"De que maneira vivo? Temendo que se eu não fizer isto, irei para o inferno? Ou vivo também com aquela esperança, com a alegria da gratuidade da salvação em Jesus Cristo? É uma boa pergunta. E também a segunda: desprezo os Mandamentos? Não! Observo-os, mas não como absolutos, pois sei que quem me justifica é Jesus Cristo." PAPA FRANCISCO, AUDIÊNCIA GERAL, Aula Pablo VI, Quarta-feira, 18 de agosto de 2021 (1).
“Isto não é um dogma de fé. Isto que direi é uma coisa pessoal: gosto de pensar que o inferno está vazio”, declarou o Papa Francisco durante uma entrevista ao programa de televisão italiana Che Tempo Che Fa, conduzido por Fabio Fazio, em 14 de janeiro de 2024 (2).Crítica ao Relativismo do Inferno
A crítica ao relativismo do inferno concentra-se na ideia de que o conceito de inferno pode ser interpretado de maneira flexível ou subjetiva. Essa abordagem é vista como uma potencial redução da seriedade com que devem ser encaradas as consequências morais das ações humanas. O inferno, tradicionalmente entendido como um estado de separação eterna de Deus, é considerado por muitos teólogos e filósofos um elemento essencial da doutrina cristã, que serve para alertar sobre as implicações éticas das escolhas.
Minimização das Consequências Morais: Ao relativizar o conceito de inferno, existe o risco de minimizar a gravidade das ações humanas. Se prevalecer a crença de que as ações não têm consequências eternas definitivas, isso pode levar a uma moralidade mais permissiva e à desvalorização dos ensinamentos cristãos sobre pecado e arrependimento.
Desvio da Teologia Tradicional: A visão tradicional sobre o inferno, sustentada por interpretações bíblicas e pela tradição da Igreja, é considerada um desvio potencial quando o relativismo é aplicado, podendo afastar os fiéis de uma compreensão mais robusta e histórica da teologia cristã, levando à fragmentação das crenças fundamentais.
Impacto na Prática Religiosa: A ideia de viver sem medo do inferno pode resultar em uma prática religiosa menos comprometida. O temor saudável é frequentemente visto como um motivador para a vida moral e espiritual, e a ausência desse temor pode provocar apatia religiosa.
Enfim, falar de um "inferno vazio" soa mais como um movimento de relações públicas do que uma verdadeira reflexão teológica. Ao afirmar que isso "não é dogma de fé", ele parece abrir uma brecha para suavizar o rigor tradicional da Igreja sem realmente assumir uma posição firme. A ideia de “esvaziar o inferno” soa moralmente elevada, mas é fundamentalmente vazia: ignora as implicações reais de perdoar atrocidades graves, transformando o mal em uma abstração sem consequência.
Crítica ao Relativismo da Lei de Deus
Na segunda parte da fala do Papa Francisco, é discutida a observância dos Mandamentos não como absolutos, o que também gera críticas significativas:
Erosão dos Fundamentos Morais: Ao sugerir que os Mandamentos não são absolutos, há um risco de erosão dos fundamentos morais universais que sustentam a ética cristã. Essa visão pode ser interpretada como uma abertura para interpretações individuais excessivamente subjetivas sobre o que é certo ou errado.
Subjetividade nas Decisões Éticas: A observância dos Mandamentos dentro de um contexto mais amplo pode ser vista como promotora de subjetividade nas decisões éticas pessoais. Isso poderia resultar em cada indivíduo definindo seus próprios padrões morais, potencialmente contradizendo ensinamentos claros encontrados nas Escrituras.
Desconexão com a Tradição Cristã: Tal abordagem é percebida como uma desconexão com a tradição cristã histórica, na qual os Mandamentos são considerados diretrizes divinas imutáveis para a vida moral humana. Essa desconexão pode enfraquecer a coesão comunitária entre os fiéis e diluir as normas coletivas estabelecidas pela Igreja.
Antinomianismo
Existe também o perigo do antinomianismo — a ideia de que não há necessidade de seguir leis morais por se estar sob a graça — sendo promovido inadvertidamente por essa interpretação relativista dos Mandamentos.
Aniquilacionismo
Em março de 2018, uma controvérsia surgiu quando Eugenio Scalfari, o fundador do jornal italiano La Repubblica, afirmou que o Papa Francisco lhe disse que o inferno não existe e que as almas dos ímpios seriam aniquiladas. Segundo Scalfari, o Papa teria afirmado que as almas que não se arrependem simplesmente desaparecem, em vez de serem punidas eternamente.
Essa declaração causou alvoroço, já que a ideia de aniquilacionismo, é contrária à doutrina oficial da Igreja Católica, que ensina a existência do inferno como um estado de punição eterna. O aniquilacionismo é a crença de que os ímpios (aqueles que não são salvos) serão destruídos ou deixarão de existir após a morte, em vez de sofrerem punição eterna no inferno. Isso contraria a doutrina católica tradicional, que ensina a existência do inferno como um estado de punição eterna para os condenados.
No século IV durante a controvérsia em torno dos ensinamentos de Orígenes (185–253 d.C.), um dos primeiros teólogos cristãos de Alexandria, ele acreditava em uma forma de restauração universal (apocatástase), ou seja, que todas as almas, incluindo as dos ímpios e até Satanás, seriam eventualmente restauradas à comunhão com Deus. Embora Orígenes não tenha ensinado diretamente o aniquilacionismo, suas ideias sobre o destino das almas e o fim do sofrimento eterno influenciaram debates subsequentes que levariam ao desenvolvimento de diversas visões, incluindo o aniquilacionismo. Orígenes acreditava que o castigo no inferno não seria eterno, mas sim corretivo, uma visão que mais tarde seria considerada herética pela Igreja.Já no Sínodo de Constantinopla em 553 d.C., conhecido como o Segundo Concílio de Constantinopla, as ideias de Orígenes, particularmente sua visão de apocatástase, foram condenadas pela Igreja. Esse evento foi um marco na rejeição formal pela Igreja Católica de qualquer doutrina que negasse a eternidade do castigo no inferno, o que inclui o aniquilacionismo, como uma forma de heresia. Esse concílio reafirmou a crença ortodoxa na imortalidade da alma e na existência do inferno eterno como uma punição para os ímpios, em contraste com visões alternativas como a de Orígenes e, mais tarde, o aniquilacionismo.