Os nomes da crise e apostasia pós-vaticano II na igreja católica (que se inicia muito antes)


AutorDenominação da "Nova Religião"Data obra
Prosper GuérangerDecadência litúrgica / Modernismo1840
Félix Sardà y SalvanyLiberalismo como pecado1884
São Pio XModernismo / Síntese de todas as heresias1907
Louis BillotModernismo / Liberalismo teológico1907
Henri DelassusConspiração anticristã / Religião humanista1910
Dietrich von HildebrandSecularização interna1967
Tito CasiniTúnica rasgada1967
Jean MadiranHeresia do século XX1968
Gommar DePauwApostasia prática1968
Plinio Corrêa de OliveiraRevolução interna / Revolução anticristã1969
Paulo VIAuto-demolição da Igreja1972
Malachi MartinApostasia interna1987
Marcel LefebvreIgreja Conciliar / Nova religião1985
Romano AmerioNova orientação / Secularização interna1985
Orlando FedeliReligião do Concílio Vaticano II / Igreja Católica Leiga Romana1998
Mathias GaudronIgreja Conciliar1999
Anthony CekadaReligião do Novus Ordo / Igreja pós-conciliar2000
Carlo Maria ViganòIgreja global / Igreja sinodal2018

  1. Há momentos na história da Igreja em que os perigos exteriores – perseguições, heresias declaradas, cismas sangrentos – são menos destrutivos do que a corrupção silenciosa que se infiltra no âmago da fé viva, dentro das muralhas eclesiásticas. No presente caso, como nos adverte com clareza Dietrich von Hildebrand, enfrentamos uma ameaça de outro tipo: a devastação da vinha por mãos que, aparentemente, cuidam dela.
  2. Esta percepção de um inimigo interno, que age a partir de dentro e de modo oculto, é o ponto central da advertência apostólica contra as doutrinas modernistas. O perigo é identificado precisamente no fato de que “os fautores do erro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos”. Esta estratégia de infiltração torna a ameaça singularmente perigosa, pois opera “nas próprias veias e entranhas dela”, minando a fé a partir de uma posição de aparente lealdade e conhecimento íntimo (Pio X, 1907).
  3. Trata-se de uma transformação interior, um esvaziamento da substância sob a aparência da continuidade. Vários autores tentaram nomear essa realidade, e cada nome que deram é mais do que uma etiqueta: é uma janela aberta sobre os modos diversos como a fé pode ser traída sem ser formalmente negada. A seguir, ofereço uma reflexão sobre esses termos, interligando-os na moldura de uma mesma crise espiritual e teológica.
  4. Chamamos de apostasia o abandono da fé. O que Martin denuncia, porém, é uma forma interna, subterrânea, institucionalizada: uma apostasia que não se proclama, mas se infiltra. No interior da Companhia de Jesus, por exemplo, sob a liderança do Pe. Pedro Arrupe, ocorre uma mudança de paradigma: a salvação eterna cede lugar à libertação socioeconômica, o Cristo Redentor torna-se símbolo de luta contra opressões estruturais, e a missão ad gentes converte-se em ativismo político cultural. Esta apostasia interna não rompe com Roma, mas reinterpreta tudo — doutrina, liturgia, disciplina, santidade — sob novos e ambíguos critérios. O termo de Martin é cirúrgico: não estamos diante de uma ruptura visível, mas de uma mutação interior da fé católica (1987).
  5. A descrição de uma reinterpretação que substitui os fins sobrenaturais por fins temporais encontra um paralelo exato na análise do sistema modernista. Este sistema busca redefinir a missão da Igreja, afirmando que ela deve “amoldar-se” às “disposições civis” e que o católico, como cidadão, pode agir desprezando as ordens e repreensões eclesiásticas em nome do “bem da pátria”. Essa dissociação entre fé e vida, entre o crente e o cidadão, é a consequência direta de uma doutrina que subordina o espiritual ao temporal. A substituição da salvação das almas pela construção de uma nova ordem social é a aplicação prática do princípio modernista de que a “evolução religiosa deve ser coordenada com a evolução moral e intelectual”, ou seja, subordinada a elas (Pio X, 1907).
  6. Ademais, essa “mutação interior” é alcançada por uma astúcia deliberada, onde os promotores de tais ideias “fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto”. A tática não é a ruptura, mas a permanência estratégica dentro das estruturas eclesiais para transformá-las, pois admitem que “precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a” (Pio X, 1907).
  7. Quando Paulo VI confessou, com dor, que “por alguma fenda a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (1972), e que se vivia um tempo de “auto-demolição da Igreja”, reconhecia, mesmo que em termos velados, o fenômeno que Plinio Corrêa de Oliveira já havia delineado como parte da Revolução interna, que se disfarça de reforma. Essa auto-demolição não se dá por ataque externo, mas por ação dos próprios membros do corpo eclesial: teólogos, bispos, religiosos que, em nome da atualização, destroem a continuidade viva da Tradição. Liturgias deformadas, seminários esvaziados, ordens religiosas desfiguradas... tudo é apresentado como progresso — quando na verdade é abandono.
  8. Essa noção de “auto-demolição” descreve com precisão o efeito último do sistema modernista, que é apresentado como uma ameaça existencial. Seus adeptos “se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo”. O ataque não se dirige a ramos secundários, mas à própria raiz: “não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que meneiam eles o machado”. Ao destruir a raiz, o resultado inevitável é a ruína de toda a árvore, uma verdadeira auto-implosão da fé, pois “batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar” (Pio X, 1907).
  9. A lucidez do jornalista francês Jean Madiran em sua obra L’Hérésie du XXe siècle (2002) nos permite nomear um outro aspecto da crise: a heresia difusa, que não se apresenta como uma doutrina nova e herética, mas como um novo modo de crer, onde o pecado desaparece, a autoridade é relativizada e a Revelação é lida sob as lentes da mutabilidade histórica. Essa heresia não é uma tese: é um espírito, um sistema de pressupostos incompatíveis com a fé católica. Sua difusão foi favorecida por uma linguagem pastoral ambígua, que desarma a vigilância dos fiéis e mina os fundamentos da catequese, da moral e da liturgia.
  10. Esta “heresia difusa” é precisamente o que se define como a essência do modernismo, que não é apenas um erro isolado, mas “um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser”. O seu fundamento é, de fato, um “novo modo de crer”, pois desloca a base da fé do assentimento intelectual à verdade objetivamente revelada por Deus para um “sentimento religioso” subjetivo que “surge dos esconderijos da subconsciência”. Neste novo paradigma, a fé torna-se uma “experiência individual”, e a Revelação, a manifestação dessa experiência na consciência (Pio X, 1907).
  11. A consequência direta é a relativização e mutabilidade do dogma. As fórmulas dogmáticas, segundo esta visão, não exprimem uma verdade absoluta, mas são meros “símbolos” da experiência religiosa, que “devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também a variarem”. A autoridade é minada ao ser concebida não como instituída por Deus, mas como uma emanação da “coletividade das consciências”, à qual deve se submeter sob pena de se tornar “tirânica”. É, portanto, um sistema completo que, ao mesmo tempo que usa a linguagem católica, a esvazia de seu significado perene (Pio X, 1907).
  12. Para Mons. Lefebvre (1987), essa transformação tem nome claro: trata-se da constituição de uma "nova religião", distinta da fé católica perene, ainda que habitando suas estruturas visíveis. A “Igreja conciliar”, segundo ele, mantém a hierarquia, os sacramentos, os títulos, mas substitui a finalidade: já não é mais a salvação das almas, mas a construção de um mundo melhor, a promoção do diálogo, a inclusão social. Este conceito é mais do que polêmico - é trágico, porque insinua que a Igreja está sendo instrumentalizada para fins alheios à sua natureza sobrenatural. A nova religião é horizontal, imanente, desprovida da Cruz, da penitência, da adoração do mistério.
  13. A acusação de se estar diante de uma “nova religião” é a conclusão lógica da análise do modernismo, que é qualificado como “a síntese de todas as heresias”. Este sistema, ao afirmar que a religião católica “não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo” e que é, como as outras, um “fruto inteiramente espontâneo da natureza”, efetivamente “dá cabo de toda a ordem sobrenatural”. O resultado é uma religião puramente humana, horizontal e imanente, que inevitavelmente leva “ao ateísmo e na destruição de toda religião”. Seus dogmas, sacramentos e a própria Igreja são reinterpretados como produtos da evolução vital da consciência humana, e não como dons da graça divina. Trata-se, portanto, de um sistema que, sob o nome de catolicismo, propõe uma realidade radicalmente diferente (Pio X, 1907).
  14. Na imagem tocante usada por Tito Casini (1990), a Igreja é a túnica sem costura de Cristo - e essa túnica foi rasgada, sobretudo pela reforma litúrgica. A devastação do rito tradicional não é apenas estética ou disciplinar: é teológica, pois compromete a expressão visível da fé. A missa nova, ao abolir o silêncio, a sacralidade, o latim, o altar orientado, introduz uma nova compreensão de Deus e do homem. A liturgia reformada se torna, para muitos, o sacramento da nova teologia: centrada no homem, domesticada, rebaixada. Essa mutilação externa acompanha a mutação interior, como a forma manifesta a substância.
  15. A conexão entre a mutação interior da fé e a sua expressão externa no culto é um ponto central da crítica ao modernismo. Para os modernistas, o culto não é primariamente o ato de adoração devido a Deus, mas nasce da necessidade humana de “dar à religião, alguma coisa de sensível” e de propagá-la. Os sacramentos são reduzidos a “meros símbolos ou sinais”, cuja finalidade é nutrir o sentimento de fé, e não conferir a graça objetivamente. Consequentemente, a reforma do culto, para eles, é um imperativo para adaptar a sua forma externa à evolução do sentimento religioso. Clamam que “se devem diminuir as devoções externas e proibir que aumentem”. Uma liturgia que reflete uma teologia centrada no homem não é, portanto, um acidente, mas a aplicação coerente de um princípio teológico que esvazia o culto de seu caráter sobrenatural e sacrificial (Pio X, 1907).
  16. A forma mais sutil — e talvez mais eficaz — dessa crise é o que o Pe. Gommar DePauw chamou de “apostasia prática” (1968). Não se nega verbalmente o Credo, mas vive-se como se ele não fosse mais verdadeiro. As igrejas se tornam centros culturais, a moral católica é tratada como "ideal não realista", os sacramentos são administrados mecanicamente, e a evangelização é substituída por encontros inter-religiosos desprovidos de missão. Essa apostasia prática é a negação do Reino de Deus sob a aparência da caridade.
  17. Esta “apostasia prática” é a manifestação visível da duplicidade intrínseca ao pensamento modernista. O sistema defende uma separação radical entre fé e ciência, entre o crente e o historiador, e, por extensão, entre o crente e o cidadão. O modernista “escrevendo, pois, história, nenhuma menção fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam”. Esta esquizofrenia intelectual e moral, onde se afirma uma coisa na teoria e se vive outra na prática, é um dos traços distintivos do sistema. A fé é relegada a uma experiência subjetiva e privada, sem consequências diretas para a vida pública, científica ou social, levando a uma existência onde o Credo é afirmado verbalmente, mas negado na prática cotidiana pela adesão a princípios que lhe são contrários (Pio X, 1907).
  18. Ao descrever a crise como parte da Revolução anticristã, Plinio Corrêa (1969) enxerga o que muitos não viram: trata-se de uma etapa final de um processo multissecular de negação da autoridade, da transcendência e da hierarquia — que começou no humanismo renascentista, passou pelo protestantismo, iluminismo, socialismo, modernismo e chegou, finalmente, ao coração da Igreja. A revolução não ataca frontalmente: ela corrói por dentro, converte bispos em gestores, seminaristas em assistentes sociais, e religiosos em militantes de causas ambientais ou raciais — tudo isso sob a linguagem da “missão”.
  19. A interpretação do modernismo como o ápice de um processo revolucionário histórico é plenamente corroborada. O modernismo é definido como a “síntese de todas as heresias”, o ponto de convergência de todos os erros passados. A sua doutrina sobre a evolução dos dogmas é um “temerário e sacrílego atrevimento” que busca “introduzi-lo [o progresso humano] na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos”. A sua causa moral é a “soberba” e o “amor de novidades”, o mesmo espírito de rebelião que animou heresias anteriores. Ao abraçar e sistematizar os erros do racionalismo, do protestantismo e da filosofia imanentista, o modernismo representa, de fato, a chegada da revolução ao coração doutrinal da Igreja, buscando transformá-la de dentro para fora (Pio X, 1907).
  20. Cada termo é uma peça do mosaico da devastação: apostasia interna, heresia do século XX, nova religião, túnica rasgada, apostasia prática, auto-demolição, revolução anticristã. A pluralidade de nomes revela a complexidade do mal — mas também o esforço da consciência católica fiel em resistir.
  21. Nomear é não se submeter. Nomear é identificar a doença para salvar o corpo. É preciso, como exorta Hildebrand, “amar apaixonadamente a Igreja” — e por isso mesmo, recusar-se a silenciar diante de sua traição. Não se trata de nostalgia nem de rebeldia: trata-se de amor à Verdade, que é Cristo, e à sua Esposa, que não pode ser traída sem que se traia o próprio Deus.
Referências

PIO X, Papa. Pascendi Dominici Gregis: sobre as doutrinas modernistas. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1907.
MARTIN, Malachi . The Jesuits: The Society of Jesus and the Betrayal of the Roman Catholic Church (1987).
HILDEBRAND, Dietrich von. O cavalo de Troia na cidade de Deus. Tradução de Orlando Fedeli. São Paulo: Montfort, 1993. (Original publicado em 1967).
MADIRAN, Jean. A heresia do século XX. Tradução de Orlando Fedeli. São Paulo: Permanência, 2002. (Original publicado em 1968).
LEFEBVRE, Marcel. Carta aberta aos católicos perplexos. Tradução de Orlando Fedeli. São Paulo: Permanência, 1987. (Original publicado em 1985).
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Revolução e contra-revolução. 3. ed. São Paulo: Artpress, 1969.
CASINI, Tito. A túnica rasgada. Tradução de Orlando Fedeli. São Paulo: Montfort, 1990. (Original publicado em 1967).
DEPPAUW, Gommar. Apostasia prática: fundamentos da resistência católica tradicional. [Declarações e sermões]. Ave Maria Chapel, Westbury, NY, 1968.