Trata-se de uma transformação interior, um esvaziamento da substância sob a aparência da continuidade. Vários autores tentaram nomear essa realidade, e cada nome que deram é mais do que uma etiqueta: é uma janela aberta sobre os modos diversos como a fé pode ser traída sem ser formalmente negada. A seguir, ofereço uma reflexão sobre esses termos, interligando-os na moldura de uma mesma crise espiritual e teológica.
Chamamos de apostasia o abandono da fé. O que Martin denuncia, porém, é uma forma interna, subterrânea, institucionalizada: uma apostasia que não se proclama, mas se infiltra. No interior da Companhia de Jesus, por exemplo, sob a liderança do Pe. Pedro Arrupe, ocorre uma mudança de paradigma: a salvação eterna cede lugar à libertação socioeconômica, o Cristo Redentor torna-se símbolo de luta contra opressões estruturais, e a missão ad gentes converte-se em ativismo político cultural. Esta apostasia interna não rompe com Roma, mas reinterpreta tudo — doutrina, liturgia, disciplina, santidade — sob novos e ambíguos critérios. O termo de Martin é cirúrgico: não estamos diante de uma ruptura visível, mas de uma mutação interior da fé católica.
Quando Paulo VI confessou, com dor, que “por alguma fenda a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (1972), e que se vivia um tempo de “auto-demolição da Igreja”, reconhecia, mesmo que em termos velados, o fenômeno que Plinio Corrêa de Oliveira já havia delineado como parte da Revolução interna, que se disfarça de reforma. Essa auto-demolição não se dá por ataque externo, mas por ação dos próprios membros do corpo eclesial: teólogos, bispos, religiosos que, em nome da atualização, destroem a continuidade viva da Tradição. Liturgias deformadas, seminários esvaziados, ordens religiosas desfiguradas... tudo é apresentado como progresso — quando na verdade é abandono.
A lucidez do jornalista francês Jean Madiran em sua obra L’Hérésie du XXe siècle nos permite nomear um outro aspecto da crise: a heresia difusa, que não se apresenta como uma doutrina nova e herética, mas como um novo modo de crer, onde o pecado desaparece, a autoridade é relativizada e a Revelação é lida sob as lentes da mutabilidade histórica. Essa heresia não é uma tese: é um espírito, um sistema de pressupostos incompatíveis com a fé católica. Sua difusão foi favorecida por uma linguagem pastoral ambígua, que desarma a vigilância dos fiéis e mina os fundamentos da catequese, da moral e da liturgia.
Para Mons. Lefebvre, essa transformação tem nome claro: trata-se da constituição de uma "nova religião", distinta da fé católica perene, ainda que habitando suas estruturas visíveis. A “Igreja conciliar”, segundo ele, mantém a hierarquia, os sacramentos, os títulos, mas substitui a finalidade: já não é mais a salvação das almas, mas a construção de um mundo melhor, a promoção do diálogo, a inclusão social. Este conceito é mais do que polêmico - é trágico, porque insinua que a Igreja está sendo instrumentalizada para fins alheios à sua natureza sobrenatural. A nova religião é horizontal, imanente, desprovida da Cruz, da penitência, da adoração do mistério.
Na imagem tocante usada por Tito Casini, a Igreja é a túnica sem costura de Cristo - e essa túnica foi rasgada, sobretudo pela reforma litúrgica. A devastação do rito tradicional não é apenas estética ou disciplinar: é teológica, pois compromete a expressão visível da fé. A missa nova, ao abolir o silêncio, a sacralidade, o latim, o altar orientado, introduz uma nova compreensão de Deus e do homem. A liturgia reformada se torna, para muitos, o sacramento da nova teologia: centrada no homem, domesticada, rebaixada. Essa mutilação externa acompanha a mutação interior, como a forma manifesta a substância.
A forma mais sutil — e talvez mais eficaz — dessa crise é o que o Pe. Gommar DePauw chamou de “apostasia prática”. Não se nega verbalmente o Credo, mas vive-se como se ele não fosse mais verdadeiro. As igrejas se tornam centros culturais, a moral católica é tratada como "ideal não realista", os sacramentos são administrados mecanicamente, e a evangelização é substituída por encontros inter-religiosos desprovidos de missão. Essa apostasia prática é a negação do Reino de Deus sob a aparência da caridade.
Ao descrever a crise como parte da Revolução anticristã, Plinio Corrêa enxerga o que muitos não viram: trata-se de uma etapa final de um processo multissecular de negação da autoridade, da transcendência e da hierarquia — que começou no humanismo renascentista, passou pelo protestantismo, iluminismo, socialismo, modernismo e chegou, finalmente, ao coração da Igreja. A revolução não ataca frontalmente: ela corrói por dentro, converte bispos em gestores, seminaristas em assistentes sociais, e religiosos em militantes de causas ambientais ou raciais — tudo isso sob a linguagem da “missão”.
Cada termo é uma peça do mosaico da devastação: apostasia interna, heresia do século XX, nova religião, túnica rasgada, apostasia prática, auto-demolição, revolução anticristã. A pluralidade de nomes revela a complexidade do mal — mas também o esforço da consciência católica fiel em resistir.
Nomear é não se submeter. Nomear é identificar a doença para salvar o corpo. É preciso, como exorta Hildebrand, “amar apaixonadamente a Igreja” — e por isso mesmo, recusar-se a silenciar diante de sua traição. Não se trata de nostalgia nem de rebeldia: trata-se de amor à Verdade, que é Cristo, e à sua Esposa, que não pode ser traída sem que se traia o próprio Deus.
Referências
Dietrich von Hildebrand, The Devastated Vineyard, 1973.
Malachi Martin, The Jesuits, 1987.
Jean Madiran, L’Hérésie du XXe siècle, 1968.
Marcel Lefebvre, Ils l’ont découronné, 1987.
Ralph Wiltgen, The Rhine Flows into the Tiber, 1975.
Tito Casini, La tunica stracciata, 1967.
Gommar DePauw, Catholic Traditionalist Movement, anos 60–70.
Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, 1959 (rev. 1976).
Paulo VI, Alocução de 29 de junho de 1972 (“Fumaça de Satanás”).