A peste mortífera do comunismo e seu processo oculto (análise da Carta Encíclica Divinis Redemptoris, do Sumo Pontífice Papa Pio XI)


  1. Publicada em 19 de março de 1937, a Carta Encíclica Divinis Redemptoris, do Sumo Pontífice Papa Pio XI, dirige-se ao episcopado universal com o fito de condenar o "comunismo ateu", descrever sua doutrina, expor a doutrina católica oposta e indicar os remédios para combatê-lo. O documento surge num contexto de grave ameaça, em que o movimento comunista, já consolidado na Rússia e em expansão, se apresentava como um perigo universal para a civilização cristã, desencadeando perseguições violentas no México e na Espanha.
  2. A presente análise não busca avaliar a Encíclica em seu mérito teológico ou canônico geral, mas sim examiná-la estritamente através da lente do processo histórico e metafísico da Revolução e da Contra-Revolução. Busca-se compreender em que medida o documento papal, ao tratar da manifestação comunista, aborda a natureza processiva do mal que a gerou.
  3. É inegável a força com que a Encíclica identifica e condena a "peste mortífera" do comunismo, qualificado como "intrinsecamente perverso" (PIO XI, 1937, para. 58). Ao descrever seus frutos de terror, perseguição e destruição da ordem, bem como ao expor a falsidade de seu ideal redentor (PIO XI, 1937, para. 8), o documento papal ergue uma barreira doutrinária de suma importância contra a manifestação mais aguda do espírito revolucionário de seu tempo. A descrição dos "horrores do comunismo em Espanha", onde se destrói "tudo quanto existe de autoridade e subordinação" (PIO XI, 1937, para. 20), ecoa a descrição da Revolução como um movimento que visa destruir a ordem legítima (OLIVEIRA, 1998, p. 15.
  4. Contudo, uma análise aprofundada revela uma lacuna fundamental quando se confronta a perspectiva da Encíclica com a natureza una e processiva da Revolução. O documento aborda o comunismo como a "revolução dos nossos dias", que "parece ultrapassar em violência e amplitude todas as perseguições que a Igreja tem padecido" (PIO XI, 1937, para. 2). Trata-o, portanto, como o mal supremo de sua época, mas não o enquadra com a devida clareza como o resultado necessário e a terceira etapa de um único processo que se desenrola há séculos. A Revolução não é um conjunto de crises isoladas, mas "um processo crítico já cinco vezes secular, um longo sistema de causas e efeitos" (OLIVEIRA, 1998, p. 4). O comunismo, nesta perspectiva, não é um fenômeno novo, mas o requinte da Revolução Francesa, que por sua vez requintou a Pseudo-Reforma (OLIVEIRA, 1998, p. 11).
  5. A Encíclica reconhece que "o liberalismo preparou o caminho ao comunismo" (PIO XI, 1937, para. 16) e que este mal teve origem nos "desvarios duma filosofia que de há muito porfia por separar a ciência e a vida da fé da Igreja" (PIO XI, 1937, para. 4). Esta observação é correta, mas parcial. Ela aponta para a etapa anterior — a Segunda Revolução — sem, contudo, delinear a genealogia completa do processo. Não se apresenta a cadeia contínua que liga as três grandes revoluções da História do Ocidente - a Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o Comunismo - como "episódios de uma só Revolução" (OLIVEIRA, 1998, p. 2). Ao focar na manifestação mais recente e violenta, a análise do documento deixa na penumbra a unidade do fenômeno que a produziu.
  6. Aqui, a análise de Olavo de Carvalho sobre a genealogia das ideologias modernas oferece um aprofundamento crucial. Para ele, a separação entre ciência e fé, mencionada por Pio XI, é apenas um sintoma de um processo mais profundo: a "divinização do espaço e do tempo", que substitui a dimensão vertical e transcendente (a relação da alma com Deus) por uma dimensão puramente horizontal e imanente (a relação do homem com o cosmos e com a história). O comunismo, com sua promessa de redenção intramundana através do processo histórico, é a culminação lógica dessa inversão metafísica. A "peste mortífera" não é, portanto, apenas uma filosofia equivocada, mas a consequência inevitável da amputação da realidade, um projeto de "transformar o mundo" sem primeiro "compreendê-lo" em sua totalidade (CARVALHO, 1998, p. 77). A Encíclica, ao não diagnosticar esta mutação cosmológica que se inicia no Renascimento, combate o sintoma mais agudo sem nomear a doença em sua raiz metafísica.
  7. Ademais, a raiz mais profunda da Revolução não reside meramente em sistemas filosóficos, mas numa "explosão de orgulho e sensualidade" (OLIVEIRA, 1998, p. 2). São estas duas paixões desordenadas que, em última análise, movem o processo revolucionário. O orgulho gera o igualitarismo radical, que odeia toda e qualquer hierarquia e superioridade; a sensualidade gera o liberalismo, que se revolta contra todo freio e toda lei. A Encíclica descreve os efeitos do comunismo, como a negação da liberdade e a abolição da hierarquia (PIO XI, 1937, para. 10), mas não remonta de forma explícita a estes vícios capitais como a força propulsora mais íntima e possante do processo inteiro. O diagnóstico, portanto, detém-se no plano ideológico e sociológico, sem descer às profundezas da crise moral e metafísica que constitui a alma da Revolução.
  8. Do ponto de vista objetivista, essa "explosão de orgulho e sensualidade" pode ser compreendida como a revolta contra a realidade e a razão. O orgulho, aqui, é a primazia da consciência — o desejo de que a realidade se curve aos caprichos do indivíduo ou do coletivo. A sensualidade é a primazia do sentimento sobre a razão, a busca da satisfação imediata sem consideração pelas consequências. Ambas são formas de irracionalismo que negam o fato fundamental da existência: que "A é A". O comunismo, ao prometer a criação de um "novo homem" e de uma "nova sociedade" livre das leis da economia e da natureza humana, representa a politização máxima dessa revolta metafísica. É a tentativa de substituir a realidade objetiva por um desejo coletivo. A Encíclica condena os resultados práticos dessa tentativa, mas, ao atribuir a causa a "desvarios de uma filosofia", não identifica o erro epistemológico e metafísico fundamental: a negação da objetividade da realidade em favor do subjetivismo (individual ou coletivo).
  9. Por consequência, os remédios propostos, ainda que intrinsecamente bons e santos, parecem insuficientes diante da magnitude do processo. A Encíclica exorta à renovação da vida cristã, ao desapego dos bens, à caridade e à justiça social (PIO XI, 1937, para. 41, 44, 46, 49). Tais são, sem dúvida, os fundamentos de toda ordem cristã. Contudo, para combater um mal que é uma Revolução, o remédio específico é uma Contra-Revolução: "uma ação que é dirigida contra outra ação" (OLIVEIRA, 1998, p. 27), e que se define por ser "austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, antiigualitária e antiliberal" (OLIVEIRA, 1998, p. 28). A mera prática da justiça social, sem a denúncia e o combate direto ao espírito igualitário e liberal que infecta a sociedade, arrisca-se a ser um esforço que, embora meritório, não detém a marcha do processo revolucionário em suas causas mais profundas.
  10. A exortação à caridade e à justiça social, sem uma "reforma da inteligência" que restaure a capacidade de perceber a realidade em sua estrutura hierárquica, torna-se ineficaz ou até contraproducente. No ambiente mental criado pela Revolução, a própria palavra "justiça" foi esvaziada de seu sentido original e preenchida com o conteúdo do igualitarismo. Propor "justiça social" a uma mentalidade revolucionária é, na prática, alimentar sua sanha igualitária. O combate eficaz, portanto, não pode ser apenas moral, mas deve ser primordialmente intelectual e espiritual: deve-se restaurar a percepção da ordem do ser, da diferença ontológica entre o superior e o inferior, do vertical e do horizontal. Sem isso, os "remédios" se tornam meros paliativos aplicados a um corpo cuja estrutura metafísica já foi corrompida (CARVALHO, 1998, p. 182).
  11. Em suma, a Encíclica Divinis Redemptoris representa um ato de suprema importância do Magistério Eclesiástico, condenando com clareza e vigor a Terceira Revolução em sua fase comunista. Constitui um documento de combate indispensável contra os erros explícitos do marxismo. No entanto, analisada sob a ótica da processividade revolucionária, sua perspectiva se mostra incompleta. Ao não identificar explicitamente o comunismo como a consequência lógica e histórica das revoluções que o precederam, e ao não apontar para as paixões desordenadas do orgulho e da sensualidade como sua causa última, o documento combate o fruto mais amargo da Revolução, sem expor em toda a sua extensão a árvore envenenada que o gerou.
  12. Concluindo, a Encíclica agiu como um médico que diagnostica corretamente uma febre altíssima e prescreve um tratamento para baixá-la, mas não identifica o vírus que a causou. Do ponto de vista de Carvalho, esse "vírus" é o gnosticismo moderno — a crença de que o homem pode redimir a si mesmo e ao mundo através de um conhecimento (ou práxis) secreto que o coloca acima da ordem criada. O comunismo é apenas a forma mais politizada e virulenta desse gnosticismo. Ao não nomear esse inimigo em sua essência, a Igreja se viu combatendo suas manifestações sucessivas (liberalismo, socialismo, comunismo, etc.) sem jamais atacar a raiz comum que as nutre: a revolta gnóstica contra a condição humana e a ordem do ser (CARVALHO, 1998, p. 123-124).
Referências

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed. São Paulo: Artpress, 1998.
PIO XI, Papa. Carta Encíclica Divinis Redemptoris. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 19 mar. 1937. Disponível em: [URL de acesso à Encíclica]. Acesso em: [Data de acesso].