- Em um artigo publicado em 23 de julho de 2025, intitulado “Paolo VI giocava su due tavoli” (Paulo VI jogava em dois tabuleiros), o autor Francesco Sartori, citando Robert Moynihan da revista Inside the Vatican, apresenta um diálogo revelador entre o Papa Paulo VI e o padre Louis Bouyer. O texto narra o momento em que Bouyer, um notável liturgista, tenta renunciar à Comissão para a reforma litúrgica, protestando contra as mudanças que ele acreditava serem impostas pelo próprio pontífice. Em resposta, Paulo VI expressa surpresa, afirmando que sempre se baseou na competência dos peritos e que era Annibale Bugnini quem lhe apresentava as propostas como sendo o desejo unânime da comissão. Bouyer, por sua vez, retruca que Bugnini usava o nome do Papa para forçar a aceitação de tais mudanças. O diálogo culmina com a dramática conclusão de Paulo VI: “Fui enganado; o padre Bugnini enganou a mim e a vós”. A narrativa, portanto, constrói uma imagem de Paulo VI como um líder bem-intencionado, mas iludido e manipulado, uma vítima do maquiavelismo de Bugnini, o grande arquiteto da reforma.
- Contudo, ao confrontar esta anedota com a vasta documentação histórica sobre o processo de criação da Missa Nova, esta imagem de um pontífice enganado se revela insustentável. A evidência demonstra, de maneira inequívoca, que Paulo VI não foi uma peça passiva no tabuleiro, mas sim o principal agente e promotor consciente da revolução litúrgica.
- A ideia de que Paulo VI foi um espectador inocente dos eventos que culminaram na demolição do Rito Romano tradicional contradiz frontalmente os fatos documentados sobre seu envolvimento direto, desde muito antes de seu pontificado. Giovanni Battista Montini, antes de se tornar Paulo VI, já era um entusiasta declarado dos principais expoentes da ala modernista do Movimento Litúrgico. Ele não apenas admirava os escritos de figuras como Josef Jungmann e Romano Guardini, mas também celebrava “missas dialogadas” baseadas em seus princípios, com “o grupo rezando em torno do altar” (Cekada, 2010, p. 66). Em sua carta pastoral de 1958, já como Arcebispo de Milão, Montini adotou abertamente a teologia da assembleia de Louis Bouyer, citando-a como a base para sua compreensão da liturgia (Cekada, 2010, p. 68). Esta adesão precoce aos princípios que fundamentariam a Missa Nova demonstra uma convicção de longa data, e não uma ignorância manipulada.
- Ademais, foi o próprio Paulo VI quem ressuscitou a carreira de Annibale Bugnini, que havia sido marginalizado, e lhe conferiu poder quase absoluto. Para implementar a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Paulo VI criou, em 1964, um novo órgão, o Consilium, contornando a mais conservadora Sagrada Congregação dos Ritos. Ele não apenas nomeou Bugnini como secretário desta nova e poderosa comissão, mas também lhe deu “poderes de longo alcance”, subordinando-o unicamente à sua própria autoridade (Cekada, 2010, p. 104). Tal manobra estratégica não corresponde à ação de um homem enganado, mas sim à de um líder que cria as estruturas necessárias para executar uma agenda bem definida.
- O envolvimento de Paulo VI não se limitou a nomeações e delegações. Ele acompanhou o processo de reforma com minuciosa atenção. Documentos revelam que o Papa revisou pessoalmente os textos mais controversos. Quando, em 1969, a controvérsia sobre a definição herética da Missa no parágrafo 7 da Instrução Geral emergiu, Paulo VI não se mostrou surpreso ou traído. Pelo contrário, já havia adotado a teologia da assembleia de Bouyer-Brilioth décadas antes (Cekada, 2010, p. 69). Mais revelador ainda é o fato de que, em 6 de novembro de 1968, Paulo VI escreveu de próprio punho sobre o livreto do Novo Ordo da Missa: “Eu aprovo em nome do Senhor. Paulo VI, Papa” (Cekada, 2010, p. 111). Da mesma forma, quando as diretrizes para as traduções vernáculas foram elaboradas — documentos que institucionalizaram a falsificação de textos latinos —, Paulo VI “cuidadosamente examinou tanto os esquemas em francês e em italiano”, fazendo 47 anotações e modificando pessoalmente “tanto no estilo, quanto na substância” antes de aprovar sua publicação (Cekada, 2010, p. 137).
- Por fim, a figura do padre Bouyer como um suposto defensor da Tradição no diálogo é profundamente irônica. A análise da reforma demonstra que a sua própria obra, Piedade Litúrgica, foi um dos principais veículos intelectuais para a demolição do ensinamento católico sobre a Missa. Foi Bouyer quem, desprezando séculos de liturgia católica como uma corrupção, propôs uma Missa centrada na “assembleia”, introduziu o conceito de múltiplas “presenças reais” para diluir a doutrina da Transubstanciação e atacou a teologia escolástica (Cekada, 2010, p. 55-65). A teologia da Missa apresentada na Instrução Geral de 1969 “é aquela de Louis Bouyer” (Cekada, 2010, p. 141). Portanto, o diálogo, se de fato ocorreu como relatado, retrata um dos arquitetos da revolução lamentando o edifício que ele mesmo ajudou a projetar, enquanto o engenheiro-chefe, Paulo VI, finge desconhecer a planta.
- A narrativa do engano serve apenas para absolver o principal responsável pela catástrofe litúrgica. Os fatos documentados demonstram que Paulo VI não foi uma vítima, mas o capitão consciente do navio que ele mesmo direcionou para a tempestade. O desastre não foi um acidente, mas o resultado de um plano deliberado, cuja responsabilidade final recai sobre a autoridade que o sancionou, promoveu e defendeu.
Cekada, Anthony. Obra de mãos humanas: uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. 2. ed., 2010.