A encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, publicada em 3 de outubro de 2020, aborda temas como fraternidade e amizade social, propondo uma reflexão sobre a união e solidariedade global. O documento gerou diversas controvérsias e debates.
Uma crítica proeminente, especialmente em círculos católicos conservadores, aponta que Fratelli Tutti promove um relativismo religioso ao enfatizar a fraternidade universal sem distinguir claramente entre as diferentes religiões. A ênfase no diálogo inter-religioso, referenciando o Documento sobre a Fraternidade Humana assinado em Abu Dhabi, levanta preocupações sobre a possível diluição da singularidade do cristianismo.
As duras críticas da encíclica ao capitalismo global, particularmente à chamada "cultura do descarte", foram mal recebidas por líderes políticos e econômicos. A visão apresentada no documento é considerada negativa e unilateral em relação ao capitalismo, criticando as desigualdades econômicas, a concentração de riqueza e a exploração dos mais pobres.
A abordagem de Fratelli Tutti sobre imigração, defendendo maior acolhimento e integração dos migrantes, gerou controvérsia em países com políticas migratórias mais restritivas. Esta posição toca em um ponto sensível em sociedades onde a questão da imigração é altamente politizada.
Nota-se a ausência de discussões sobre temas tradicionalmente centrais na doutrina católica, como a defesa da vida desde a concepção, a sexualidade e a família. O foco quase exclusivo em questões sociais e econômicas é visto como uma negligência de aspectos fundamentais da moralidade cristã.
O uso de terminologia e ideias frequentemente associadas a movimentos seculares, como direitos humanos e justiça social, levanta questionamentos sobre a influência excessiva de uma visão secular do mundo no documento, potencialmente comprometendo a integridade da mensagem católica.
As críticas de Francisco tanto ao populismo quanto ao liberalismo econômico geraram debates sobre sua visão política. A encíclica é acusada de fazer uma leitura simplista e generalizada da política contemporânea.
O uso de termos específicos na encíclica também é alvo de controvérsia. O conceito de "dignidade" é empregado de maneira considerada ambígua, sem uma definição clara. A abordagem sobre "igualdade" por vezes obscurece a distinção entre igualdade e equidade, e a discussão sobre igualdade econômica é vista como uma simplificação excessiva de questões complexas. A posição do documento sobre igualdade de gênero é criticada como breve e insuficientemente detalhada.
O tratamento do conceito de "liberdade" na encíclica revela uma tensão entre liberdade individual e bem comum. A crítica ao liberalismo econômico é considerada uma simplificação excessiva dos benefícios da liberdade de mercado. Há preocupações de que a ênfase no combate ao discurso de ódio possa ser interpretada como uma restrição à liberdade de expressão.
A ênfase na "fraternidade universal" é vista como uma potencial diluição da identidade católica e uma minimização da importância da evangelização cristã. Existe o temor de que o conceito, como apresentado na encíclica, possa levar a um relativismo moral. A aplicabilidade prática da fraternidade universal em um mundo marcado por profundas divisões é questionada.
A citação de figuras históricas como Martin Luther King Jr., Mahatma Gandhi e Desmond Tutu como exemplos de líderes que promoveram a fraternidade universal gerou debates. Questiona-se a seleção dessas figuras não católicas, argumentando-se que isso pode relativizar a centralidade de Cristo na promoção da paz e da justiça. A interpretação dos legados desses líderes é considerada seletiva e potencialmente simplificada, não reconhecendo plenamente as complexidades e críticas que enfrentaram em vida.
A interpretação e aplicação dos ensinamentos de São Francisco de Assis na encíclica também são alvo de controvérsia. Argumenta-se que o conceito de "fraternidade universal" foi descontextualizado do seu significado original na tradição franciscana. A aplicação do termo a um contexto mais secular e pluralista é vista como uma simplificação ou adaptação inadequada do conceito original.
A encíclica é criticada por focar seletivamente nos aspectos mais "modernos" ou socialmente aceitáveis da vida de São Francisco, ignorando dimensões que podem não se alinhar tão claramente com a agenda social e política atual. O documento é acusado de negligenciar o zelo missionário de São Francisco, que não apenas promoveu a paz e o diálogo, mas também buscou converter outros à fé cristã.
A simplificação do relacionamento de São Francisco com a natureza também é questionada. Embora a encíclica destaque o amor do santo pela natureza, argumenta-se que essa visão pode simplificar sua teologia, que via a natureza como uma criação de Deus a ser respeitada, mas sempre em um contexto teocêntrico.
Estas controvérsias refletem as tensões entre a mensagem pastoral de Francisco e as diversas interpretações e expectativas sobre o papel da Igreja no mundo moderno. Elas destacam as dificuldades de se aplicar ensinamentos modernistas à doutrina católica sem que se coloque em jogo a sua identidade e a sua fé.