A Sombra do Pelagianismo: A Tentação Perene do Naturalismo Prático


O Pelagianismo, associado ao monge britânico Pelágio, constitui uma das primeiras grandes controvérsias doutrinárias da Igreja antiga após a era patrística inicial. Surgido no início do século V, sobretudo em Roma e no Norte da África, o movimento ofereceu uma interpretação da condição humana e da salvação que reduzia o papel da graça divina e exaltava a liberdade natural do homem (Brown, 1967). O confronto que se seguiu, especialmente com Santo Agostinho de Hipona, foi decisivo para a formulação da doutrina católica sobre o pecado original e a necessidade da graça. Essa heresia não é apenas um fato histórico, mas a formalização de uma tendência que ressurge constantemente sob o nome de naturalismo prático: a tentativa de organizar a vida intelectual e moral sem Deus, ou ao menos, sem a necessidade radical de Sua graça interior (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 275-277).

📜Doutrina Pelagiana

Segundo Pelágio, o pecado de Adão não teve como consequência uma corrupção ontológica da natureza humana, mas apenas um mau exemplo transmitido à posteridade. O homem, portanto, nasceria moralmente neutro e plenamente capaz de cumprir os mandamentos divinos mediante sua livre vontade (Rees, 1988).

Nesse quadro, a graça não seria um auxílio interior que cura e eleva a alma, mas apenas um conjunto de recursos externos: consistiria na lei mosaica, no Evangelho e no exemplo de Cristo (Kelly, 1978). Assim, a salvação dependeria, em última instância, do esforço humano. Ao negar a necessidade da graça interior, o Pelagianismo efetivamente nega a existência de um organismo espiritual infundido na alma — composto pela graça santificante, virtudes e dons do Espírito Santo —, reduzindo a vida cristã a um mero exercício de moralidade natural (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 48-51).

🙏A Resposta de Santo Agostinho

Contra tal concepção, Agostinho sustentou que o pecado original feriu profundamente a natureza humana, tornando-a incapaz de voltar-se para Deus por suas próprias forças. Essa ferida não é superficial; é uma desordem quádrupla que afeta toda a natureza humana: a ignorância no intelecto, a malícia na vontade, a fraqueza no apetite irascível e a concupiscência no apetite concupiscível (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 287-289). Para ele, sem a graça preveniente e sustentadora — uma graça que é ao mesmo tempo sanans (curativa) e elevans (elevante) —, o homem não pode sequer iniciar o caminho da salvação (Agostinho, c. 415). Sua célebre oração — Da quod iubes et iube quod vis (“Dá o que ordenas e ordena o que quiseres”) — resume a convicção de que a obediência só é possível graças ao dom divino.

Esse contraste entre Pelágio e Agostinho não era meramente teórico, mas tinha implicações pastorais e eclesiais: enquanto Pelágio acentuava o moralismo rigorista, Agostinho via na graça o fundamento da verdadeira liberdade cristã (Bonner, 1963) e o princípio de uma vida nova, essencialmente sobrenatural, que é a participação na própria vida íntima de Deus (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 48).

⚖️Condenação e Consequências

O Pelagianismo foi condenado sucessivamente pelos sínodos africanos de Cartago e Milevo (416), pelo Papa Inocêncio I e, de forma mais ampla, pelo Concílio de Cartago (418). Mais tarde, o Concílio de Éfeso (431) reiterou a condenação, declarando herética a negação do pecado original e da necessidade do batismo infantil (Denzinger, 2012).

Entretanto, a controvérsia gerou desenvolvimentos posteriores, como o semipelagianismo no sul da Gália, que tentou conciliar mérito humano e graça divina. Essa corrente foi condenada no Concílio de Orange (529), o qual reafirmou a prioridade absoluta da graça na ordem da salvação, declarando a necessidade da graça até mesmo para o initium fidei, o primeiro desejo de crer (Prosper de Aquitânia, c. 430).

⏳Repercussões Históricas

A controvérsia pelagiana marcou de forma decisiva a teologia ocidental. De um lado, reforçou a posição de Agostinho como teólogo da graça, cuja influência se estenderia à escolástica medieval e às Reformas do século XVI. De outro, o Pelagianismo permaneceu como paradigma de heresia antropocêntrica, frequentemente reatualizado em movimentos moralistas ou em correntes que minimizam a gravidade do pecado original (Rist, 1994). Esse espírito pelagiano ressurge sempre que a mortificação radical do “homem velho” é substituída por uma mera regulação das paixões, e a necessidade da oração interior é obscurecida por um ativismo que confia excessivamente nas forças naturais (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 275).

Assim, a disputa iniciada em torno de 410 não apenas definiu parâmetros dogmáticos, mas também delineou os contornos da reflexão cristã sobre liberdade, pecado e graça em toda a tradição latina.

✨Conclusão

O Pelagianismo (c. 410) deve ser compreendido não apenas como uma heresia antiga, mas como um desafio perene: a tentação de reduzir a salvação à força da vontade humana, obscurecendo a necessidade radical da graça de Cristo. A resposta agostiniana, confirmada pelo magistério, continua a ser um ponto de referência essencial para a teologia católica contemporânea, lembrando à alma que a vida cristã não é um mero aperfeiçoamento moral, mas a recepção e o desenvolvimento de uma vida divina, um organismo espiritual completo que nos torna verdadeiramente filhos de Deus (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 29).

📚Referências

AGOSTINHO. De natura et gratia. C. 415.
BONNER, G. St. Augustine of Hippo: Life and Controversies. Philadelphia: Westminster, 1963.
BROWN, P. Augustine of Hippo: A Biography. Berkeley: University of California Press, 1967.
DENZINGER, H. Enchiridion Symbolorum. 43. ed. Freiburg: Herder, 2012.
GARRIGOU-LAGRANGE, R. The Three Ages of the Interior Life. 2 vols. Rockford: TAN Books, 1989.
KELLY, J. N. D. Early Christian Doctrines. London: A & C Black, 1978.
PROSPER DE AQUITÂNIA. Epistula ad Rufinum. C. 430.
REES, B. R. Pelagius: A Reluctant Heretic. Woodbridge: Boydell Press, 1988.
RIST, J. Augustine: Ancient Thought Baptized. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.