Decreto Unitatis Redintegratio: A Unidade da Igreja e o Perigo do Indiferentismo


O Concílio Vaticano II (1962–1965) inaugurou uma nova era na autocompreensão da Igreja, produzindo diversos documentos que marcaram uma mudança profunda no discurso e na prática da Igreja Católica. Entre eles, o Decreto Unitatis Redintegratio, promulgado por Paulo VI em 21 de novembro de 1964, trata da questão ecumênica, ou seja, do relacionamento da Igreja com comunidades cristãs separadas de Roma. Do ponto de vista tradicionalista, este documento representa uma ruptura substancial com a doutrina definida pelo Magistério sobre a unidade divinamente instituída, a integridade da verdade revelada e a natureza da heresia e do cisma (Gherardini, 2009).

📜A mudança na concepção de unidade da Igreja

Historicamente, a Igreja Católica entendeu a unidade como um dado ontológico e visível da sua própria natureza: a Igreja é una porque possui uma só fé, um só culto sacramental e um só governo sob o Romano Pontífice (Leão XIII, Papa, 1896). O decreto conciliar, contudo, descreve a unidade como algo imperfeito e ainda a ser realizado: afirma-se que, “esta unidade subsiste na Igreja Católica, mas fora dela há muitos elementos de santificação e verdade” (Unitatis Redintegratio, n. 3).

Do ponto de vista tradicionalista, essa formulação dilui a distinção clara entre a Igreja Católica e as comunidades heréticas ou cismáticas. Tal formulação é teologicamente perigosa, pois sugere que a Igreja de Cristo é algo mais amplo que a Igreja Católica, da qual esta seria apenas uma realização mais perfeita. Isso contradiz diretamente o ensinamento de que a única e verdadeira Igreja de Cristo é a Igreja Católica, seu Corpo Místico visível (Fenton, 1958, p. 76). A ideia de que a unidade está “incompleta” contradiz a eclesiologia anterior, segundo a qual a Igreja é desde sempre plenamente una, pois sua unidade é a própria unidade de Cristo, sua Cabeça. Indivíduos ou grupos se afastam dela por heresia ou cisma, mas a Igreja em si mesma não perde sua unidade intrínseca nem se torna "deficiente" (Fenton, 1958, p. 17).

⚖️Relativização da verdade

Outro ponto problemático é a noção de que “os irmãos separados” possuem “elementos de verdade e santificação” (Unitatis Redintegratio, n. 3). Embora seja teologicamente correto admitir que indivíduos fora da comunhão visível da Igreja possam receber graças de Deus, essas graças, se correspondidas, os conduzem infalivelmente em direção à unidade da Igreja Católica, pois não há salvação fora dela (Fenton, 1958, p. 54). A forma como o decreto formula essa questão sugere uma divisão da verdade entre várias comunidades cristãs, como se a verdade revelada fosse um conjunto de fragmentos espalhados, e não um depósito íntegro e indivisível confiado exclusivamente à Igreja Católica.

Este raciocínio se aproxima perigosamente do indiferentismo religioso condenado pelo Magistério, pois confere estatuto positivo a erros doutrinários, como a negação da sucessão apostólica (no protestantismo) ou a rejeição da primazia papal (no oriente cismático). Antes do Concílio, o magistério sempre qualificou tais erros como perigosos para a fé e contrários à salvação (Pio XI, Papa, 1928). A novidade conciliar está em tratar essas comunidades como “meios de salvação”, ainda que imperfeitos. Contudo, do ponto de vista da doutrina tradicional, uma comunidade fundada sobre a negação de uma verdade de fé não pode ser um "meio de salvação", mas sim um obstáculo objetivo à salvação, mesmo que indivíduos dentro dela possam ser salvos apesar dela, por ignorância invencível e pela graça que os move em direção à Igreja (Fenton, 1958, p. 65).

🌍Consequências práticas

A partir do decreto, a Igreja engajou-se oficialmente no movimento ecumênico, promovendo diálogos com protestantes e ortodoxos em termos de igualdade diplomática. Do ponto de vista tradicionalista, isso produziu dois efeitos principais:

Confusão doutrinal interna – Muitos fiéis passaram a acreditar que todas as religiões cristãs são igualmente válidas, levando ao enfraquecimento da convicção sobre a necessidade da Igreja para a salvação (extra Ecclesiam nulla salus). A crença de que todas as religiões cristãs são caminhos válidos para Deus reduz a uma "fórmula vazia" a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para alcançar a salvação eterna (Fenton, 1958, p. xi).

Paralisia missionária – O impulso missionário da Igreja, que brota da caridade de levar a única verdade salvífica a todos os homens, foi diminuído, pois a ênfase passou a recair mais no “diálogo” do que na conversão dos separados à única Arca da Salvação.

Esses efeitos foram previstos por críticos contemporâneos ao Concílio, como o Cardeal Ottaviani, que advertiu sobre a tentação de substituir a missão pela diplomacia religiosa (de Mattei, 2012).

✝️Conclusão

O decreto Unitatis Redintegratio representou uma mudança paradigmática na postura da Igreja Católica frente às comunidades cristãs separadas. Se, por um lado, buscou aproximar os irmãos afastados, por outro, sacrificou a clareza da doutrina sobre a unidade e a exclusividade da Igreja Católica como meio divinamente constituído e absolutamente necessário de salvação.

Do ponto de vista tradicionalista, tal documento é problemático não apenas em seu conteúdo, mas sobretudo em suas consequências práticas, que contribuíram para a crise de identidade eclesial e missionária do pós-Concílio. A crítica tradicional, portanto, insiste na necessidade de retomar a doutrina anterior, segundo a qual a verdadeira unidade não é fruto de negociações diplomáticas, mas da graça da conversão e do retorno à única Igreja de Cristo, que é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

📚Referências

de Mattei, R. (2012). Il Concilio Vaticano II. Una storia mai scritta. Torino: Lindau.
Fenton, J. C. (1958). The Catholic Church and Salvation: In the Light of Recent Pronouncements by the Holy See. Westminster, MD: The Newman Press.
Gherardini, B. (2009). Concilio Ecumenico Vaticano II. Un discorso da fare. Frigento: Casa Mariana Editrice.
Ottaviani, A., Cardeal. (1953). Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis.