- Em um texto profético publicado em 1975 na revista Itinéraires, intitulado "Fils de l’Église en un temps d’épreuve", o Padre Roger-Thomas Calmel, O.P., diagnostica com precisão a grave crise que assolava a Igreja Católica. Ele descreve um tempo de "autodemolição", termo cunhado pelo próprio Papa Paulo VI, no qual os inimigos da Igreja operam dissimuladamente a partir de dentro. O padre Calmel aborda a complexa questão da obediência em um cenário de diretrizes ambíguas, defende a legitimidade dos fiéis que se apegam à Tradição e identifica a "intenção revolucionária" dos inovadores como a raiz das transformações litúrgicas e doutrinais. Para ele, a fidelidade à Missa tradicional e ao catecismo de sempre não é um ato de desobediência, mas a única resposta coerente de um filho fiel em tempos de subversão.
- A análise do Padre Calmel, embora de natureza pastoral e espiritual, encontra uma detalhada e rigorosa confirmação teológica nos documentos que examinam a gênese e a substância da reforma litúrgrica pós-conciliar. A sua percepção de uma "intenção revolucionária" por parte de "inimigos ocultos" não era uma mera suspeita, mas a constatação de um processo cujos agentes e métodos podem ser claramente identificados.
- A obra que critica teologicamente a Missa de Paulo VI demonstra que a crise não surgiu espontaneamente, mas foi o resultado de um desvio no seio do Movimento Litúrgico, ocorrido no início do século XX. Figuras como Lambert Beauduin, Odo Casel e, posteriormente, Josef Jungmann e Louis Bouyer, tornaram-se os "agentes de mudança", introduzindo no movimento ideias de falso ecumenismo, arqueologismo e um modernismo teológico que culminariam na criação da Missa Nova (Cekada, 2010, p. 71). A "intenção revolucionária" que o Padre Calmel discerne é, na realidade, a aplicação sistemática de uma nova teologia, cujos princípios foram delineados décadas antes da sua implementação universal.
- O ponto central da argumentação do Padre Calmel é a questão da obediência. Ele afirma que os fiéis e clérigos que adotaram as novidades não obedecem a "preceitos que teriam as qualidades de um preceito", mas seguem "indicações ambíguas". Esta observação é validada pela análise da própria estrutura do novo rito. A Instrução Geral sobre o Missal Romano de 1969, que serve de base teológica para a Missa Nova, é um documento que institucionaliza a desregulamentação. Ao contrário da lei litúrgica anterior, que era um código de leis precisas, a nova legislação litúrgica introduz um "novo estilo" baseado em "princípios mais elevados" e opções pastorais. Isso destrói a universalidade do rito e transforma a liturgia num "buffet livre, onde os clientes selecionam os pratos que mais gostam", tornando a conformidade a uma norma universal praticamente impossível (Cekada, 2010, p. 165-168). A recusa do Padre Calmel em classificar a adesão às novidades como "obediência" é, portanto, teologicamente exata.A queixa do leigo Louis Daménie, citada pelo Padre Calmel, sobre encontrar "missas protestantizadas" que são "contrárias à fé na presença real" e "à função reservada ao padre", ecoa a tese fundamental da crítica teológica ao novo rito. A Missa Nova foi deliberadamente construída sobre uma "teologia da assembleia", que mina a doutrina católica do Santo Sacrifício. Isso se manifesta em múltiplos pontos:
- A redefinição da Missa: A Instrução Geral de 1969 define a Missa primariamente como uma "assembleia sagrada" ou "Ceia do Senhor", um conceito que agrada ao ecumenismo, em detrimento da sua essência como "sacrifício incruento" (Cekada, 2010, p. 142-143).
- A destruição do Ofertório: As orações tradicionais do Ofertório, que expressavam de forma explícita a natureza sacrificial da Missa, foram abolidas por serem uma "abominação" para os protestantes. Foram substituídas por bênçãos judaicas de mesa e conceitos teilhardianos sobre a "obra das mãos humanas", removendo assim a linguagem de vítima e sacrifício (Cekada, 2010, p. 349-359).
- A alteração da Consagração: A fórmula sacramental foi transformada de um ato consecratório em uma "Narrativa da Instituição". O sacerdote não mais age in persona Christi para efetuar um sacrifício, mas narra um evento passado, alinhando-se com a teologia protestante que nega a transubstanciação e o poder sacrificial do sacerdócio (Cekada, 2010, p. 418-419).
- Portanto, a percepção de que os novos ritos são "ambíguos" e "contrários à fé" não é uma opinião subjetiva, mas uma conclusão que se impõe a partir da análise dos próprios textos e de seus princípios teológicos subjacentes. A fidelidade à Tradição, defendida pelo Padre Calmel, é a única salvaguarda para a fé, pois se baseia no princípio de que "a lei da oração é a lei da fé" (lex orandi, lex credendi). Se a lei da oração é alterada para refletir uma nova teologia, a fé dos fiéis será, inevitavelmente, corrompida (Cekada, 2010, p. 22).
- A confiança do Padre Calmel de que a "ocupação da Igreja não durará para sempre" e que a autoridade um dia "confirmará a tradição" expressa a esperança de que a Igreja eventualmente repudiará uma obra que, como foi demonstrado, representa uma ruptura fundamental com sua própria Tradição. Ao se apegar à Missa tradicional, ao catecismo de sempre e à disciplina perene, os fiéis descritos pelo Padre Calmel não estão agindo como cismáticos, mas como guardiões da fé católica, precisamente porque, como ele intuiu, as inovações "trabalham por si mesmas para destruir a Igreja".
Cekada, Anthony. Obra de Mãos Humanas: Uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. West Chester: Philothea Press, 2010.