Um teólogo liberal sob vestes católicas
Newman é frequentemente celebrado como um “pai da ortodoxia moderna”, um exemplo de conversão sincera e uma ponte entre fé e razão. No entanto, sua teologia está profundamente marcada por princípios que antecipam o modernismo condenado por São Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907). Não é sem razão que o teólogo dominicano francês Réginald Garrigou-Lagrange, ao analisar os erros do modernismo nascente, cita ideias análogas às defendidas por Newman, sobretudo no que diz respeito à noção de desenvolvimento do dogma.
Na obra An Essay on the Development of Christian Doctrine (1845), Newman sustenta que o dogma pode evoluir de forma análoga ao desenvolvimento das ideias humanas, através de processos históricos e culturais. Isso abre brecha para o relativismo doutrinário, algo totalmente incompatível com o ensinamento tradicional da Igreja, segundo o qual a verdade revelada é imutável e não está sujeita à mutação dos tempos (Dei Filius, Vaticano I). O critério católico para o desenvolvimento do dogma, expresso por São Vicente de Lérins e reafirmado ao longo dos séculos, é que todo progresso ocorra in eodem scilicet dogmate, eodem sensu eademque sententia (no mesmo dogma, com o mesmo sentido e o mesmo juízo) (Amerio, p. 559). A teoria de Newman, contudo, ao propor sete "notas" ou critérios para discernir um desenvolvimento legítimo, desloca o fundamento da certeza da autoridade divina da Igreja para uma análise quase empírica e subjetiva. A verdade deixa de ser um objeto a ser conservado para se tornar um processo a ser verificado.
Esta abordagem arrisca transformar a substância em modalidade, como se a essência do dogma pudesse ser alterada sob o pretexto de uma nova formulação (Amerio, p. 559). O erro consiste em confundir o desenvolvimento orgânico de um princípio com uma mutação que o transforma em outra coisa, ad aliud.
O próprio P. Franzelin, importante teólogo jesuíta e perito do Concílio Vaticano I, já havia criticado duramente o uso que Newman fazia do conceito de “desenvolvimento do dogma”, por considerá-lo perigosamente próximo das teses historicistas.
Silêncios, omissões e ambiguidades
Newman escreveu milhares de páginas, mas raramente se pronunciava com clareza sobre pontos dogmáticos decisivos. Seu estilo é conhecido por sua ambiguidade calculada. Ele mesmo dizia que preferia não definir certas verdades para “não ferir susceptibilidades”. Essa postura é típica dos liberais católicos do século XIX, como Montalembert e Lacordaire, que tentavam conciliar a fé com os ideais da Revolução Francesa. O Papa Pio IX condenou essa tendência na encíclica Quanta Cura e no Syllabus Errorum (1864), ao qual Newman nunca demonstrou adesão explícita. Tal estilo, que evita a clareza em favor da polissemia, tornou-se o método característico da teologia pós-conciliar, na qual a ambiguidade dos textos permite interpretações opostas, destruindo a unidade doutrinal (Amerio, p. 62). A recusa em condenar o erro, preferindo o "remédio da misericórdia", como no discurso de abertura do Vaticano II, encontra um precedente intelectual nesta mentalidade que prefere a persuasão subjetiva à afirmação objetiva da verdade (Amerio, p. 65).
A tentativa de alguns de seus defensores — como o cardeal Avery Dulles — de absolver Newman dessas acusações com base em sua suposta ortodoxia tardia ignora o fato de que o núcleo de seu pensamento sempre permaneceu contaminado por uma epistemologia subjetivista e por uma eclesiologia historicista. Como observado no estudo sobre as transformações na Igreja, a linha que leva de Newman ao Vaticano II não é um desvio, mas um desenvolvimento lógico de sua teologia da consciência e da evolução doutrinária, que forneceram o arcabouço intelectual para justificar as variações pós-conciliares (Amerio, p. 558).
Um cavalo de Troia anglicano?
Não se pode compreender a benevolência da hierarquia católica com relação a Newman sem considerar o contexto de sua conversão. Ao abandonar o anglicanismo, Newman tornou-se uma espécie de troféu católico: uma figura de prestígio cultural que poderia ajudar na “conversão da Inglaterra”. Por isso, muitos de seus erros teológicos foram ignorados ou relativizados em nome de um bem diplomático maior. Aqui se manifesta o erro do cristianismo secundário, que julga a religião por seus efeitos subordinados em ordem à civilização ou ao prestígio mundano, fazendo-os prevalecer sobre os fins sobrenaturais que a caracterizam (Amerio, p. 2, 400). A utilidade ecuménica ou o ganho de reputação cultural são postos acima da pureza e da clareza da doutrina, numa inversão da ordem correta.
O problema é que esse silêncio cúmplice permitiu a entrada de ideias perigosas no interior da teologia católica. O modernismo, que se tornaria a “síntese de todas as heresias” (Pio X), encontrou em Newman não apenas um precursor, mas um modelo de “pensamento evolutivo” sobre os dogmas. Mesmo os teólogos mais prudentes que o defendem, como Ian Ker, admitem que Newman foi "o teólogo do subjetivismo cristão moderno".
A questão Ambrose St. John
Além dos problemas doutrinários, há o aspecto moral e simbólico da relação de Newman com o sacerdote Ambrose St. John, com quem viveu por mais de 30 anos e pediu para ser sepultado no mesmo túmulo. Embora não haja provas de escândalo objetivo, as cartas de Newman a St. John revelam um grau de intimidade afetiva que escandalizou mesmo comentaristas liberais — como no artigo do Guardian de 2008 que falava em "paixão sublimada". A decisão do Vaticano de não transferir seus restos mortais para um túmulo separado durante a beatificação foi, segundo muitos, uma maneira de evitar que essa questão ressurgisse.
A questão não é levantar acusações infundadas, mas reconhecer que a canonização de uma figura com tantos elementos ambíguos deveria ter exigido mais cautela e prudência, especialmente diante da crise moral atual na Igreja. Este episódio, independentemente do juízo moral, é sintomático de um relaxamento das formas e de um obscurecimento das distinções que caracterizavam a disciplina eclesiástica tradicional. A clareza das formas externas é um reflexo da clareza da substância interna; a ambiguidade nelas introduzida é um sintoma da corrupção desta.
Conclusão
A elevação de Newman ao título de Doutor da Igreja, além de pastoralmente inoportuna, representa a canonização de uma certa hermenêutica da ambiguidade. Sua teologia, marcada pelo subjetivismo, pelo evolucionismo doutrinal e por silêncios estratégicos, ajudou a minar a clareza da doutrina católica e preparar o terreno para os desastres do século XX. A crise contemporânea da Igreja consiste precisamente na substituição da verdade objetiva, imutável e transcendente, por um processo subjetivo, histórico e imanente. Em tal processo, Newman figura não como um baluarte contra o erro, mas como o pensador que forneceu as ferramentas intelectuais para a sua justificação. É legítimo perguntar se estamos diante de um verdadeiro mestre da fé ou de um Cavalo de Troia que, sob aparência de ortodoxia, introduziu na Igreja os germes da confusão contemporânea.
Referências
AMERIO, Romano. Iota Unum: estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida. Septiembre 2011.
FRANZELIN, Johannes B. De Divina Traditione et Scriptura. Roma, 1870.
GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Théologie du Saint Esprit. Paris: Gabalda, 1944.
KER, Ian. John Henry Newman: A Biography. Oxford: Oxford University Press, 1988.
PAPA PIO IX. Encíclica Quanta Cura e Syllabus Errorum, 1864.
PAPA SÃO PIO X. Encíclica Pascendi Dominici Gregis, 1907.
PRIMEIRO CONCÍLIO DO VATICANO. Constituição Dogmática Dei Filius, 1870.