🇺🇸 A Canonização do Americanismo: Isaac Hecker e a Rendição da Igreja ao Liberalismo


No final de 2023, o episcopado católico dos Estados Unidos deu um passo decisivo em um projeto de profundo significado simbólico: a causa de canonização de Isaac Thomas Hecker, fundador dos Padres Paulistas, avançou com um endosso quase unânime. Este evento, no entanto, transcende a simples veneração de uma figura histórica; ele representa a tentativa de canonizar a própria ideologia que buscou harmonizar a Igreja com o regime liberal americano, um projeto condenado formalmente pelo Papa Leão XIII como a heresia do "Americanismo".

A figura de Isaac Hecker é o arquétipo do católico que, fascinado pelo dinamismo e pela aparente liberdade da república americana, buscou remodelar a fé para torná-la palatável a essa nova ordem. Seu programa consistia em uma adaptação estratégica: minimizar as doutrinas católicas que confrontavam diretamente o ethos liberal e pluralista, enquanto exaltava as virtudes "ativas" — como o empreendedorismo e o ativismo — em detrimento das virtudes "passivas", como a obediência e a vida contemplativa, consideradas inadequadas ao espírito pragmático do Novo Mundo. Essencialmente, Hecker propôs uma trégua, senão uma aliança, com os princípios de um regime fundado sobre a separação entre Igreja e Estado, um princípio que a Igreja sempre viu como uma capitulação da ordem sobrenatural à natural.

Christopher Ferrara observa que esse tipo de postura não foi uma peculiaridade isolada de Hecker, mas o reflexo de um movimento mais amplo que buscou reinterpretar o catolicismo segundo as categorias da democracia liberal americana. Para Ferrara (2012, p. 87-94), o chamado “Americanismo” não apenas suavizou a doutrina católica para adequá-la à sensibilidade republicana, mas inaugurou uma tradição de submissão voluntária à ordem constitucional americana, elevando-a à condição de paradigma da liberdade humana. Assim, o que deveria ser visto como um sistema político construído deliberadamente contra a Cristandade tornou-se, para figuras como Hecker, uma espécie de ambiente providencial para o florescimento da fé — uma inversão completa da perspectiva católica tradicional.

O que torna este avanço recente tão revelador é o apoio esmagador que recebeu da hierarquia. A aprovação da causa por uma margem de 230 votos a 7 não é um testemunho da santidade de Hecker, mas sim um diagnóstico alarmante da mentalidade do próprio episcopado. Ele demonstra que o projeto americanista não é mais uma tendência marginal, mas a posição dominante e institucionalizada. Os sucessores dos apóstolos na América parecem ter abandonado a missão de converter a nação ao Reinado Social de Cristo para, em vez disso, assumirem o papel de capelães de um regime liberal, vendo a sua estrutura não como um perigo para a fé, mas como o ambiente ideal para a sua prosperidade.

Ferrara (2012, p. 143) entende que este movimento de adaptação reflete uma traição à própria lógica missionária da Igreja: o liberalismo americano não deseja converter-se, mas converter a Igreja ao seu modelo; e a aceitação dessa premissa leva inevitavelmente à mutilação do Evangelho em nome da civilidade democrática. O episcopado, ao apoiar Hecker quase unanimemente, confirma que o liberalismo, outrora condenado como heresia por Leão XIII em Testem Benevolentiae (1899), foi assimilado de modo estrutural na mentalidade eclesial.

A linguagem usada para promover a causa é, em si, uma confissão. Descrever Hecker como "um santo para os nossos tempos" é uma inversão completa da concepção tradicional de santidade. Os santos não são canonizados por se conformarem aos seus tempos, mas por os desafiarem radicalmente em nome de uma verdade eterna. Um santo é quase sempre uma figura contra o seu tempo. Um "santo para os nossos tempos" de apostasia liberal só pode ser alguém cuja vida e doutrina não ofendem o espírito do mundo, mas o validam.

Ferrara (2012, p. 211-218) destaca que a idolatria da liberdade moderna produz exatamente este tipo de contrafação: santos que não santificam, mas legitimam. O “liberalismo católico”, ao absorver a retórica americana da liberdade individual, cria um simulacro de santidade cuja função principal é testemunhar não Cristo Rei, mas a suposta compatibilidade entre a Igreja e o regime fundado sobre a negação da Realeza social de Cristo.

Portanto, a iminente canonização de Hecker deve ser entendida como o ápice de um longo processo de autoneutralização da Igreja nos Estados Unidos. Seria o ato simbólico de batizar o erro, de declarar oficialmente que a fé católica e o credo liberal americano são compatíveis. Em última análise, significaria a santificação da própria rendição, elevando aos altares não um homem de virtude heróica na defesa da fé, mas o arquiteto da sua capitulação estratégica à ordem moderna.

Ferrara (2012, p. 365) resume essa contradição ao afirmar que o projeto americano jamais poderia ser visto como neutro: ele nasceu e se estruturou contra a Igreja. Dar-lhe uma auréola católica é não apenas uma falsificação histórica, mas uma espécie de apostasia prática. A canonização de Hecker, nesse sentido, não seria um ato de fidelidade, mas a legitimação final de um processo em que a Igreja, na América, aceitou tornar-se serva da ordem liberal em vez de sua crítica profética.

📚 Referência

FERRARA, Christopher A. Liberty, the God That Failed: Policing the Sacred and Constructing the Myths of the Secular State. Charlottesville: Angelico Press, 2012.