A análise de Viganò, embora aplicada a eventos e personalidades recentes, descreve um processo cujos princípios e métodos encontram um paralelo exato e um fundamento teológico na reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio Vaticano II. Uma crítica teológica da Missa de Paulo VI revela que as mesmas forças, a mesma teologia e a mesma metodologia denunciadas hoje pelo arcebispo em relação ao governo da Igreja foram, de fato, os elementos constituintes da criação do novo rito.
A Teologia da Sinodalidade e a Teologia da Assembleia
A principal apreensão do Arcebispo Viganò é o que ele chama de “sinodalização”, um processo que visa “abolir a monarquia de direito divino e substituí-la pela fraude da soberania popular”. Esta transferência de poder do monarca para um corpo coletivo, na prática governado por uma elite burocrática, encontra seu exato análogo litúrgico na teologia que fundamenta a Missa de Paulo VI.
O erro doutrinal fundamental que permeia a nova missa é precisamente a teologia da assembleia. O ponto de partida deste sistema é a própria definição da Missa oferecida na Instrução Geral de 1969: “A Ceia do Senhor ou Missa é a assembleia sagrada [synaxis] ou congregação do povo de Deus reunido, que um sacerdote preside, a fim de celebrar o memorial do Senhor” (Cekada, 2010, p. 143). Nesta formulação, a essência da Missa não é mais o Sacrifício propiciatório oferecido por um sacerdote agindo in persona Christi, mas a reunião de uma comunidade. A assembleia torna-se “o grande sinal, que define e qualifica toda a celebração” (Cekada, 2010, p. 479).
O que Viganò descreve como a abolição da monarquia papal é, portanto, a aplicação no campo eclesiológico do mesmo princípio que operou a revolução na liturgia. A noção de que é a assembleia que celebra a Missa, enquanto o sacerdote meramente a “preside” (Cekada, 2010, p. 157-159), é a semente da qual brota a ideia de uma “Igreja sinodal” que governa a si mesma, reduzindo o Romano Pontífice a um presidente honorário. Em ambos os casos, a estrutura hierárquica divinamente instituída é substituída por um modelo coletivo e democrático.
O “Modernismo com Rosto Humano” e a Esperteza dos Revisores
O arcebispo teme que o estilo “persuasivo e afável” de Leão represente um “Modernismo com rosto humano”, capaz de enganar conservadores. Esta tática de mascarar uma ruptura radical com uma aparência de continuidade e moderação foi precisamente o método empregado pelos artífices da nova liturgia para superar a resistência às suas reformas.
Quando a Instrução Geral de 1969 foi recebida com forte oposição, resultando na Intervenção Ottaviani, a resposta do Vaticano não foi corrigir a substância do novo rito, mas sim publicar um novo Proêmio e uma Instrução Geral revisada (1970) que buscava “tridentinizar” a teologia protestante e modernista do original. Foi um exercício de camuflagem, uma “revisão esperta” (Cekada, 2010, p. 202) que sobrepôs uma terminologia tradicional a um rito que permanecia fundamentalmente inalterado e doutrinalmente problemático. O resultado foi uma “composição engenhosa de ambiguidade”, projetada para que os conservadores pudessem encontrar nela o que desejavam, enquanto os reformadores a interpretariam em seu sentido próprio como um instrumento para o próximo estágio da revolução (Cekada, 2010, p. 202).
A tática que Viganò atribui a Leão é, portanto, a mesma: manter a substância da revolução conciliar, mas apresentá-la com um “rosto humano” e uma linguagem que acalme os críticos, permitindo que o processo de autodestruição continue sem entraves.
A “Conversão Verde” e a Teologia do Mundo
Finalmente, o arcebispo aponta para os apelos de Leão por uma “conversão verde” como prova de sua submissão a uma agenda globalista. Do ponto de vista teológico, esta nova ênfase não é um desenvolvimento estranho, mas a conclusão lógica da eliminação sistemática da “teologia negativa” no novo Missal.
As orações tradicionais da Missa foram expurgadas de conceitos que enfatizavam o conflito entre o cristão e o espírito do mundo, como o desprezo pelas coisas terrenas (terrena despicere), a perdição, a ira divina, o inferno e a vaidade do mundo (Cekada, 2010, p. 283-295). Em seu lugar, foram introduzidos “novos valores e novas perspectivas”, refletindo uma “nova visão de valores humanos”. Uma das mais notáveis dessas novas perspectivas foi a introdução, nas orações da Apresentação dos Dons, de uma noção originária do jesuíta panteísta Pierre Teilhard de Chardin: a ideia de que o “trabalho do homem” se torna a “matéria” do sacrifício (Cekada, 2010, p. 359).
Essa teologia “cósmica”, que vê o desenvolvimento do mundo como o verdadeiro sacrifício a ser consagrado, fornece o exato fundamento para uma “Religião da Natureza” e uma “conversão verde”. Ao remover a distinção radical entre o sagrado e o profano, entre a graça e o mundo, a nova liturgia abriu o caminho para que preocupações seculares e materialistas, como a “emergência climática”, fossem elevadas ao nível de dogma religioso.
Em conclusão, a análise do Arcebispo Viganò sobre a “era Leão”, embora focada em eventos recentes, identifica com precisão os mesmos princípios revolucionários que foram implementados há mais de cinquenta anos na reforma da Missa. A sinodalidade é a eclesiologia da assembleia. O “rosto humano” é a tática dos revisores. A “conversão verde” é o fruto da teologia do mundo. A crise na Igreja não é uma série de eventos desconexos, mas o desdobramento lógico de uma única e mesma ruptura com a Tradição, cujo motor principal foi e continua sendo a Missa de Paulo VI.
Referências
CEKADA, Anthony. Obra de Mãos Humanas: Uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. 2. ed. West Chester: Philothea Press, 2010.
VIGANÒ, Carlo Maria. Temo que Leo represente o 'modernismo com rosto humano'. Entrevista concedida a Stephen Kokx. Kokx News, 18 jul. 2025.