Condenação ao Jansenismo: a negação da Graça e a gnose antropoteísta


O Papa Clemente XI condenou o jansenismo através da bula papal "Unigenitus", publicada em 1713. Essa ação foi uma resposta à crescente influência do movimento teológico e espiritual que surgiu no século XVII na França, opondo-se a certos aspectos do pensamento e da prática católica. Tratava-se, na verdade, de mais uma manifestação do "rio cársico" de uma heresia antiga, que ressurge sob novas roupagens para atacar a doutrina da salvação (Fedeli, 2011).

O jansenismo, baseado nas ideias do bispo Cornelius Jansenius, buscava aprofundar a doutrina da graça divina e da predestinação em sua obra "Augustinus". Contudo, este "aprofundamento" representou uma distorção radical da doutrina agostiniana, aproximando-a perigosamente do pessimismo gnóstico. Ao postular uma natureza humana irremediavelmente corrompida pelo pecado original, o jansenismo nega a bondade fundamental da criação, ecoando a crença gnóstica em um mundo falho, obra de um Demiurgo inferior (Fedeli, 2011, p. 160). A graça, nesse sistema, não é um auxílio que eleva e aperfeiçoa uma natureza boa, ainda que decaída, mas uma força irresistível que se impõe a uma vontade impotente e essencialmente má. O Jansenismo surgiu no contexto das controvérsias teológicas do período pós-Reforma, especialmente em relação às questões de graça e livre-arbítrio. O movimento ganhou força principalmente na França, com o mosteiro de Port-Royal-des-Champs se tornando um centro importante do pensamento jansenista.

Na "Unigenitus", o Papa condenou oficialmente 101 proposições extraídas das obras de Pasquier Quesnel, um teólogo jansenista. Essas proposições foram declaradas heréticas, contrárias à doutrina católica e subversivas à autoridade papal e eclesiástica. A condenação não foi meramente disciplinar, mas uma defesa da própria estrutura metafísica da fé, que compreende a bondade da criação, a realidade do livre-arbítrio e a cooperação do homem com a graça divina. A bula exigia que os jansenistas se retratassem e abandonassem suas posições.

Essa condenação reafirmou a importância da autoridade papal e a posição da Igreja em relação às doutrinas e práticas consideradas contrárias aos seus ensinamentos. Ao fazê-lo, a Igreja defendeu a síntese católica contra as tendências dualistas e pessimistas que, em última análise, opõem o Criador à criação e a graça à natureza.

📜Algumas das proposições condenadas incluíam:

A negação do poder da Igreja de usar força física.
Esta proposição revela a eclesiologia gnóstica subjacente, que anseia por uma "igreja pneumática", puramente espiritual e invisível, desprezando a realidade encarnada e temporal da Igreja Militante, que, como sociedade perfeita, possui os meios necessários para governar e proteger seus fiéis no mundo material (Fedeli, 2011, p. 271).

A afirmação de que o homem sempre coopera com os mandamentos de Deus.
Esta aparente ortodoxia oculta a doutrina da graça irresistível. O homem "coopera" não por um ato livre, mas porque a graça o move de forma inelutável, anulando o livre-arbítrio. Esta negação da liberdade é um traço fundamental do Antropoteísmo, que busca eximir o homem da responsabilidade moral e do estado de prova em que se encontra neste "vale de lágrimas" (Fedeli, 2011, p. 64).

A crítica ao estudo da filosofia moral contemporânea pelos ministros da Igreja.
Tal crítica reflete a aversão gnóstica à razão ('logikoi'), vista como uma ferramenta do Demiurgo, incapaz de compreender os mistérios divinos. A salvação viria não pelo intelecto que busca a verdade na realidade criada, mas por uma "iluminação" interior que despreza a ordem natural.

A ideia de que a graça diminuiu após o pecado de Adão.
Esta é a tese central do erro jansenista e sua mais clara conexão com a Gnose. Para a doutrina católica, a graça é um dom sobrenatural, gratuito, que eleva a natureza sem destruí-la. No jansenismo, a natureza humana após o pecado é tão radicalmente má que a graça não a aperfeiçoa, mas a substitui ou a anula. Temos aqui a reedição da divisão gnóstica da humanidade: os "pneumáticos", que recebem uma graça irresistível que os salva por sua natureza predestinada, e os "hílicos" ou "psíquicos", a massa condenada, abandonada em sua corrupção sem uma graça eficaz. A salvação deixa de ser uma possibilidade oferecida a todos para se tornar um decreto arbitrário que reflete um dualismo irreconciliável entre Deus e uma parte de sua criação (Fedeli, 2011, p. 94).

A elevação da consciência individual como juiz supremo da moralidade.
Aqui se manifesta o subjetivismo gnóstico, que substitui a autoridade objetiva da Igreja e da Lei de Deus pela "centelha divina" ou "luz interior" do indivíduo "eleito". É a negação da Igreja visível e hierárquica em favor de uma "igreja do espírito" sem dogmas e sem autoridade externa (Fedeli, 2011, p. 269).

A limitação das regras e obrigações humanas apenas às leis seculares.

A permissão para censurar atos e decretos da Sé Apostólica.

A subordinação da autoridade eclesiástica ao tribunal secular.

A dependência do poder eclesiástico ao poder secular.
Essas proposições, em conjunto, visam despojar a Igreja de sua autoridade sobrenatural e de sua soberania na ordem espiritual. Reduzir a Igreja a uma mera associação sujeita ao poder temporal é a consequência lógica de uma eclesiologia que nega sua fundação divina e sua natureza sacramental e hierárquica, transformando-a em uma instituição puramente humana.

A interpretação controversa sobre a poligamia no matrimônio.
Embora pareça um tema distinto, a desordem na moral matrimonial é consequência direta do ódio gnóstico à matéria e à procriação. Ao considerar a carne e a geração como obras do mal, a Gnose abre caminho tanto para um ascetismo antinatural quanto para a libertinagem mais abjeta, pois ambas as posturas negam o bem intrínseco do matrimônio como instituição divina (Fedeli, 2011, p. 252).

📚Referências

Fedeli, O. (2011). Antropoteísmo: a religião do homem. Editora Celta.