🔮A Ilusão da Razão e a Ascensão do Império Terreno (contra um racionalismo teológico puramente especulativo?)


O texto, de autoria de Robert Lazu Kmita, parte da tese de doutorado de Joseph Ratzinger sobre São Boaventura para diagnosticar a crise moderna. Ele destaca o alerta de Boaventura contra um racionalismo teológico puramente especulativo, que o santo identificou como a "Besta do Apocalipse". Este racionalismo, ao privilegiar a "luz natural da razão" em detrimento da fé e da "ciência infusa", esvazia a realidade de seu conteúdo simbólico e teofânico. O autor recorre a Jean Borella para argumentar que a física galileana provocou um "choque epistemológico", reduzindo o cosmo a mera geometria e tornando a Encarnação e a Ressurreição conceitos sem sentido num universo materialista. O modernismo teológico é apresentado como uma tentativa de adaptar a fé a essa nova mentalidade, e a reação neotomista, por ser excessivamente racionalista, é vista como inadequada. A solução, segundo o texto, reside no retorno a uma teologia mística que subordine a razão à fé e recupere o "primado do sobrenatural". A nota final, de "Chiesa e post-concilio", acusa Ratzinger de subjetivizar o conceito de Revelação, alinhando-o com o modernismo ao fundir a verdade revelada com o sujeito que a recebe (a Igreja).

A análise dos perigos de um racionalismo que se opõe à fé, embora perspicaz em seu diagnóstico sintomático, arrisca-se a confundir a natureza do adversário e, consequentemente, a eficácia do remédio. A crise descrita não nasce de um mero excesso de lógica ou de uma falha epistemológica inaugurada pela ciência moderna, mas de uma escolha espiritual e metafísica muito mais antiga: a deliberada amputação do horizonte da consciência para aprisioná-la nos limites do mundo físico e intramundano.

🧠A Verdadeira Natureza do Inimigo: A Escolha pelo Jardim Fechado
O problema central não é o "racionalismo" como exercício da lógica, mas o materialismo disfarçado de filosofia, cuja função primária é psicológica e não cognitiva. Trata-se de uma estratégia para obter a paz de espírito (a ataraxia de Epicuro) através da negação de tudo o que possa causar angústia: Deus, a imortalidade da alma, o juízo e o sentido transcendente da vida. O epicurismo, com sua cosmologia de átomos caindo ao acaso no vazio, já oferecia o protótipo perfeito de um universo esvaziado de propósito, onde os deuses, se existem, são indiferentes aos assuntos humanos. Este sistema não é uma busca pela verdade, mas uma fuga dela; um narcótico para a alma que teme o infinito (Carvalho, 1998). A razão, nesse contexto, não é um instrumento de conhecimento, mas uma ferramenta de autodefesa psíquica, usada para construir uma fortaleza ideológica contra a realidade transcendente. Os argumentos tornam-se meros pretextos para justificar uma decisão preexistente de não querer ver.

💥A Demolição da Realidade: Mais que um "Choque Epistemológico"
Atribuir à física galileana a destruição do universo simbólico é tomar o efeito pela causa. A ciência moderna não destruiu a capacidade teofânica do mundo; ela apenas floresceu num terreno cultural previamente arado por uma filosofia que já havia declarado a matéria como a única realidade. A redução do mundo a "pura geometria" é a consequência lógica de uma visão de mundo que, a priori, nega que as formas e as qualidades sensíveis possam ser veículos de um significado superior. O "choque" não foi o telescópio de Galileu, mas a aceitação de uma cosmovisão que transforma o cosmos (um todo ordenado e significativo) num mero universo (uma coleção de fatos brutos e sem finalidade). Essa mentalidade não é ciência, mas a religião civil do materialismo, que instrumentaliza a ciência para impor sua visão de mundo como a única "racional" e "objetiva", tratando qualquer outra percepção da realidade como "subjetiva" ou "primitiva" (Carvalho, 1998). O resultado é a substituição do mundo real por uma segunda realidade, artificial e empobrecida, administrada por uma elite intelectual.

🏛️A Religião Civil e a Ressurreição de César
Quando a autoridade espiritual da Igreja é enfraquecida e o homem é convencido de que o céu está vazio, o poder não desaparece; ele simplesmente migra do domínio espiritual para o temporal. O vácuo deixado por Deus é imediatamente preenchido por um novo candidato a absoluto: o Estado, a Sociedade, a Humanidade, a História. O "Culto da Razão" da Revolução Francesa foi apenas o batismo de uma nova fé: a religião do Império mundano, cujo objetivo não é a salvação da alma na eternidade, mas a construção de um paraíso terrestre sob a gestão de um poder centralizado (Carvalho, 1998). Esta é a verdadeira "Bestia" apocalíptica: o poder temporal que se arroga funções espirituais, prometendo a felicidade coletiva e exigindo, em troca, o controle total sobre a vida e a consciência dos indivíduos. Seus sacerdotes são os intelectuais, os engenheiros sociais e os burocratas, que administram as almas em nome de um bem comum puramente terreno.

⚔️A Inadequação da Resposta e a Natureza da Guerra
A crítica a um neotomismo "excessivamente racionalista" erra o alvo. O problema não foi o excesso de razão, mas uma falha catastrófica no diagnóstico da natureza do inimigo. Tentou-se combater com argumentos lógicos e silogismos uma força que não opera no plano do debate filosófico, mas no da guerra psicológica e da manipulação mágica da consciência. O adversário moderno não apresenta uma tese para ser refutada; ele lança um feitiço para paralisar a inteligência, usando a linguagem não para descrever a realidade, mas para hipnotizar e induzir um estado de sonolência mental (Carvalho, 1998). Discutir com ele é como tentar ler o Código Penal para um assaltante em pleno ato. A resposta adequada não seria uma teologia "mais mística", mas sim uma que fosse mais realista, capaz de desmascarar a fraude, de expor as intenções ocultas e de nomear o mal pelo seu nome. Exige-se uma atitude de combatente espiritual, não de debatedor acadêmico. A crise não é de epistemologia, mas de percepção da realidade e de coragem para nomeá-la.

Referências
Carvalho, Olavo de. O jardim das aflições: de Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o materialismo e a religião civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.