Livro - The Great Tradition de Frank Raymond Leavis (humanismo sem lar, uma tentativa de salvar os frutos da moralidade cristã)


Publicado em 1948, The Great Tradition de F. R. Leavis apresenta uma avaliação rigorosa da tradição literária inglesa, focada na profundidade moral, na consciência crítica e no valor humano das obras. O objetivo central de Leavis é identificar uma “tradição viva” de escritores que lidam com o que ele denomina "seriedade essencial". Para ele, a grande literatura é intrinsecamente moral, não por inculcar doutrinas, mas por se ocupar profundamente da qualidade da vida humana. Nesse seleto panteão, ele elege Jane Austen, George Eliot, Henry James e Joseph Conrad como os pilares dessa tradição, argumentando que eles tratam a vida com seriedade, revelam um discernimento moral constante e estão comprometidos com a verdade e a consciência individual.

O critério estético de Leavis é, portanto, inseparável da moralidade. Ele sustenta que o valor de um romance não deve ser medido apenas pelo estilo ou pela inovação formal, mas pela sua capacidade de explorar conflitos morais complexos e pela responsabilidade do autor diante da realidade. A "seriedade moral", segundo ele, "é o sinal da verdadeira literatura", pois o romancista digno desse nome não busca meramente entreter, mas exige do leitor uma resposta crítica e ética. A força de seu cânone reside tanto em quem ele inclui quanto em quem ele exclui. Grandes nomes como Laurence Sterne, Charles Dickens e Thomas Hardy são postos à margem. Sterne é visto como um "brincalhão irrelevante"; Dickens, um "grande entertainer" que, com a exceção de Hard Times, careceria da maturidade artística e intelectual dos eleitos; e Hardy é criticado por uma filosofia que Leavis considera mais uma postura do que uma exploração profunda da condição humana. Este ato de canonização, em si, é um exemplo perfeito da atuação da intelligentzia como uma nova casta sacerdotal. Leavis não se apresenta como um mero crítico, mas como um legislador do gosto e da moralidade, um sumo-sacerdote da cultura que detém o poder de separar os textos "sagrados" dos "profanos". Ao definir o que é "seriedade", ele exerce uma função que antes cabia à autoridade religiosa, transpondo-a para o domínio puramente secular da crítica literária. A exclusão de um "entertainer" como Dickens é sintomática: na nova religião da cultura, o entretenimento é suspeito, pois a "seriedade" exige uma solenidade quase litúrgica que não admite a leveza do profano.

Ainda que não discuta teologia diretamente, a questão religiosa é central e implícita em sua análise. Leavis enxerga na grande literatura um substituto moderno para a função que a religião outrora desempenhou na sociedade: a de ser guardiã do senso de valor humano, da responsabilidade e da dignidade. Ele aponta como autores secularizados, como George Eliot, preservam uma preocupação espiritual herdada da tradição cristã, traduzindo-a, no entanto, para uma ética humanista rigorosa. Este movimento é precisamente o que Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", descreve como a ascensão da religião civil. A literatura, na visão de Leavis, torna-se um dos braços da nova "teologia civil" do Estado moderno, um mecanismo para produzir cidadãos com a "consciência moral" adequada, agora desvinculada de qualquer sanção divina. O projeto de Leavis é um sintoma da "divinização do tempo", onde a História e a Cultura passam a ser o único campo em que o sentido da vida pode ser encontrado e cultivado, após a abolição da dimensão vertical e transcendente.

Para Olavo, o projeto de Leavis, embora nobre em sua defesa da alta cultura, é sintomático da própria crise que tenta remediar. A "grande tradição" de Leavis seria um exemplo de "humanismo sem lar": uma tentativa de salvar os frutos da moralidade cristã — seriedade, dignidade, consciência — enquanto se corta a raiz que os sustenta: a fé em Deus e numa ordem transcendente. A "consciência individual", tão valorizada por Leavis, quando desligada da consciência da imortalidade, torna-se frágil e subjetiva. De fato, para Carvalho, a consciência individual autêntica nasce da relação direta e dramática da alma com o transcendente, com o Deus que "sonda os rins e os corações" (p. 128). Uma vez rompido este eixo vertical, o que resta sob o nome de "consciência individual" é apenas uma construção psicológica, um eco de valores sociais, eminentemente vulnerável ao poder das ideologias e à tirania da opinião coletiva. A consciência de Leavis é, em suma, uma consciência desprovida do seu fundamento ontológico, suspensa no vácuo.

Nessa perspectiva, Leavis intui corretamente que a literatura lida com as grandes questões da alma, mas erra ao tratá-la como um substituto da religião, reduzindo-a a uma função puramente imanente e psicológica. Para Olavo, a grande arte não substitui a religião; ela expressa a realidade espiritual que a religião revela. Leavis diagnostica o sintoma da decadência cultural com brilhantismo, mas atribui sua causa a fatores sociais e literários, enquanto Olavo a veria como primariamente espiritual. A seriedade que Leavis admira em seus autores seria, assim, um resquício de uma cosmovisão teocêntrica que se torna cada vez mais insustentável. Trata-se de uma inversão gnosticista: a salvação não vem mais da fé e da revelação, mas de um conhecimento especial, uma "consciência crítica" acessível apenas a uma elite por meio da interpretação dos textos corretos (o cânone de Leavis). A literatura torna-se um evangelho secular, e o crítico literário, o seu intérprete autorizado, num processo que espelha a ascensão da "casta sacerdotal que arbitra em última instância as lutas políticas sem nelas se imiscuir diretamente" (p. 167).

O legado de The Great Tradition é inegável, mas, sob a ótica olaviana, a obra se revela um testemunho trágico. Leavis se torna o guardião de um tesouro cujo valor último ele já não consegue nomear. Ao tentar salvar a "seriedade moral" dentro de um quadro puramente humanista, ele acaba por ilustrar a impossibilidade de manter uma ética elevada sem o fundamento transcendente que lhe deu origem, oferecendo como remédio uma versão secularizada da própria doença. No fim das contas, o projeto de Leavis, com toda a sua nobreza, torna-se funcional à consolidação do "Estado bedel" (p. 173), o Estado moderno que assume para si todas as funções espirituais, morais e pedagógicas. Ao criar um código moral puramente intramundano, ele ajuda a formar o cidadão perfeito para esse Estado: um indivíduo de alta seriedade psicológica, mas metafisicamente órfão; um homem que debate com afinco a moralidade dos meios, por ter perdido completamente de vista a realidade dos fins. A "grande tradição" de Leavis, portanto, é a trilha sonora elegante para a descida ao Jardim das Aflições.

Referência

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.