Da perspectiva da tradição católica, a narrativa moderna que apresenta a condenação de Galileu Galilei como o "embate definitivo entre a ciência autônoma e o dogma religioso" é não apenas uma simplificação anacrônica, mas uma distorção ideológica que serve aos interesses do modernismo e à mentalidade característica do nosso tempo. Essa visão, propagada por correntes laicistas e progressistas, ignora o contexto teológico, jurídico e científico da época, reduzindo um episódio complexo a um confronto maniqueísta entre "razão iluminada" e "obscurantismo eclesial". Em vez disso, a condenação de 1633 pela Sagrada Congregação do Santo Ofício representou uma defesa legítima da autoridade divinamente instituída da Igreja na interpretação das Sagradas Escrituras, contra uma hipótese científica ainda não comprovada e que ameaçava a unidade da fé. Longe de ser um "erro", foi um ato de prudência pastoral. O verdadeiro equívoco surge apenas no século XX, com o pedido de perdão promovido por João Paulo II, que constitui uma capitulação ao "espírito do século" (Amerio, 2011, p. 32), enfraquecendo a noção de uma autoridade perene e representando um sintoma da "autodemolição" da Igreja pós-conciliar (Amerio, 2011, p. 6).
🔭A Condenação de Galileu: Defesa da Verdade Revelada, não Erro
Para compreender o caso, é essencial retornar aos fatos históricos sem o filtro do historicismo moderno. Em 1616, a Congregação do Índice, sob a autoridade do Papa Paulo V, declarou o heliocentrismo copernicano como "falso e contrário à Sagrada Escritura", proibindo sua defesa como verdade absoluta. Isso não foi uma rejeição arbitrária da ciência, mas uma resposta a uma teoria que, na época, carecia de provas empíricas irrefutáveis – o próprio Galileu não conseguiu demonstrar o movimento da Terra com evidências conclusivas, como as paralaxes estelares, que só viriam séculos depois. A teoria permanecia, portanto, no campo da hipótese matemática, não da certeza física. Mais importante, o heliocentrismo colidia com passagens bíblicas interpretadas literalmente pela tradição patrística e magisterial, como Josué 10:12-13 ("Sol, detém-te em Gabaon"), que sugerem um geocentrismo cosmológico.
Galileu, um católico devoto, foi advertido em 1616 a não ensinar o heliocentrismo como fato, mas como hipótese. No entanto, em 1632, publicou o Diálogo Sobre os Dois Grandes Sistemas do Mundo, onde defendia abertamente a teoria copernicana, ridicularizando opositores e desobedecendo à injunção papal. Isso levou à sua condenação em 1633 por "veemente suspeita de heresia", com sentença de prisão domiciliar perpétua – uma pena branda para os padrões da época, sem tortura física, como mitos modernos alegam. Do ponto de vista tradicional, essa ação da Inquisição não foi um "embate" contra a ciência, mas uma afirmação da primazia da teologia sobre as ciências naturais. Como ensina o Concílio de Trento, a interpretação da Escritura pertence à Igreja, não a indivíduos privados, e a ciência deve se subordinar à Revelação quando há conflito aparente. Galileu, portanto, incorreu no erro de imiscuir-se em matéria teológica, propondo uma hermenêutica bíblica inovadora para a qual não possuía autoridade, prefigurando o princípio de independência que viria a ser a raiz das crises posteriores (Amerio, 2011, p. 22).
Essa perspectiva rejeita a ideia de um "conflito inerente" entre fé e razão. Pelo contrário, a Igreja fomentou a ciência medieval e renascentista. A condenação foi disciplinar, não dogmática infalível, e o geocentrismo nunca foi definido como artigo de fé irrevogável. Assim, chamar isso de "embate definitivo" é uma falsificação histórica que ignora como a Igreja permitiu o estudo hipotético do heliocentrismo após 1616 e removeu obras copernicanas do Índice em 1758.
🔄O Pedido de Perdão de João Paulo II: O Verdadeiro Desvio da Igreja Pós-Conciliar
Se a condenação de 1633 não foi um erro, o verdadeiro desvio surge no contexto do período pós-conciliar, culminando no pedido de perdão articulado por João Paulo II. Em 31 de outubro de 1992, o Papa reconheceu "erros" no processo contra Galileu, admitindo que teólogos da época falharam em distinguir entre a fé e as interpretações científicas mutáveis. Isso foi ampliado em 12 de março de 2000, durante o Grande Jubileu, quando João Paulo II pediu perdão público por "pecados dos filhos da Igreja", incluindo o tratamento dispensado a Galileu.
Da ótica da tradição, esse ato representa um erro mais profundo, influenciado pelo espírito do Concílio Vaticano II, que promoveu uma "abertura ao mundo" que, em muitos casos, se revelou uma "verdadeira invasão do pensamento mundano na Igreja" (Amerio, 2011, p. 9). Primeiramente, ao admitir "erros" onde não houve desvio doutrinal, o pedido enfraquece a autoridade do Magistério histórico, sugerindo que a Igreja pode "errar" em matérias ligadas à fé e à moral, o que contradiz a promessa de perenidade. Esta atitude é um exemplo da "denigração da Igreja histórica" (Amerio, 2011, p. 95), na qual o passado é julgado com a mentalidade do presente para justificar as transformações atuais.
Em segundo lugar, esse pedido promove um relativismo historicista, onde a verdade parece depender da época, negando a perenidade do dogma e da prudência pastoral que o protege. A Igreja parece pedir perdão por ter defendido a fé contra inovações perigosas. Isso reflete a perda da antítese essencial entre a Igreja e o mundo, uma acomodação ao invés de uma oposição sadia às várias circunstâncias históricas (Amerio, 2011, p. 3). Assim, o "embate definitivo" não foi em 1633, mas no século XX, quando a Igreja cedeu à autonomia da ciência secularizada, transformando a fé em algo subjetivo e apologético perante o mundo.
Em resumo, a perspectiva da tradição inverte a narrativa: a condenação de Galileu foi uma defesa da fé contra o erro incipiente, enquanto o pedido de perdão do século XX é o triunfo do espírito moderno, que convida a Igreja a se humilhar perante os ídolos seculares. Isso reforça a necessidade de retornar à doutrina perene, preservando a integridade católica contra as variações do tempo presente.
📚Referências
Amerio, Romano. Iota Unum: Estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida, 2011.
Galilei, Galileo. Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Tradução de Stillman Drake. Berkeley: University of California Press, 1967.
João Paulo II. Homilia no Dia do Perdão, 12 de março de 2000. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2000.