritamente através da lente do processo histórico e metafísico da Revolução e da Contra-Revolução. Busca-se compreender em que medida o documento papal, ao tratar da manifestação comunista, aborda a natureza processiva do mal que a gerou.
- É inegável a força com que a Encíclica identifica e condena a "peste mortífera" do comunismo, qualificado como "intrinsecamente perverso" (PIO XI, 1937, para. 58). Ao descrever seus frutos de terror, perseguição e destruição da ordem, bem como ao expor a falsidade de seu ideal redentor (PIO XI, 1937, para. 8), o documento papal ergue uma barreira doutrinária de suma importância contra a manifestação mais aguda do espírito revolucionário de seu tempo. A descrição dos "horrores do comunismo em Espanha", onde se destrói "tudo quanto existe de autoridade e subordinação" (PIO XI, 1937, para. 20), ecoa a descrição da Revolução como um movimento que visa destruir a ordem legítima (OLIVEIRA, 1998, p. 15.
- Contudo, uma análise aprofundada revela uma lacuna fundamental quando se confronta a perspectiva da Encíclica com a natureza una e processiva da Revolução. O documento aborda o comunismo como a "revolução dos nossos dias", que "parece ultrapassar em violência e amplitude todas as perseguições que a Igreja tem padecido" (PIO XI, 1937, para. 2). Trata-o, portanto, como o mal supremo de sua época, mas não o enquadra com a devida clareza como o resultado necessário e a terceira etapa de um único processo que se desenrola há séculos. A Revolução não é um conjunto de crises isoladas, mas "um processo crítico já cinco vezes secular, um longo sistema de causas e efeitos" (OLIVEIRA, 1998, p. 4). O comunismo, nesta perspectiva, não é um fenômeno novo, mas o requinte da Revolução Francesa, que por sua vez requintou a Pseudo-Reforma (OLIVEIRA, 1998, p. 11).
- A Encíclica reconhece que "o liberalismo preparou o caminho ao comunismo" (PIO XI, 1937, para. 16) e que este mal teve origem nos "desvarios duma filosofia que de há muito porfia por separar a ciência e a vida da fé da Igreja" (PIO XI, 1937, para. 4). Esta observação é correta, mas parcial. Ela aponta para a etapa anterior — a Segunda Revolução — sem, contudo, delinear a genealogia completa do processo. Não se apresenta a cadeia contínua que liga as três grandes revoluções da História do Ocidente - a Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o Comunismo - como "episódios de uma só Revolução" (OLIVEIRA, 1998, p. 2). Ao focar na manifestação mais recente e violenta, a análise do documento deixa na penumbra a unidade do fenômeno que a produziu.
- Aqui, a análise de Olavo de Carvalho sobre a genealogia das ideologias modernas oferece um aprofundamento crucial. Para ele, a separação entre ciência e fé, mencionada por Pio XI, é apenas um sintoma de um processo mais profundo: a "divinização do espaço e do tempo", que substitui a dimensão vertical e transcendente (a relação da alma com Deus) por uma dimensão puramente horizontal e imanente (a relação do homem com o cosmos e com a história). O comunismo, com sua promessa de redenção intramundana através do processo histórico, é a culminação lógica dessa inversão metafísica. A "peste mortífera" não é, portanto, apenas uma filosofia equivocada, mas a consequência inevitável da amputação da realidade, um projeto de "transformar o mundo" sem primeiro "compreendê-lo" em sua totalidade (CARVALHO, 1998, p. 77). A Encíclica, ao não diagnosticar esta mutação cosmológica que se inicia no Renascimento, combate o sintoma mais agudo sem nomear a doença em sua raiz metafísica.
- Ademais, a raiz mais profunda da Revolução não reside meramente em sistemas filosóficos, mas numa "explosão de orgulho e sensualidade" (OLIVEIRA, 1998, p. 2). São estas duas paixões desordenadas que, em última análise, movem o processo revolucionário. O orgulho gera o igualitarismo radical, que odeia toda e qualquer hierarquia e superioridade; a sensualidade gera o liberalismo, que se revolta contra todo freio e toda lei. A Encíclica descreve os efeitos do comunismo, como a negação da liberdade e a abolição da hierarquia (PIO XI, 1937, para. 10), mas não remonta de forma explícita a estes vícios capitais como a força propulsora mais íntima e possante do processo inteiro. O diagnóstico, portanto, detém-se no plano ideológico e sociológico, sem descer às profundezas da crise moral e metafísica que constitui a alma da Revolução.
- Do ponto de vista objetivista, essa "explosão de orgulho e sensualidade" pode ser compreendida como a revolta contra a realidade e a razão. O orgulho, aqui, é a primazia da consciência — o desejo de que a realidade se curve aos caprichos do indivíduo ou do coletivo. A sensualidade é a primazia do sentimento sobre a razão, a busca da satisfação imediata sem consideração pelas consequências. Ambas são formas de irracionalismo que negam o fato fundamental da existência: que "A é A". O comunismo, ao prometer a criação de um "novo homem" e de uma "nova sociedade" livre das leis da economia e da natureza humana, representa a politização máxima dessa revolta metafísica. É a tentativa de substituir a realidade objetiva por um desejo coletivo. A Encíclica condena os resultados práticos dessa tentativa, mas, ao atribuir a causa a "desvarios de uma filosofia", não identifica o erro epistemológico e metafísico fundamental: a negação da objetividade da realidade em favor do subjetivismo (individual ou coletivo).
- Por consequência, os remédios propostos, ainda que intrinsecamente bons e santos, parecem insuficientes diante da magnitude do processo. A Encíclica exorta à renovação da vida cristã, ao desapego dos bens, à caridade e à justiça social (PIO XI, 1937, para. 41, 44, 46, 49). Tais são, sem dúvida, os fundamentos de toda ordem cristã. Contudo, para combater um mal que é uma Revolução, o remédio específico é uma Contra-Revolução: "uma ação que é dirigida contra outra ação" (OLIVEIRA, 1998, p. 27), e que se define por ser "austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, antiigualitária e antiliberal" (OLIVEIRA, 1998, p. 28). A mera prática da justiça social, sem a denúncia e o combate direto ao espírito igualitário e liberal que infecta a sociedade, arrisca-se a ser um esforço que, embora meritório, não detém a marcha do processo revolucionário em suas causas mais profundas.
- A exortação à caridade e à justiça social, sem uma "reforma da inteligência" que restaure a capacidade de perceber a realidade em sua estrutura hierárquica, torna-se ineficaz ou até contraproducente. No ambiente mental criado pela Revolução, a própria palavra "justiça" foi esvaziada de seu sentido original e preenchida com o conteúdo do igualitarismo. Propor "justiça social" a uma mentalidade revolucionária é, na prática, alimentar sua sanha igualitária. O combate eficaz, portanto, não pode ser apenas moral, mas deve ser primordialmente intelectual e espiritual: deve-se restaurar a percepção da ordem do ser, da diferença ontológica entre o superior e o inferior, do vertical e do horizontal. Sem isso, os "remédios" se tornam meros paliativos aplicados a um corpo cuja estrutura metafísica já foi corrompida (CARVALHO, 1998, p. 182).
- Em suma, a Encíclica Divinis Redemptoris representa um ato de suprema importância do Magistério Eclesiástico, condenando com clareza e vigor a Terceira Revolução em sua fase comunista. Constitui um documento de combate indispensável contra os erros explícitos do marxismo. No entanto, analisada sob a ótica da processividade revolucionária, sua perspectiva se mostra incompleta. Ao não identificar explicitamente o comunismo como a consequência lógica e histórica das revoluções que o precederam, e ao não apontar para as paixões desordenadas do orgulho e da sensualidade como sua causa última, o documento combate o fruto mais amargo da Revolução, sem expor em toda a sua extensão a árvore envenenada que o gerou.
- Concluindo, a Encíclica agiu como um médico que diagnostica corretamente uma febre altíssima e prescreve um tratamento para baixá-la, mas não identifica o vírus que a causou. Do ponto de vista de Carvalho, esse "vírus" é o gnosticismo moderno — a crença de que o homem pode redimir a si mesmo e ao mundo através de um conhecimento (ou práxis) secreto que o coloca acima da ordem criada. O comunismo é apenas a forma mais politizada e virulenta desse gnosticismo. Ao não nomear esse inimigo em sua essência, a Igreja se viu combatendo suas manifestações sucessivas (liberalismo, socialismo, comunismo, etc.) sem jamais atacar a raiz comum que as nutre: a revolta gnóstica contra a condição humana e a ordem do ser (CARVALHO, 1998, p. 123-124).
Referências
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed. São Paulo: Artpress, 1998.
PIO XI, Papa. Carta Encíclica Divinis Redemptoris. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 19 mar. 1937. Disponível em: [URL de acesso à Encíclica]. Acesso em: [Data de acesso].
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed. São Paulo: Artpress, 1998.
PIO XI, Papa. Carta Encíclica Divinis Redemptoris. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 19 mar. 1937. Disponível em: [URL de acesso à Encíclica]. Acesso em: [Data de acesso].
Livro - O Reinado e a Lei na Idade Média, de Fritz Kern (o rei era antes de tudo um servidor da ordem divina)
Publicado originalmente em 1914 sob o título Gottesgnadentum und Widerstandsrecht im früheren Mittelalter, o livro O Reinado e a Lei na Idade Média é uma obra seminal do historiador alemão Fritz Kern. Nele, o autor examina os fundamentos do poder político na Idade Média, destacando a íntima relação entre autoridade régia e justiça, e revelando que a realeza medieval estava profundamente enraizada em concepções religiosas, jurídicas e morais que hoje costumam ser negligenciadas pelas visões modernas do período. A obra se estrutura em torno de duas grandes ideias complementares: o reinado por graça divina e o direito de resistência.
Essa estrutura dual, analisada por Kern, ecoa a tensão fundamental que, segundo Olavo de Carvalho, define a civilização ocidental: o conflito entre a autoridade espiritual (representada pela Igreja) e o poder temporal (representado pelo Império ou pelos reinos). A obra de Kern, portanto, não descreve apenas uma estrutura política, mas o próprio palco onde se desenrolou a luta entre o que Carvalho denomina "as duas espadas" ou "os dois braços da cruz", uma disputa que moldou a consciência e as instituições do Ocidente (CARVALHO, 1998).
Kern mostra que, na mentalidade medieval, o rei não era apenas um governante terreno, mas antes de tudo um servidor da ordem divina. Sua autoridade derivava de Deus — não de um contrato social ou de uma origem humana ou racionalista — e essa investidura sagrada era simbolicamente expressa por meio de ritos como a unção e a consagração régia. A monarquia era, assim, dotada de um caráter sacral. O rei deveria agir como defensor da justiça, guardião da paz e promotor da ordem cristã.
Este modelo de realeza contrasta de maneira absoluta com a concepção moderna de soberania, que Olavo de Carvalho identifica com a ascensão da "religião de César". Enquanto o rei medieval de Kern é um vigário de Cristo, subordinado a uma ordem que o transcende, o soberano moderno — seja um monarca absolutista como Luís XIV ou um Estado revolucionário — torna-se ele próprio a fonte da ordem, um "deus mortal" que não reconhece autoridade acima de si. A transição que Kern implicitamente descreve é a passagem de uma autoridade legitimada pela submissão ao sagrado para uma autoridade que se autossacraliza, absorvendo para si as prerrogativas antes reservadas a Deus (CARVALHO, 1998, p. 146-148).
Essa concepção impunha deveres religiosos ao monarca: ele devia obedecer à lei divina e garantir o bem comum, sendo seu poder limitado por princípios morais transcendentes. A legitimidade do poder real não era, portanto, absoluta, mas condicionada ao cumprimento de sua missão espiritual e moral. O rei era um mediador entre o céu e a terra, e sua autoridade só era legítima enquanto permanecesse fiel a essa missão.
Aqui, a análise de Kern oferece um contraponto histórico à crítica objetivista da fé como fonte de autoridade. Do ponto de vista do Objetivismo, qualquer autoridade derivada da fé é, por definição, arbitrária, pois não se baseia na razão e na realidade objetiva. No entanto, o que Kern descreve é um sistema onde essa "fé" não era um cheque em branco para o capricho, mas a fonte de um conjunto estrito de deveres que limitavam o poder. O rei não governava porque tinha fé, mas porque se submetia aos deveres que essa fé impunha. Estruturalmente, embora a fonte de legitimidade seja mística (fé) e não racional (razão), o resultado era um governo de leis, não de homens — um ideal que, paradoxalmente, se alinha com o princípio objetivista de que o governo deve ser subordinado a princípios morais objetivos e não ao arbítrio de quem governa.
O segundo grande eixo da análise de Kern diz respeito à concepção medieval de lei, que diferia fundamentalmente da noção moderna. Na Idade Média, a lei era predominantemente consuetudinária: resultava dos usos e costumes históricos do povo, legitimados pelo tempo e pela tradição. Ela não era criada por um legislador soberano de maneira unilateral, mas expressava um senso de justiça comunitária, enraizado em valores coletivos e no direito natural cristão.
Essa distinção é crucial na análise de Carvalho sobre a decadência moderna. Para ele, a modernidade substitui uma concepção de lei como descoberta — um dado objetivo da realidade (seja ela natural ou divina) que a consciência humana apreende — por uma concepção de lei como criação da vontade humana. O positivismo jurídico, que domina o pensamento moderno, é a expressão máxima dessa inversão: a lei não é mais o que é justo, mas o que a autoridade vigente decreta. A lei medieval descrita por Kern, ao contrário, representa um paradigma de realismo jurídico: sua validade provém de sua conformidade com uma ordem preexistente e objetiva, e não do ato de vontade de um legislador (CARVALHO, 1998, p. 174).
O rei, portanto, não era o criador da lei, mas seu guardião. Ele não podia governar conforme sua vontade, pois estava subordinado tanto à lei divina (revelada nas Escrituras e ensinada pela Igreja) quanto à lei consuetudinária. A justiça e a fidelidade ao direito eram elementos essenciais do bom governo. Quando o rei violava a lei ou quebrava juramentos — como o de proteger os fracos, respeitar os costumes e agir com equidade — ele deixava de ser um rei legítimo.
Nesse ponto, o rei medieval se assemelha estruturalmente ao "governo ideal" do Objetivismo, que existe não para criar direitos, mas para proteger os direitos preexistentes do indivíduo, derivados de sua natureza. A função do rei de Kern era análoga: proteger uma ordem de justiça que ele não inventou. A perversão moderna, criticada tanto por Kern (em sua análise histórica) quanto por Carvalho (em sua filosofia política), ocorre quando o Estado deixa de ser o guardião da lei para se tornar seu autor e, consequentemente, o autor dos "direitos" que ele mesmo concede e revoga. O rei medieval, ao jurar fidelidade à lei, reconhecia uma autoridade superior a si; o Estado moderno, ao se declarar a fonte da lei, afirma sua própria soberania absoluta.
A partir disso, Fritz Kern introduz a ideia do Widerstandsrecht, o “direito de resistência”, que, longe de ser uma ideia revolucionária moderna, já tinha raízes profundas no pensamento jurídico e político medieval. Quando o rei se tornava injusto, perjuro ou tirânico — isto é, quando deixava de cumprir os deveres associados à sua dignidade — abria-se, dentro da própria ordem jurídica tradicional, a possibilidade legítima de oposição ao poder.
É fundamental, seguindo a análise de Carvalho sobre as revoluções, distinguir essa forma de resistência da revolução moderna. O Widerstandsrecht não era um ato para destruir a ordem existente e criar uma nova a partir do zero (uma utopia), mas sim um ato para restaurar a ordem tradicional que fora violada pelo governante. A resistência era, em essência, conservadora, pois agia em nome da lei e da tradição contra o arbítrio individual do tirano. A revolução moderna, ao contrário, é a negação de toda ordem preexistente em nome de um ideal abstrato a ser imposto pela força. A primeira defende a realidade da lei contra o poder; a segunda, o poder da ideologia contra a realidade (CARVALHO, 1998, p. 121).
Essa resistência não se dava em nome de uma soberania popular abstrata, mas em defesa da ordem jurídica superior que o rei havia traído. Os responsáveis por essa resistência podiam ser tanto os nobres quanto os conselhos ou as corporações eclesiásticas, dependendo das circunstâncias. Resistir ao tirano era, nesse sentido, um dever moral e religioso, mais do que uma questão política. O direito de resistência era assim um limite natural e jurídico à autoridade real, embasado na moral cristã e na estrutura tradicional da sociedade feudal.
Ao longo de toda a obra, Kern evidencia como a Idade Média concebia o poder político de maneira teocrática e orgânica, e não contratual ou individualista como nas teorias modernas. A autoridade régia era inseparável da religião, da moral e da ordem cósmica cristã. O rei era visto como o primeiro entre os iguais, e seu poder estava intrinsecamente vinculado à justiça, fidelidade, temperança e serviço ao bem comum.
Em contraste com o absolutismo moderno, que separa o poder político da religião e da moral, a Idade Média concebia uma monarquia onde o poder era condicionado, limitado e subordinado a normas superiores. Assim, a obra de Fritz Kern revela uma sociedade medieval dotada de alta complexidade institucional e jurídica, que estabelecia equilíbrios de poder e formas legítimas de controle e oposição.
Essa subordinação do poder a uma esfera transcendente é, para Carvalho, a própria fonte da liberdade ocidental. A tensão permanente entre o poder do rei e a autoridade da Igreja impedia que qualquer um dos dois se tornasse absoluto, criando um "vácuo" de poder onde a consciência individual e as liberdades civis puderam florescer. O absolutismo moderno nasce precisamente quando o Estado, como no caso de Henrique VIII, absorve a função da Igreja, unificando as "duas espadas" numa só mão e eliminando qualquer instância de apelação superior a si mesmo (CARVALHO, 1998, p. 146). A obra de Kern, ao descrever o período anterior a essa fusão, revela a anatomia da liberdade europeia em sua origem.
A importância da obra de Kern reside também em sua crítica às interpretações simplistas da Idade Média como uma era de obscurantismo ou de autoritarismo primitivo. Ao contrário, Kern demonstra que o período medieval elaborou formas sofisticadas de limitação do poder e de integração entre direito, moral e política. Sua análise resgata o valor da tradição, do costume e da religião como fontes legítimas da ordem política — uma visão que, para Kern, se perdeu no racionalismo e no positivismo jurídico modernos.
Nesse sentido, o trabalho de Kern pode ser visto como um ato de "reforma da inteligência", nos termos de Carvalho: uma desconstrução de mitos historiográficos que servem de alicerce para as ideologias modernas. Ao demonstrar que o autoritarismo absolutista não é uma herança medieval, mas uma invenção moderna que se opõe radicalmente à estrutura de poder da Idade Média, Kern realiza uma operação análoga à que Carvalho se propõe em suas obras: a de desmascarar as narrativas falsas sobre as quais se assenta o poder intelectual e político contemporâneo.
Além disso, O Reinado e a Lei na Idade Média antecipa discussões sobre o Estado de direito, a legitimidade moral do poder e o papel das instituições no controle da autoridade. Ao abordar a legitimidade do poder a partir de sua submissão à lei e à justiça, Kern oferece uma reflexão perene sobre o fundamento ético da autoridade e o dever de resistência à injustiça, em qualquer época.
A obra de Fritz Kern é um marco na historiografia política medieval por mostrar que a Idade Média conheceu uma concepção de poder legítimo baseada em lei, justiça e moralidade, muito distante da caricatura de despotismo irracional. Ao afirmar que o poder do rei estava condicionado à lei divina e ao costume, e que era legítimo resistir a um governante injusto, Kern resgata um modelo de autoridade ordenada e limitada que ainda hoje oferece lições profundas para as reflexões sobre política, direito e ética.
Em suma, a análise de Kern fornece o pano de fundo histórico que confirma a tese central de Olavo de Carvalho sobre a tragédia moderna: a substituição de uma ordem política fundada na transcendência por uma ordem baseada na imanência do poder estatal. O rei medieval de Kern, limitado pela Lei de Deus e pelos costumes, é a antítese do "Estado-bedel" moderno, o Leviatã que, tendo devorado a autoridade espiritual, se torna a única fonte de lei, moral e sentido, pavimentando o caminho para o que Carvalho chama de "a religião de César" (CARVALHO, 1998, p. 174). A obra de Kern é, assim, o retrato de uma ordem perdida, cujo desaparecimento é a chave para a compreensão da patologia do poder no mundo contemporâneo.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
Essa estrutura dual, analisada por Kern, ecoa a tensão fundamental que, segundo Olavo de Carvalho, define a civilização ocidental: o conflito entre a autoridade espiritual (representada pela Igreja) e o poder temporal (representado pelo Império ou pelos reinos). A obra de Kern, portanto, não descreve apenas uma estrutura política, mas o próprio palco onde se desenrolou a luta entre o que Carvalho denomina "as duas espadas" ou "os dois braços da cruz", uma disputa que moldou a consciência e as instituições do Ocidente (CARVALHO, 1998).
Kern mostra que, na mentalidade medieval, o rei não era apenas um governante terreno, mas antes de tudo um servidor da ordem divina. Sua autoridade derivava de Deus — não de um contrato social ou de uma origem humana ou racionalista — e essa investidura sagrada era simbolicamente expressa por meio de ritos como a unção e a consagração régia. A monarquia era, assim, dotada de um caráter sacral. O rei deveria agir como defensor da justiça, guardião da paz e promotor da ordem cristã.
Este modelo de realeza contrasta de maneira absoluta com a concepção moderna de soberania, que Olavo de Carvalho identifica com a ascensão da "religião de César". Enquanto o rei medieval de Kern é um vigário de Cristo, subordinado a uma ordem que o transcende, o soberano moderno — seja um monarca absolutista como Luís XIV ou um Estado revolucionário — torna-se ele próprio a fonte da ordem, um "deus mortal" que não reconhece autoridade acima de si. A transição que Kern implicitamente descreve é a passagem de uma autoridade legitimada pela submissão ao sagrado para uma autoridade que se autossacraliza, absorvendo para si as prerrogativas antes reservadas a Deus (CARVALHO, 1998, p. 146-148).
Essa concepção impunha deveres religiosos ao monarca: ele devia obedecer à lei divina e garantir o bem comum, sendo seu poder limitado por princípios morais transcendentes. A legitimidade do poder real não era, portanto, absoluta, mas condicionada ao cumprimento de sua missão espiritual e moral. O rei era um mediador entre o céu e a terra, e sua autoridade só era legítima enquanto permanecesse fiel a essa missão.
Aqui, a análise de Kern oferece um contraponto histórico à crítica objetivista da fé como fonte de autoridade. Do ponto de vista do Objetivismo, qualquer autoridade derivada da fé é, por definição, arbitrária, pois não se baseia na razão e na realidade objetiva. No entanto, o que Kern descreve é um sistema onde essa "fé" não era um cheque em branco para o capricho, mas a fonte de um conjunto estrito de deveres que limitavam o poder. O rei não governava porque tinha fé, mas porque se submetia aos deveres que essa fé impunha. Estruturalmente, embora a fonte de legitimidade seja mística (fé) e não racional (razão), o resultado era um governo de leis, não de homens — um ideal que, paradoxalmente, se alinha com o princípio objetivista de que o governo deve ser subordinado a princípios morais objetivos e não ao arbítrio de quem governa.
O segundo grande eixo da análise de Kern diz respeito à concepção medieval de lei, que diferia fundamentalmente da noção moderna. Na Idade Média, a lei era predominantemente consuetudinária: resultava dos usos e costumes históricos do povo, legitimados pelo tempo e pela tradição. Ela não era criada por um legislador soberano de maneira unilateral, mas expressava um senso de justiça comunitária, enraizado em valores coletivos e no direito natural cristão.
Essa distinção é crucial na análise de Carvalho sobre a decadência moderna. Para ele, a modernidade substitui uma concepção de lei como descoberta — um dado objetivo da realidade (seja ela natural ou divina) que a consciência humana apreende — por uma concepção de lei como criação da vontade humana. O positivismo jurídico, que domina o pensamento moderno, é a expressão máxima dessa inversão: a lei não é mais o que é justo, mas o que a autoridade vigente decreta. A lei medieval descrita por Kern, ao contrário, representa um paradigma de realismo jurídico: sua validade provém de sua conformidade com uma ordem preexistente e objetiva, e não do ato de vontade de um legislador (CARVALHO, 1998, p. 174).
O rei, portanto, não era o criador da lei, mas seu guardião. Ele não podia governar conforme sua vontade, pois estava subordinado tanto à lei divina (revelada nas Escrituras e ensinada pela Igreja) quanto à lei consuetudinária. A justiça e a fidelidade ao direito eram elementos essenciais do bom governo. Quando o rei violava a lei ou quebrava juramentos — como o de proteger os fracos, respeitar os costumes e agir com equidade — ele deixava de ser um rei legítimo.
Nesse ponto, o rei medieval se assemelha estruturalmente ao "governo ideal" do Objetivismo, que existe não para criar direitos, mas para proteger os direitos preexistentes do indivíduo, derivados de sua natureza. A função do rei de Kern era análoga: proteger uma ordem de justiça que ele não inventou. A perversão moderna, criticada tanto por Kern (em sua análise histórica) quanto por Carvalho (em sua filosofia política), ocorre quando o Estado deixa de ser o guardião da lei para se tornar seu autor e, consequentemente, o autor dos "direitos" que ele mesmo concede e revoga. O rei medieval, ao jurar fidelidade à lei, reconhecia uma autoridade superior a si; o Estado moderno, ao se declarar a fonte da lei, afirma sua própria soberania absoluta.
A partir disso, Fritz Kern introduz a ideia do Widerstandsrecht, o “direito de resistência”, que, longe de ser uma ideia revolucionária moderna, já tinha raízes profundas no pensamento jurídico e político medieval. Quando o rei se tornava injusto, perjuro ou tirânico — isto é, quando deixava de cumprir os deveres associados à sua dignidade — abria-se, dentro da própria ordem jurídica tradicional, a possibilidade legítima de oposição ao poder.
É fundamental, seguindo a análise de Carvalho sobre as revoluções, distinguir essa forma de resistência da revolução moderna. O Widerstandsrecht não era um ato para destruir a ordem existente e criar uma nova a partir do zero (uma utopia), mas sim um ato para restaurar a ordem tradicional que fora violada pelo governante. A resistência era, em essência, conservadora, pois agia em nome da lei e da tradição contra o arbítrio individual do tirano. A revolução moderna, ao contrário, é a negação de toda ordem preexistente em nome de um ideal abstrato a ser imposto pela força. A primeira defende a realidade da lei contra o poder; a segunda, o poder da ideologia contra a realidade (CARVALHO, 1998, p. 121).
Essa resistência não se dava em nome de uma soberania popular abstrata, mas em defesa da ordem jurídica superior que o rei havia traído. Os responsáveis por essa resistência podiam ser tanto os nobres quanto os conselhos ou as corporações eclesiásticas, dependendo das circunstâncias. Resistir ao tirano era, nesse sentido, um dever moral e religioso, mais do que uma questão política. O direito de resistência era assim um limite natural e jurídico à autoridade real, embasado na moral cristã e na estrutura tradicional da sociedade feudal.
Ao longo de toda a obra, Kern evidencia como a Idade Média concebia o poder político de maneira teocrática e orgânica, e não contratual ou individualista como nas teorias modernas. A autoridade régia era inseparável da religião, da moral e da ordem cósmica cristã. O rei era visto como o primeiro entre os iguais, e seu poder estava intrinsecamente vinculado à justiça, fidelidade, temperança e serviço ao bem comum.
Em contraste com o absolutismo moderno, que separa o poder político da religião e da moral, a Idade Média concebia uma monarquia onde o poder era condicionado, limitado e subordinado a normas superiores. Assim, a obra de Fritz Kern revela uma sociedade medieval dotada de alta complexidade institucional e jurídica, que estabelecia equilíbrios de poder e formas legítimas de controle e oposição.
Essa subordinação do poder a uma esfera transcendente é, para Carvalho, a própria fonte da liberdade ocidental. A tensão permanente entre o poder do rei e a autoridade da Igreja impedia que qualquer um dos dois se tornasse absoluto, criando um "vácuo" de poder onde a consciência individual e as liberdades civis puderam florescer. O absolutismo moderno nasce precisamente quando o Estado, como no caso de Henrique VIII, absorve a função da Igreja, unificando as "duas espadas" numa só mão e eliminando qualquer instância de apelação superior a si mesmo (CARVALHO, 1998, p. 146). A obra de Kern, ao descrever o período anterior a essa fusão, revela a anatomia da liberdade europeia em sua origem.
A importância da obra de Kern reside também em sua crítica às interpretações simplistas da Idade Média como uma era de obscurantismo ou de autoritarismo primitivo. Ao contrário, Kern demonstra que o período medieval elaborou formas sofisticadas de limitação do poder e de integração entre direito, moral e política. Sua análise resgata o valor da tradição, do costume e da religião como fontes legítimas da ordem política — uma visão que, para Kern, se perdeu no racionalismo e no positivismo jurídico modernos.
Nesse sentido, o trabalho de Kern pode ser visto como um ato de "reforma da inteligência", nos termos de Carvalho: uma desconstrução de mitos historiográficos que servem de alicerce para as ideologias modernas. Ao demonstrar que o autoritarismo absolutista não é uma herança medieval, mas uma invenção moderna que se opõe radicalmente à estrutura de poder da Idade Média, Kern realiza uma operação análoga à que Carvalho se propõe em suas obras: a de desmascarar as narrativas falsas sobre as quais se assenta o poder intelectual e político contemporâneo.
Além disso, O Reinado e a Lei na Idade Média antecipa discussões sobre o Estado de direito, a legitimidade moral do poder e o papel das instituições no controle da autoridade. Ao abordar a legitimidade do poder a partir de sua submissão à lei e à justiça, Kern oferece uma reflexão perene sobre o fundamento ético da autoridade e o dever de resistência à injustiça, em qualquer época.
A obra de Fritz Kern é um marco na historiografia política medieval por mostrar que a Idade Média conheceu uma concepção de poder legítimo baseada em lei, justiça e moralidade, muito distante da caricatura de despotismo irracional. Ao afirmar que o poder do rei estava condicionado à lei divina e ao costume, e que era legítimo resistir a um governante injusto, Kern resgata um modelo de autoridade ordenada e limitada que ainda hoje oferece lições profundas para as reflexões sobre política, direito e ética.
Em suma, a análise de Kern fornece o pano de fundo histórico que confirma a tese central de Olavo de Carvalho sobre a tragédia moderna: a substituição de uma ordem política fundada na transcendência por uma ordem baseada na imanência do poder estatal. O rei medieval de Kern, limitado pela Lei de Deus e pelos costumes, é a antítese do "Estado-bedel" moderno, o Leviatã que, tendo devorado a autoridade espiritual, se torna a única fonte de lei, moral e sentido, pavimentando o caminho para o que Carvalho chama de "a religião de César" (CARVALHO, 1998, p. 174). A obra de Kern é, assim, o retrato de uma ordem perdida, cujo desaparecimento é a chave para a compreensão da patologia do poder no mundo contemporâneo.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
Livro - A Ideia da Razão de Estado na Idade Moderna, de Friedrich Meinecke (a oposição entre a moral cristã tradicional e as exigências práticas da política)
Publicado em 1924, Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte ("A Ideia da Razão de Estado na História Moderna") é uma obra fundamental da historiografia e da teoria política ocidental, em que o historiador alemão Friedrich Meinecke analisa o surgimento e a evolução do conceito de razão de Estado (Staatsräson) como categoria central da política moderna. A obra investiga como os governantes, no processo de formação dos Estados modernos, passaram a justificar ações que violavam preceitos morais ou religiosos em nome da estabilidade e da continuidade do poder político.
Para Meinecke, o conceito de razão de Estado expressa uma contradição trágica e persistente na modernidade: a oposição entre a moral cristã tradicional, orientada pela verdade, pela justiça e pela caridade, e as exigências práticas da política, voltadas para o sucesso, a eficácia e a sobrevivência do Estado. Essa tensão aparece de forma intensa no processo de centralização do poder nos séculos XVI e XVII, quando os príncipes europeus, diante de guerras religiosas, crises de autoridade e ameaças à ordem, passaram a justificar medidas excepcionais, muitas vezes imorais ou violentas, como necessárias para o bem maior do Estado.
A análise de Meinecke, embora perspicaz, circunscreve a "razão de Estado" como um conflito inerente à modernidade, mas a estrutura desse dilema é anterior e mais profunda do que a mera tensão entre a moralidade cristã e a prática política. Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", demonstra que a própria noção de um poder temporal que se legitima por sua capacidade de garantir a sobrevivência e a expansão — a Staatsräson de Meinecke — é um dos sintomas da ascensão do que ele chama de "religião de César". Este fenômeno não é apenas um arranjo pragmático, mas a consolidação de uma nova forma de sacralidade que transfere a autoridade última da esfera espiritual (a Igreja, a consciência individual) para a esfera temporal (o Estado). Nesse sentido, o conflito que Meinecke descreve não é apenas entre a moral cristã e a necessidade política, mas entre duas formas de religião: a religião do Deus transcendente, que fundamenta a moralidade objetiva, e a religião imanente do Estado, que se torna a fonte de sua própria moralidade (CARVALHO, 1998, p. 135).
O núcleo da obra é a dialética entre o ideal ético e o realismo político, entre a norma universal da moral cristã e a exceção pragmática do poder político. A política moderna, diz Meinecke, nasce marcada por esse conflito. A “razão de Estado” é, pois, a consciência da primazia da política sobre a ética individual ou, ao menos, sua autonomia relativa.
Aqui, a perspectiva do Objetivismo oferece um esclarecimento crucial: não existe uma "dialética" intrínseca entre o "ideal ético" e o "realismo político". Essa oposição é uma falsa alternativa. Uma ética racional e objetiva não é um conjunto de mandamentos transcendentais divorciados da realidade, mas um código de valores derivado das exigências factuais da sobrevivência do homem qua homem. A moralidade, portanto, é realismo. A suposta "exceção pragmática" que a razão de Estado invoca é, na verdade, a substituição de princípios de longo prazo (justiça, direitos individuais) por expediency de curto prazo. A "tragédia" de Meinecke é o resultado de uma filosofia que separou a moral da vida, a ética da razão, transformando a primeira num idealismo impraticável e a segunda num pragmatismo amoral. O governante que viola direitos individuais em nome da "segurança do Estado" não está fazendo uma escolha "trágica" entre dois bens, mas sacrificando a moralidade (a base da sobrevivência a longo prazo) em nome do poder arbitrário. A "autonomia relativa" da política é, na verdade, a declaração de que o poder coletivo pode operar fora dos limites da moralidade objetiva, o que é a definição de tirania.
A dimensão religiosa está presente em toda a análise de Meinecke. Ele mostra como, na cristandade medieval, a política estava subordinada à moral cristã, inspirada nos mandamentos do Evangelho e na autoridade da Igreja. O poder político era visto como um instrumento da ordem divina, e o príncipe era um servo da justiça e da moralidade objetiva.
Carvalho (1998) aprofunda essa análise ao mostrar que a subordinação da política à moral na Idade Média não era monolítica. A tensão entre o poder temporal (realeza) e a autoridade espiritual (sacerdócio) era a própria dinâmica da civilização ocidental. A "razão de Estado" emerge precisamente quando essa tensão se resolve em favor do poder temporal, que absorve as funções sacerdotais. O exemplo de Henrique VIII, que se torna chefe da Igreja, é paradigmático: ele não apenas subordina a Igreja, mas se torna a própria fonte da autoridade religiosa em seu reino. Ele é César ressuscitado, que agora não apenas governa os corpos, mas também as almas (CARVALHO, 1998, p. 146). A Staatsräson é, portanto, a teologia desse novo deus: o Estado auto-sacralizado.
Entretanto, com o advento da Reforma e do Renascimento, essa concepção foi profundamente abalada. A fragmentação religiosa, a emergência do individualismo e a nova visão do homem como ser ativo e autônomo abrem espaço para uma política que reconhece a realidade do pecado e da imperfeição humana. Meinecke observa que o pensamento moderno (sobretudo influenciado por Maquiavel) assume que o homem político precisa lidar com o mal, e até praticá-lo, se necessário, para evitar males maiores. Aqui se insere a ideia de que, em nome do bem público, é lícito ao governante cometer atos moralmente questionáveis.
Nesse sentido, a razão de Estado não nega a moral, mas a relativiza diante de circunstâncias extremas. O governante pode ser “forçado” a agir contra os princípios cristãos para preservar a ordem e evitar o caos. Trata-se de uma espécie de "pecado trágico", praticado por necessidade, com consciência do mal que implica, mas ainda assim justificável por seus fins.
A ideia de um "pecado trágico" justificável é uma racionalização sofisticada da imoralidade. Do ponto de vista do Objetivismo, um "mal necessário" é uma contradição em termos. A realidade não impõe contradições. Se um governante se vê diante de uma escolha onde todas as opções parecem exigir a violação de princípios morais, é porque premissas falsas ou ações imorais anteriores o colocaram nessa situação. A "necessidade" não é uma força metafísica, mas o resultado de escolhas humanas. O que é apresentado como "preservar a ordem" é, frequentemente, a preservação de uma ordem injusta ou de um poder ilegítimo. O verdadeiro "bem público" não pode ser alcançado através do sacrifício sistemático de indivíduos, pois a sociedade não é uma entidade com vida própria, mas uma associação de indivíduos. Sacrificar o indivíduo ao "bem público" é sacrificar o fim (os indivíduos) aos meios (a organização social).
Carvalho, por sua vez, mostra que a ascensão do Império americano e do Estado moderno em geral é precisamente a institucionalização dessa lógica: a criação de um poder que, em nome de "direitos" abstratos e de uma suposta "vontade coletiva", se arroga a autoridade de definir a moralidade e de intervir em todas as esferas da vida, tornando-se, ao final, o "Estado bedel" que governa uma massa de indivíduos atomizados e infantilizados (CARVALHO, 1998, p. 174).
Meinecke destaca que a Staatsräson se baseia em três pilares:
A necessidade (Notwendigkeit): a política é o reino das circunstâncias e das urgências. Muitas vezes, o governante se vê compelido a agir fora da norma para preservar o todo.
A segurança do Estado: o primeiro dever do príncipe moderno é garantir a sobrevivência do Estado, mesmo que isso exija medidas excepcionais.
A manutenção do poder: o poder político, uma vez instituído, precisa ser protegido contra inimigos internos e externos — mesmo à custa de transgressões morais.
Esses elementos definem um novo tipo de ética: uma ética da responsabilidade, em oposição à ética da convicção pura. O estadista deve considerar as consequências de seus atos e não apenas sua intenção moral.
Esses três pilares são, na verdade, os pilares da tirania. A "necessidade" é o álibi universal dos déspotas. A "segurança do Estado" é o pretexto para esmagar a segurança do indivíduo. A "manutenção do poder" é o objetivo que justifica qualquer meio. A distinção entre "ética da responsabilidade" e "ética da convicção" é outra falsa dicotomia. Uma ética racional é uma ética de responsabilidade para com a realidade e para com as consequências lógicas das próprias ações. Um homem de convicção racional age de forma responsável. A oposição só existe para quem sustenta convicções irracionais ou para quem define responsabilidade como a mera adaptação a pressões de curto prazo.
Carvalho (1998, p. 149) aponta para a emergência de um "corpo místico" da nação, como teorizado por Sir John Fortescue, que precede a formulação de Meinecke. A Staatsräson é a liturgia desse corpo místico, onde o Estado se torna uma entidade com uma vida e uma moralidade próprias, superior à dos indivíduos que o compõem. O governante, nesse quadro, não é mais um indivíduo responsável perante uma lei moral objetiva, mas o sumo sacerdote de um culto estatal.
Meinecke não é um apologista da razão de Estado sem limites. Ele reconhece que, se levada ao extremo, essa doutrina pode justificar o despotismo e o maquiavelismo mais cínico. Por isso, ele busca delimitar o espaço legítimo da razão de Estado dentro de um arcabouço ético e espiritual mais amplo.
Para ele, a política moderna precisa equilibrar dois princípios fundamentais:
A consciência moral do indivíduo e da tradição religiosa;
A necessidade histórica e política da preservação do Estado.
A razão de Estado, assim, deve ser controlada por uma consciência superior, por uma cultura política que respeite o ser humano como fim e não apenas como meio. Meinecke valoriza especialmente os momentos em que estadistas souberam unir realismo e moralidade, como foi o caso de Frederico, o Grande ou mesmo Bismarck em certos momentos.
A tentativa de Meinecke de "equilibrar" esses princípios é, em si, um sintoma da tragédia que ele descreve. Ele aceita a premissa de que há um conflito insolúvel entre a moral e a política, e então busca uma solução de compromisso. Mas a solução não está no compromisso, e sim na rejeição da premissa. O que se deve equilibrar não é a "moral" e a "necessidade", mas sim os direitos dos indivíduos e as funções legítimas de um governo. Um governo legítimo é aquele que protege os direitos individuais, e suas ações são limitadas por essa função. Não existe "necessidade histórica" que possa justificar a violação de direitos. O que existe são escolhas.
Carvalho demonstra que a modernidade, ao abandonar a autoridade espiritual transcendente, não deixou um vácuo, mas o preencheu com a autoridade imanente do Estado, do processo histórico e do "corpo místico" da nação ou da humanidade. A "consciência superior" que Meinecke invoca já não pode ser a da tradição religiosa, que foi destronada, nem a da consciência individual, que foi relativizada. Ela só pode ser a própria Staatsräson elevada à categoria de imperativo categórico. O controle se torna a própria doença que se pretendia curar. É a "inversão diabólica" que Carvalho descreve: a ascensão da força tomando o lugar do espírito (CARVALHO, 1998, p. 145).
Ao final da obra, Meinecke sugere que a razão de Estado é um produto inevitável da modernidade, mas também um desafio moral contínuo. A política é o lugar do trágico porque obriga os homens a escolher entre o bem e o necessário, entre a moral pessoal e a responsabilidade coletiva. A grandeza do estadista reside, justamente, na capacidade de carregar esse fardo com lucidez e nobreza, sem se entregar ao cinismo.
A conclusão de Meinecke é a resignação diante de uma premissa falsa. A verdadeira tragédia da política moderna não é a escolha entre o bem e o necessário, mas a recusa em definir o bem em termos racionais e objetivos, e a consequente entrega do destino humano ao "necessário", ou seja, ao poder bruto. A "grandeza do estadista" não reside em "carregar o fardo" da imoralidade, mas em recusar-se a carregá-lo; em subordinar a política à moral, e não o contrário.
Em última análise, a Staatsräson é a expressão da vitória do "homem de poder", o comissário, sobre o "homem de espírito", o iogue, para usar a tipologia de Koestler que Carvalho analisa. No entanto, como Carvalho demonstra, a síntese moderna cria a figura do "iogue-comissário", o líder que justifica a tirania temporal com argumentos espirituais imanentizados (CARVALHO, 1998, p. 124). Ele não apenas age "por necessidade", mas ensina que essa necessidade é o novo evangelho. A razão de Estado, portanto, não é apenas uma prática política; é a religião civil do mundo moderno, o culto a César que se consolida no Império Americano e se expande como a forma final da modernidade, como o próprio "Jardim das Aflições" para onde a civilização se dirige.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
Para Meinecke, o conceito de razão de Estado expressa uma contradição trágica e persistente na modernidade: a oposição entre a moral cristã tradicional, orientada pela verdade, pela justiça e pela caridade, e as exigências práticas da política, voltadas para o sucesso, a eficácia e a sobrevivência do Estado. Essa tensão aparece de forma intensa no processo de centralização do poder nos séculos XVI e XVII, quando os príncipes europeus, diante de guerras religiosas, crises de autoridade e ameaças à ordem, passaram a justificar medidas excepcionais, muitas vezes imorais ou violentas, como necessárias para o bem maior do Estado.
A análise de Meinecke, embora perspicaz, circunscreve a "razão de Estado" como um conflito inerente à modernidade, mas a estrutura desse dilema é anterior e mais profunda do que a mera tensão entre a moralidade cristã e a prática política. Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", demonstra que a própria noção de um poder temporal que se legitima por sua capacidade de garantir a sobrevivência e a expansão — a Staatsräson de Meinecke — é um dos sintomas da ascensão do que ele chama de "religião de César". Este fenômeno não é apenas um arranjo pragmático, mas a consolidação de uma nova forma de sacralidade que transfere a autoridade última da esfera espiritual (a Igreja, a consciência individual) para a esfera temporal (o Estado). Nesse sentido, o conflito que Meinecke descreve não é apenas entre a moral cristã e a necessidade política, mas entre duas formas de religião: a religião do Deus transcendente, que fundamenta a moralidade objetiva, e a religião imanente do Estado, que se torna a fonte de sua própria moralidade (CARVALHO, 1998, p. 135).
O núcleo da obra é a dialética entre o ideal ético e o realismo político, entre a norma universal da moral cristã e a exceção pragmática do poder político. A política moderna, diz Meinecke, nasce marcada por esse conflito. A “razão de Estado” é, pois, a consciência da primazia da política sobre a ética individual ou, ao menos, sua autonomia relativa.
Aqui, a perspectiva do Objetivismo oferece um esclarecimento crucial: não existe uma "dialética" intrínseca entre o "ideal ético" e o "realismo político". Essa oposição é uma falsa alternativa. Uma ética racional e objetiva não é um conjunto de mandamentos transcendentais divorciados da realidade, mas um código de valores derivado das exigências factuais da sobrevivência do homem qua homem. A moralidade, portanto, é realismo. A suposta "exceção pragmática" que a razão de Estado invoca é, na verdade, a substituição de princípios de longo prazo (justiça, direitos individuais) por expediency de curto prazo. A "tragédia" de Meinecke é o resultado de uma filosofia que separou a moral da vida, a ética da razão, transformando a primeira num idealismo impraticável e a segunda num pragmatismo amoral. O governante que viola direitos individuais em nome da "segurança do Estado" não está fazendo uma escolha "trágica" entre dois bens, mas sacrificando a moralidade (a base da sobrevivência a longo prazo) em nome do poder arbitrário. A "autonomia relativa" da política é, na verdade, a declaração de que o poder coletivo pode operar fora dos limites da moralidade objetiva, o que é a definição de tirania.
A dimensão religiosa está presente em toda a análise de Meinecke. Ele mostra como, na cristandade medieval, a política estava subordinada à moral cristã, inspirada nos mandamentos do Evangelho e na autoridade da Igreja. O poder político era visto como um instrumento da ordem divina, e o príncipe era um servo da justiça e da moralidade objetiva.
Carvalho (1998) aprofunda essa análise ao mostrar que a subordinação da política à moral na Idade Média não era monolítica. A tensão entre o poder temporal (realeza) e a autoridade espiritual (sacerdócio) era a própria dinâmica da civilização ocidental. A "razão de Estado" emerge precisamente quando essa tensão se resolve em favor do poder temporal, que absorve as funções sacerdotais. O exemplo de Henrique VIII, que se torna chefe da Igreja, é paradigmático: ele não apenas subordina a Igreja, mas se torna a própria fonte da autoridade religiosa em seu reino. Ele é César ressuscitado, que agora não apenas governa os corpos, mas também as almas (CARVALHO, 1998, p. 146). A Staatsräson é, portanto, a teologia desse novo deus: o Estado auto-sacralizado.
Entretanto, com o advento da Reforma e do Renascimento, essa concepção foi profundamente abalada. A fragmentação religiosa, a emergência do individualismo e a nova visão do homem como ser ativo e autônomo abrem espaço para uma política que reconhece a realidade do pecado e da imperfeição humana. Meinecke observa que o pensamento moderno (sobretudo influenciado por Maquiavel) assume que o homem político precisa lidar com o mal, e até praticá-lo, se necessário, para evitar males maiores. Aqui se insere a ideia de que, em nome do bem público, é lícito ao governante cometer atos moralmente questionáveis.
Nesse sentido, a razão de Estado não nega a moral, mas a relativiza diante de circunstâncias extremas. O governante pode ser “forçado” a agir contra os princípios cristãos para preservar a ordem e evitar o caos. Trata-se de uma espécie de "pecado trágico", praticado por necessidade, com consciência do mal que implica, mas ainda assim justificável por seus fins.
A ideia de um "pecado trágico" justificável é uma racionalização sofisticada da imoralidade. Do ponto de vista do Objetivismo, um "mal necessário" é uma contradição em termos. A realidade não impõe contradições. Se um governante se vê diante de uma escolha onde todas as opções parecem exigir a violação de princípios morais, é porque premissas falsas ou ações imorais anteriores o colocaram nessa situação. A "necessidade" não é uma força metafísica, mas o resultado de escolhas humanas. O que é apresentado como "preservar a ordem" é, frequentemente, a preservação de uma ordem injusta ou de um poder ilegítimo. O verdadeiro "bem público" não pode ser alcançado através do sacrifício sistemático de indivíduos, pois a sociedade não é uma entidade com vida própria, mas uma associação de indivíduos. Sacrificar o indivíduo ao "bem público" é sacrificar o fim (os indivíduos) aos meios (a organização social).
Carvalho, por sua vez, mostra que a ascensão do Império americano e do Estado moderno em geral é precisamente a institucionalização dessa lógica: a criação de um poder que, em nome de "direitos" abstratos e de uma suposta "vontade coletiva", se arroga a autoridade de definir a moralidade e de intervir em todas as esferas da vida, tornando-se, ao final, o "Estado bedel" que governa uma massa de indivíduos atomizados e infantilizados (CARVALHO, 1998, p. 174).
Meinecke destaca que a Staatsräson se baseia em três pilares:
A necessidade (Notwendigkeit): a política é o reino das circunstâncias e das urgências. Muitas vezes, o governante se vê compelido a agir fora da norma para preservar o todo.
A segurança do Estado: o primeiro dever do príncipe moderno é garantir a sobrevivência do Estado, mesmo que isso exija medidas excepcionais.
A manutenção do poder: o poder político, uma vez instituído, precisa ser protegido contra inimigos internos e externos — mesmo à custa de transgressões morais.
Esses elementos definem um novo tipo de ética: uma ética da responsabilidade, em oposição à ética da convicção pura. O estadista deve considerar as consequências de seus atos e não apenas sua intenção moral.
Esses três pilares são, na verdade, os pilares da tirania. A "necessidade" é o álibi universal dos déspotas. A "segurança do Estado" é o pretexto para esmagar a segurança do indivíduo. A "manutenção do poder" é o objetivo que justifica qualquer meio. A distinção entre "ética da responsabilidade" e "ética da convicção" é outra falsa dicotomia. Uma ética racional é uma ética de responsabilidade para com a realidade e para com as consequências lógicas das próprias ações. Um homem de convicção racional age de forma responsável. A oposição só existe para quem sustenta convicções irracionais ou para quem define responsabilidade como a mera adaptação a pressões de curto prazo.
Carvalho (1998, p. 149) aponta para a emergência de um "corpo místico" da nação, como teorizado por Sir John Fortescue, que precede a formulação de Meinecke. A Staatsräson é a liturgia desse corpo místico, onde o Estado se torna uma entidade com uma vida e uma moralidade próprias, superior à dos indivíduos que o compõem. O governante, nesse quadro, não é mais um indivíduo responsável perante uma lei moral objetiva, mas o sumo sacerdote de um culto estatal.
Meinecke não é um apologista da razão de Estado sem limites. Ele reconhece que, se levada ao extremo, essa doutrina pode justificar o despotismo e o maquiavelismo mais cínico. Por isso, ele busca delimitar o espaço legítimo da razão de Estado dentro de um arcabouço ético e espiritual mais amplo.
Para ele, a política moderna precisa equilibrar dois princípios fundamentais:
A consciência moral do indivíduo e da tradição religiosa;
A necessidade histórica e política da preservação do Estado.
A razão de Estado, assim, deve ser controlada por uma consciência superior, por uma cultura política que respeite o ser humano como fim e não apenas como meio. Meinecke valoriza especialmente os momentos em que estadistas souberam unir realismo e moralidade, como foi o caso de Frederico, o Grande ou mesmo Bismarck em certos momentos.
A tentativa de Meinecke de "equilibrar" esses princípios é, em si, um sintoma da tragédia que ele descreve. Ele aceita a premissa de que há um conflito insolúvel entre a moral e a política, e então busca uma solução de compromisso. Mas a solução não está no compromisso, e sim na rejeição da premissa. O que se deve equilibrar não é a "moral" e a "necessidade", mas sim os direitos dos indivíduos e as funções legítimas de um governo. Um governo legítimo é aquele que protege os direitos individuais, e suas ações são limitadas por essa função. Não existe "necessidade histórica" que possa justificar a violação de direitos. O que existe são escolhas.
Carvalho demonstra que a modernidade, ao abandonar a autoridade espiritual transcendente, não deixou um vácuo, mas o preencheu com a autoridade imanente do Estado, do processo histórico e do "corpo místico" da nação ou da humanidade. A "consciência superior" que Meinecke invoca já não pode ser a da tradição religiosa, que foi destronada, nem a da consciência individual, que foi relativizada. Ela só pode ser a própria Staatsräson elevada à categoria de imperativo categórico. O controle se torna a própria doença que se pretendia curar. É a "inversão diabólica" que Carvalho descreve: a ascensão da força tomando o lugar do espírito (CARVALHO, 1998, p. 145).
Ao final da obra, Meinecke sugere que a razão de Estado é um produto inevitável da modernidade, mas também um desafio moral contínuo. A política é o lugar do trágico porque obriga os homens a escolher entre o bem e o necessário, entre a moral pessoal e a responsabilidade coletiva. A grandeza do estadista reside, justamente, na capacidade de carregar esse fardo com lucidez e nobreza, sem se entregar ao cinismo.
A conclusão de Meinecke é a resignação diante de uma premissa falsa. A verdadeira tragédia da política moderna não é a escolha entre o bem e o necessário, mas a recusa em definir o bem em termos racionais e objetivos, e a consequente entrega do destino humano ao "necessário", ou seja, ao poder bruto. A "grandeza do estadista" não reside em "carregar o fardo" da imoralidade, mas em recusar-se a carregá-lo; em subordinar a política à moral, e não o contrário.
Em última análise, a Staatsräson é a expressão da vitória do "homem de poder", o comissário, sobre o "homem de espírito", o iogue, para usar a tipologia de Koestler que Carvalho analisa. No entanto, como Carvalho demonstra, a síntese moderna cria a figura do "iogue-comissário", o líder que justifica a tirania temporal com argumentos espirituais imanentizados (CARVALHO, 1998, p. 124). Ele não apenas age "por necessidade", mas ensina que essa necessidade é o novo evangelho. A razão de Estado, portanto, não é apenas uma prática política; é a religião civil do mundo moderno, o culto a César que se consolida no Império Americano e se expande como a forma final da modernidade, como o próprio "Jardim das Aflições" para onde a civilização se dirige.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
Livro - The Great Tradition de Frank Raymond Leavis (humanismo sem lar, uma tentativa de salvar os frutos da moralidade cristã)
Publicado em 1948, The Great Tradition de F. R. Leavis apresenta uma avaliação rigorosa da tradição literária inglesa, focada na profundidade moral, na consciência crítica e no valor humano das obras. O objetivo central de Leavis é identificar uma “tradição viva” de escritores que lidam com o que ele denomina "seriedade essencial". Para ele, a grande literatura é intrinsecamente moral, não por inculcar doutrinas, mas por se ocupar profundamente da qualidade da vida humana. Nesse seleto panteão, ele elege Jane Austen, George Eliot, Henry James e Joseph Conrad como os pilares dessa tradição, argumentando que eles tratam a vida com seriedade, revelam um discernimento moral constante e estão comprometidos com a verdade e a consciência individual.
O critério estético de Leavis é, portanto, inseparável da moralidade. Ele sustenta que o valor de um romance não deve ser medido apenas pelo estilo ou pela inovação formal, mas pela sua capacidade de explorar conflitos morais complexos e pela responsabilidade do autor diante da realidade. A "seriedade moral", segundo ele, "é o sinal da verdadeira literatura", pois o romancista digno desse nome não busca meramente entreter, mas exige do leitor uma resposta crítica e ética. A força de seu cânone reside tanto em quem ele inclui quanto em quem ele exclui. Grandes nomes como Laurence Sterne, Charles Dickens e Thomas Hardy são postos à margem. Sterne é visto como um "brincalhão irrelevante"; Dickens, um "grande entertainer" que, com a exceção de Hard Times, careceria da maturidade artística e intelectual dos eleitos; e Hardy é criticado por uma filosofia que Leavis considera mais uma postura do que uma exploração profunda da condição humana. Este ato de canonização, em si, é um exemplo perfeito da atuação da intelligentzia como uma nova casta sacerdotal. Leavis não se apresenta como um mero crítico, mas como um legislador do gosto e da moralidade, um sumo-sacerdote da cultura que detém o poder de separar os textos "sagrados" dos "profanos". Ao definir o que é "seriedade", ele exerce uma função que antes cabia à autoridade religiosa, transpondo-a para o domínio puramente secular da crítica literária. A exclusão de um "entertainer" como Dickens é sintomática: na nova religião da cultura, o entretenimento é suspeito, pois a "seriedade" exige uma solenidade quase litúrgica que não admite a leveza do profano.
Ainda que não discuta teologia diretamente, a questão religiosa é central e implícita em sua análise. Leavis enxerga na grande literatura um substituto moderno para a função que a religião outrora desempenhou na sociedade: a de ser guardiã do senso de valor humano, da responsabilidade e da dignidade. Ele aponta como autores secularizados, como George Eliot, preservam uma preocupação espiritual herdada da tradição cristã, traduzindo-a, no entanto, para uma ética humanista rigorosa. Este movimento é precisamente o que Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", descreve como a ascensão da religião civil. A literatura, na visão de Leavis, torna-se um dos braços da nova "teologia civil" do Estado moderno, um mecanismo para produzir cidadãos com a "consciência moral" adequada, agora desvinculada de qualquer sanção divina. O projeto de Leavis é um sintoma da "divinização do tempo", onde a História e a Cultura passam a ser o único campo em que o sentido da vida pode ser encontrado e cultivado, após a abolição da dimensão vertical e transcendente.
Para Olavo, o projeto de Leavis, embora nobre em sua defesa da alta cultura, é sintomático da própria crise que tenta remediar. A "grande tradição" de Leavis seria um exemplo de "humanismo sem lar": uma tentativa de salvar os frutos da moralidade cristã — seriedade, dignidade, consciência — enquanto se corta a raiz que os sustenta: a fé em Deus e numa ordem transcendente. A "consciência individual", tão valorizada por Leavis, quando desligada da consciência da imortalidade, torna-se frágil e subjetiva. De fato, para Carvalho, a consciência individual autêntica nasce da relação direta e dramática da alma com o transcendente, com o Deus que "sonda os rins e os corações" (p. 128). Uma vez rompido este eixo vertical, o que resta sob o nome de "consciência individual" é apenas uma construção psicológica, um eco de valores sociais, eminentemente vulnerável ao poder das ideologias e à tirania da opinião coletiva. A consciência de Leavis é, em suma, uma consciência desprovida do seu fundamento ontológico, suspensa no vácuo.
Nessa perspectiva, Leavis intui corretamente que a literatura lida com as grandes questões da alma, mas erra ao tratá-la como um substituto da religião, reduzindo-a a uma função puramente imanente e psicológica. Para Olavo, a grande arte não substitui a religião; ela expressa a realidade espiritual que a religião revela. Leavis diagnostica o sintoma da decadência cultural com brilhantismo, mas atribui sua causa a fatores sociais e literários, enquanto Olavo a veria como primariamente espiritual. A seriedade que Leavis admira em seus autores seria, assim, um resquício de uma cosmovisão teocêntrica que se torna cada vez mais insustentável. Trata-se de uma inversão gnosticista: a salvação não vem mais da fé e da revelação, mas de um conhecimento especial, uma "consciência crítica" acessível apenas a uma elite por meio da interpretação dos textos corretos (o cânone de Leavis). A literatura torna-se um evangelho secular, e o crítico literário, o seu intérprete autorizado, num processo que espelha a ascensão da "casta sacerdotal que arbitra em última instância as lutas políticas sem nelas se imiscuir diretamente" (p. 167).
O legado de The Great Tradition é inegável, mas, sob a ótica olaviana, a obra se revela um testemunho trágico. Leavis se torna o guardião de um tesouro cujo valor último ele já não consegue nomear. Ao tentar salvar a "seriedade moral" dentro de um quadro puramente humanista, ele acaba por ilustrar a impossibilidade de manter uma ética elevada sem o fundamento transcendente que lhe deu origem, oferecendo como remédio uma versão secularizada da própria doença. No fim das contas, o projeto de Leavis, com toda a sua nobreza, torna-se funcional à consolidação do "Estado bedel" (p. 173), o Estado moderno que assume para si todas as funções espirituais, morais e pedagógicas. Ao criar um código moral puramente intramundano, ele ajuda a formar o cidadão perfeito para esse Estado: um indivíduo de alta seriedade psicológica, mas metafisicamente órfão; um homem que debate com afinco a moralidade dos meios, por ter perdido completamente de vista a realidade dos fins. A "grande tradição" de Leavis, portanto, é a trilha sonora elegante para a descida ao Jardim das Aflições.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
O critério estético de Leavis é, portanto, inseparável da moralidade. Ele sustenta que o valor de um romance não deve ser medido apenas pelo estilo ou pela inovação formal, mas pela sua capacidade de explorar conflitos morais complexos e pela responsabilidade do autor diante da realidade. A "seriedade moral", segundo ele, "é o sinal da verdadeira literatura", pois o romancista digno desse nome não busca meramente entreter, mas exige do leitor uma resposta crítica e ética. A força de seu cânone reside tanto em quem ele inclui quanto em quem ele exclui. Grandes nomes como Laurence Sterne, Charles Dickens e Thomas Hardy são postos à margem. Sterne é visto como um "brincalhão irrelevante"; Dickens, um "grande entertainer" que, com a exceção de Hard Times, careceria da maturidade artística e intelectual dos eleitos; e Hardy é criticado por uma filosofia que Leavis considera mais uma postura do que uma exploração profunda da condição humana. Este ato de canonização, em si, é um exemplo perfeito da atuação da intelligentzia como uma nova casta sacerdotal. Leavis não se apresenta como um mero crítico, mas como um legislador do gosto e da moralidade, um sumo-sacerdote da cultura que detém o poder de separar os textos "sagrados" dos "profanos". Ao definir o que é "seriedade", ele exerce uma função que antes cabia à autoridade religiosa, transpondo-a para o domínio puramente secular da crítica literária. A exclusão de um "entertainer" como Dickens é sintomática: na nova religião da cultura, o entretenimento é suspeito, pois a "seriedade" exige uma solenidade quase litúrgica que não admite a leveza do profano.
Ainda que não discuta teologia diretamente, a questão religiosa é central e implícita em sua análise. Leavis enxerga na grande literatura um substituto moderno para a função que a religião outrora desempenhou na sociedade: a de ser guardiã do senso de valor humano, da responsabilidade e da dignidade. Ele aponta como autores secularizados, como George Eliot, preservam uma preocupação espiritual herdada da tradição cristã, traduzindo-a, no entanto, para uma ética humanista rigorosa. Este movimento é precisamente o que Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", descreve como a ascensão da religião civil. A literatura, na visão de Leavis, torna-se um dos braços da nova "teologia civil" do Estado moderno, um mecanismo para produzir cidadãos com a "consciência moral" adequada, agora desvinculada de qualquer sanção divina. O projeto de Leavis é um sintoma da "divinização do tempo", onde a História e a Cultura passam a ser o único campo em que o sentido da vida pode ser encontrado e cultivado, após a abolição da dimensão vertical e transcendente.
Para Olavo, o projeto de Leavis, embora nobre em sua defesa da alta cultura, é sintomático da própria crise que tenta remediar. A "grande tradição" de Leavis seria um exemplo de "humanismo sem lar": uma tentativa de salvar os frutos da moralidade cristã — seriedade, dignidade, consciência — enquanto se corta a raiz que os sustenta: a fé em Deus e numa ordem transcendente. A "consciência individual", tão valorizada por Leavis, quando desligada da consciência da imortalidade, torna-se frágil e subjetiva. De fato, para Carvalho, a consciência individual autêntica nasce da relação direta e dramática da alma com o transcendente, com o Deus que "sonda os rins e os corações" (p. 128). Uma vez rompido este eixo vertical, o que resta sob o nome de "consciência individual" é apenas uma construção psicológica, um eco de valores sociais, eminentemente vulnerável ao poder das ideologias e à tirania da opinião coletiva. A consciência de Leavis é, em suma, uma consciência desprovida do seu fundamento ontológico, suspensa no vácuo.
Nessa perspectiva, Leavis intui corretamente que a literatura lida com as grandes questões da alma, mas erra ao tratá-la como um substituto da religião, reduzindo-a a uma função puramente imanente e psicológica. Para Olavo, a grande arte não substitui a religião; ela expressa a realidade espiritual que a religião revela. Leavis diagnostica o sintoma da decadência cultural com brilhantismo, mas atribui sua causa a fatores sociais e literários, enquanto Olavo a veria como primariamente espiritual. A seriedade que Leavis admira em seus autores seria, assim, um resquício de uma cosmovisão teocêntrica que se torna cada vez mais insustentável. Trata-se de uma inversão gnosticista: a salvação não vem mais da fé e da revelação, mas de um conhecimento especial, uma "consciência crítica" acessível apenas a uma elite por meio da interpretação dos textos corretos (o cânone de Leavis). A literatura torna-se um evangelho secular, e o crítico literário, o seu intérprete autorizado, num processo que espelha a ascensão da "casta sacerdotal que arbitra em última instância as lutas políticas sem nelas se imiscuir diretamente" (p. 167).
O legado de The Great Tradition é inegável, mas, sob a ótica olaviana, a obra se revela um testemunho trágico. Leavis se torna o guardião de um tesouro cujo valor último ele já não consegue nomear. Ao tentar salvar a "seriedade moral" dentro de um quadro puramente humanista, ele acaba por ilustrar a impossibilidade de manter uma ética elevada sem o fundamento transcendente que lhe deu origem, oferecendo como remédio uma versão secularizada da própria doença. No fim das contas, o projeto de Leavis, com toda a sua nobreza, torna-se funcional à consolidação do "Estado bedel" (p. 173), o Estado moderno que assume para si todas as funções espirituais, morais e pedagógicas. Ao criar um código moral puramente intramundano, ele ajuda a formar o cidadão perfeito para esse Estado: um indivíduo de alta seriedade psicológica, mas metafisicamente órfão; um homem que debate com afinco a moralidade dos meios, por ter perdido completamente de vista a realidade dos fins. A "grande tradição" de Leavis, portanto, é a trilha sonora elegante para a descida ao Jardim das Aflições.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.