- Em um artigo intitulado “La resistenza e la fedeltà di Padre Calmel O.P.”, a escritora Cristina Siccardi, com base em um texto de Cristiana de Magistris, expõe a coerente e teologicamente fundamentada resistência do padre dominicano Roger-Thomas Calmel à revolução litúrgica imposta em 1969. O artigo destaca a inseparabilidade entre a Santa Missa e a Santa Doutrina, um princípio que norteou a decisão de Padre Calmel de recusar-se a celebrar o novo rito de Paulo VI. Siccardi relata como, apesar de sua firmeza, o padre não sofreu sanções canônicas, mas foi estrategicamente isolado para que sua voz fosse abafada. O texto traça um paralelo entre o sofrimento do religioso francês e a perseguição contemporânea a grupos fiéis à Tradição, como os Franciscanos da Imaculada, sublinhando que o Vetus Ordo continua a ser uma "pedra de tropeço" para aqueles que hostilizam a Tradição.
- O artigo cita longamente a célebre declaração de Padre Calmel de 27 de novembro de 1969, na qual ele articula as razões de sua recusa. A crítica central é dirigida à nova definição da Missa presente no Ordo Missae — “o raduno del popolo di Dio, presieduto da un sacerdote, per celebrare il memoriale del Signore” (a reunião do povo de Deus, presidida por um sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor) — que, segundo ele, omite o que é essencial à Missa católica e a torna irredutível à ceia protestante: o seu caráter de verdadeiro sacrifício que contém realmente o Sacrifício da Cruz. O padre dominicano argumenta, portanto, em virtude da obediência à fé e ao seu múnus sacerdotal, e não por cisma, denunciando a nova liturgia como um rito equívoco, fabricado sob uma definição que “cessou de ser católica”.
- A posição de Padre Calmel, longe de ser um ato de desobediência insubordinada, representa uma defesa do depósito da fé, cuja integridade está indissociavelmente ligada à lei da oração. Sua crítica principal, dirigida à nova definição de Missa, toca o cerne do erro doutrinal que permeia todo o novo rito. A obra que analisa teologicamente a Missa de Paulo VI demonstra precisamente que este é o erro subjacente: a substituição da doutrina católica do Sacrifício pela teologia da assembleia. O parágrafo 7 da Instrução Geral de 1969 define a Missa como uma “assembleia sagrada [...] do povo de Deus reunido”, um conceito que desloca o eixo do Sacrifício propiciatório oferecido a Deus para a comunidade reunida para celebrar um memorial (Cekada, 2010, p. 143). Esta nova definição, como observado por Padre Calmel, é de fato o fundamento de uma completa ruptura com a Tradição.
- O livro demonstra que, longe de ser um desenvolvimento orgânico, a Missa de Paulo VI “representou uma quebra ou ruptura com a tradição litúrgica existente” (Cekada, 2010, p. 471). A objeção de Padre Calmel de que o novo rito “favorece a confusão entre a Missa católica e a ceia protestante” é corroborada pela análise detalhada das fontes e dos objetivos dos reformadores. A nova teologia da assembleia, que informa todo o Novus Ordo, foi explicitamente formulada para “ultrapassar” as doutrinas católicas que os protestantes rejeitavam, como o sacrifício propiciatório e o sacerdócio sacramental (Cekada, 2010, p. 479). A eliminação do Ofertório tradicional, detestado pelos protestantes por sua linguagem sacrificial, e sua substituição pela “Preparação dos Dons”, baseada em orações judaicas e acentos teilhardianos, é um dos muitos exemplos dessa orientação ecumênica (Cekada, 2010, p. 349-359).
- Ademais, a crítica de Padre Calmel ao papel reduzido do sacerdote, que agora meramente “preside”, é precisa. A nova liturgia sistematicamente diminui a função única do sacerdote que age in persona Christi. A Instrução Geral de 1969 faz repetidas referências ao sacerdote como “presidente”, um termo que, no novo contexto, o despoja de seu caráter sacramental exclusivo para torná-lo um “diretor da assembleia” (Cekada, 2010, p. 162). A própria estrutura da Liturgia da Palavra, onde o sacerdote se torna um espectador passivo enquanto leigos proclamam as leituras, e o Rito de Comunhão, onde a distinção entre a comunhão do sacerdote e a do povo é diluída, confirmam esta mudança fundamental (Cekada, 2010, p. 314, 446).
- O artigo de Siccardi observa que, para impor a reforma, Paulo VI recorreu ao “argumento de autoridade”. Isto se torna compreensível quando se constata que o novo rito, sendo uma expressão de uma teologia estranha à Tradição, não podia ser defendido com os argumentos da própria Tradição. A nova Missa, como a obra demonstra, é uma construção artificial que encarna a teologia modernista e ecumênica de seus criadores. As mudanças não foram meramente cerimoniais, mas foram “ditadas pela nova teologia” (Cekada, 2010, p. 375), com o objetivo de alterar a própria “realidade doutrinal” (Cekada, 2010, p. 282).
- Portanto, a recusa de Padre Calmel não foi um ato contra a autoridade pontifícia em si, mas um ato de fidelidade à verdade, reconhecendo que a autoridade não pode ser usada para destruir o depósito que ela tem o dever de guardar. A sua declaração de que se atém “à Missa tradicional, aquela que foi codificada, mas não fabricada, por São Pio V” reflete a compreensão de que o novo rito foi, de fato, uma fabricação, uma “criação do zero” (Cekada, 2010, p. 351), e não um produto do desenvolvimento litúrgico orgânico.
- Em suma, a resistência de Padre Calmel foi profética. Ele identificou com clareza cirúrgica os princípios de uma revolução que corromperia a fé católica através da liturgia. As suas objeções, longe de serem uma reação sentimental, encontram sua prova documental e sua justificação teológica na análise sistemática do novo rito, que o revela como uma ruptura, uma restauração espúria da antiguidade e, em última análise, um instrumento para a destruição da doutrina católica na mente dos fiéis.
Referências
Cekada, Anthony. Obra de mãos humanas: uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. 2. ed. West Chester: Philothea Press, 2010.
Cekada, Anthony. Obra de mãos humanas: uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. 2. ed. West Chester: Philothea Press, 2010.