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Livro: Os Novos Possuídos, de Jacques Ellul (Uma Análise Crítica das Religiões Seculares na Sociedade Técnica)


Contrariamente à crença generalizada de um mundo moderno racional e ateu, argumenta-se que a sociedade técnica ocidental não testemunhou o desaparecimento da religião, mas sim a sua metamorfose e transferência para novos objetos de adoração. O declínio da Cristandade não resultou em um vácuo espiritual, mas abriu espaço para o surgimento de novas e poderosas religiões seculares — notadamente a política, a técnica e o consumo —, que agora possuem o homem moderno de uma forma ainda mais totalitária, precisamente porque não são reconhecidas como tal.

⛪️A Desconstrução do Mito da Secularização
O ponto de partida para compreender a condição moderna é corrigir um erro monumental de diagnóstico. A tese da "secularização", popularizada por teólogos e sociólogos contemporâneos, baseia-se numa premissa falha: a de que o declínio do cristianismo equivale ao declínio da religião em geral. Esta generalização apressada confunde o fim de uma formação histórica específica, a Cristandade, com o fim da necessidade religiosa humana (Ellul, 1978).

A sociedade atual não é irreligiosa; ela é pós-cristã. Isso significa que, embora tenha abandonado as estruturas e evidências da Cristandade, ela permanece profundamente marcada por sua herança, manifestando traumas, esperanças e necessidades espirituais de forma secularizada. O homem não se tornou "adulto" e racional, mas simplesmente encontrou novos deuses para preencher o vazio deixado pelo antigo.

🧭O Deslocamento do Sagrado
O sagrado, entendido como a esfera do intocável, do absoluto e do que dá ordem ao mundo, não foi eliminado; foi deslocado. Enquanto nas sociedades tradicionais o sagrado se manifestava na Natureza, na sociedade moderna ele foi transferido para o novo ambiente existencial do homem: o meio técnico e social.

Identificam-se dois eixos principais em torno dos quais o novo sagrado se organiza, cada um com um polo de "ordem" e outro de "transgressão":
Eixo Técnica-Sexo: A Técnica representa o sagrado da ordem, da eficiência e do poder. É intocável e reverenciada. Em contrapartida, o Sexo, em sua exaltação moderna, funciona como o sagrado da transgressão, a força dionisíaca que promete a libertação do ordenamento técnico.
Eixo Estado-Nação/Revolução: O Estado-Nação consolida-se como o outro grande sagrado da ordem, exigindo devoção absoluta e sacrifício. A Revolução emerge como seu contrapolo, o sagrado da transgressão, a festa caótica que busca quebrar essa ordem estabelecida (Ellul, 1978).

📜O Surgimento de Novos Mitos
Este novo sagrado é sustentado por um conjunto de mitos modernos que funcionam como uma "imagem global motriz", uma representação irracional e poderosa que explica a realidade e mobiliza a ação. Os mitos fundamentais de nossa era são:
A História: Elevada de simples relato a uma força com sentido próprio, juíza suprema do bem e do mal.
A Ciência: Vista não como um método, mas como a fonte da verdade absoluta, da salvação e de um poder ilimitado.

Destes, derivam-se mitos secundários ou "imagens-crença" que permeiam o imaginário coletivo, como o Progresso, a Juventude, a Felicidade (material) e a luta de classes (Ellul, 1978).

🏛️As Manifestações das Religiões Seculares
Os novos sagrados e mitos se organizam em religiões concretas, com rituais, dogmas e comunidades de fiéis. Estas se manifestam de duas formas principais.

A primeira são as expressões mais difusas e espontâneas: a proliferação da astrologia e do esoterismo, a cultura hippie como busca por comunidade espiritual, o uso da droga como experiência mística, a exaltação da violência como ato purificador e, sobretudo, o consumo como um culto frenético, com a publicidade servindo de liturgia.

A segunda, e mais estruturada, é a Religião Política. Regimes como o nazismo, o stalinismo e o maoísmo não são meras ideologias, mas religiões seculares completas, que replicam ponto por ponto a estrutura de uma religião tradicional: o líder divinizado (Deus), o partido (clero), os textos fundadores (Escrituras Sagradas), a teoria (dogma), os heróis (santos) e os desfiles massivos (culto) (Ellul, 1978). Esta religiosidade política, longe de ser um fenômeno ultrapassado, estende-se hoje a toda a esfera política, transformando-a no campo do absoluto e da fé cega.

🔑Conclusão
O homem moderno não é um ser livre, racional e "adulto" que superou a religião. Pelo contrário, ele está profundamente possuído por novas forças religiosas que ele mesmo criou para tornar suportável sua existência em um mundo técnico, atroz e aparentemente sem sentido. Essas novas religiões são ainda mais alienantes porque, ao se apresentarem sob a máscara da racionalidade (Ciência), da objetividade (História) ou da pragmática (Política), impedem que o homem reconheça sua própria escravidão. A tarefa mais urgente não é adaptar a fé a um mundo falsamente diagnosticado como secular, mas sim desmascarar e combater esses novos ídolos que exigem o sacrifício total do homem (Ellul, 1978).

📚Referências
Ellul, Jacques. Os novos possuídos. Caracas: Monte Avila Editores, 1978.

👤Sobre o autor
Jacques Ellul foi um protestante reformado profundamente enraizado na tradição calvinista francesa, mas sempre em posição crítica frente às instituições eclesiásticas, tanto protestantes quanto católicas. Sua fé se caracterizava por um cristianismo radical, centrado na primazia absoluta da graça e na liberdade do crente diante do mundo, o que o levou a rejeitar qualquer forma de cristianismo institucionalizado ou de poder religioso. Em vez de defender uma restauração de formas tradicionais, Ellul assumia uma postura que muitos chamaram de “anarquismo cristão”, sublinhando a tensão entre o Evangelho e as estruturas humanas, e insistindo que a Igreja só é fiel quando se mantém livre da tentação de se identificar com o poder político, cultural ou técnico.