📜 O Contexto da Nova Teologia e a Ascensão de Rahner
A "nova teologia" surgiu na década de 1930, influenciada por teólogos como Henri de Lubac, Pierre Teilhard de Chardin e o próprio Rahner, que buscavam superar o que viam como um neoescolasticismo rígido e "extrínseco". Inspirados na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907) de Pio X, que condenava o modernismo como uma síntese de todas as heresias, críticos como Mercant Simó veem nessa corrente uma continuação velada do modernismo: um imanentismo que reduz a Revelação divina à experiência humana subjetiva, priorizando a antropologia sobre a ontologia divina.
Rahner, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), tornou-se o "príncipe dos novos teólogos", com obras como Geist in Welt (Espíritu en el mundo, 1939) e Hörer des Wortes (Oyentes de la Palabra, 1941). Sua teologia transcendental antropológica parte da ideia de que o homem é um "ouvinte da Palavra", aberto a priori à transcendência divina. Conceitos como o "existencial sobrenatural" (uma graça inerente à natureza humana) e o "cristianismo anônimo" (salvação possível fora da Igreja visível) visam dialogar com o mundo secular, mas, para Mercant, representam uma redução da teologia a uma filosofia da religião, onde Deus é acessível apenas através da autoconciência humana.
Mercant Simó argumenta que Rahner, apesar de citar profusamente Aquino, "deforma os textos tomistas a seu bel-prazer", adaptando-os a influências não-tomistas como Kant, Hegel, Heidegger e Francisco Suárez. Essa crítica não é isolada: ecoa pensadores como Cornelio Fabro (El giro antropológico de Karl Rahner, 1974), que via em Rahner um "huésped refutado" no tomismo.
🔀 A Dicotomia Fundamental: Metafísica do Conhecimento versus Metafísica do Ser
O núcleo da crítica de Mercant Simó não é apenas filosófico, mas ontológico-epistemológico: Rahner substitui a metafísica do ser (centrada no esse como ato de ser, fundamento da realidade extramental) por uma metafísica do conhecimento (centrada no sujeito cognoscente como princípio constitutivo do ser). Essa inversão é o eixo de toda a deformação tomista operada por Rahner.
🕯️ Metafísica do Ser em São Tomás de Aquino
No tomismo clássico, a metafísica é primariamente ontologia realista: o ser (ens) é o objeto primeiro do intelecto, e o esse (ato de ser) é o princípio mais profundo da realidade. O conhecimento humano parte do sensível externo (phantasmata), através da abstração, chega à essência (quidditas), e, por juízo, ao esse como existência real. A conversio ad phantasmata é um retorno ao mundo sensível para fundamentar o conhecimento inteligível. O intelecto não cria o ser, mas o recebe e o participa. Deus é conhecido analogicamente, como Causa Primeira do ser, não como objeto de uma antecipação subjetiva. Esta abordagem salvaguarda a transcendência de Deus e a objetividade da verdade, fundamentos indispensáveis para uma teologia que não se dissolve na subjetividade. A alma, embora espiritual, depende intrinsecamente do corpo para conhecer nesta vida, o que reforça o realismo do conhecimento (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 49).
🧠 Metafísica do Conhecimento em Karl Rahner
Rahner, em Geist in Welt, inverte essa ordem: o conhecimento não parte do ser, mas constitui o ser. O conceito central é o Vorgriff (antecipação) do ser em geral, um movimento a priori do espírito que precede qualquer contato com o mundo. O intelecto agente não abstrai do sensível, mas ilumina a si mesmo, transformando o sujeito em "espírito no mundo". O phantasma não é fonte, mas produto da estrutura transcendental do sujeito. Assim:
O ser (Sein) é reduzido ao ser da consciência (beisichselbstsein).
O mundo não tem existência independente: é uma totalidade imanente ao espírito.
O conhecimento não é recepção do real, mas autoposição do sujeito.
Mercant Simó demonstra, com confronto textual entre Aquino (em latim) e Rahner (em alemão), que essa estrutura é kantiana-heideggeriana, não tomista: o sujeito transcendental constitui o objeto, e o ser é fenômeno da consciência. Isso elimina a distinção tomista entre essência e existência, reduzindo o esse a um juízo mental, não a um ato real.
📉 Consequências da Inversão Ontológica
Essa troca de eixos — do ser para o conhecimento — tem implicações devastadoras:
Aspecto | Metafísica do Ser (Tomás) | Metafísica do Conhecimento (Rahner) |
---|---|---|
Objeto primeiro | Esse (ato de ser) | Vorgriff (antecipação do ser) |
Relação sujeito-objeto | Sujeito recebe o objeto | Sujeito constitui o objeto |
Conhecimento de Deus | Analogia entis (a partir do ser criado) | Autotranscendência do sujeito |
Mundo | Realidade extramental, participada | Totalidade imanente ao espírito |
Homem | Composto hilemórfico (corpo-alma) | Espírito que se autopõe no mundo |
Graça | Elevação do ser criado (participação na natureza divina) | Existencial sobrenatural inerente |
Mercant argumenta que, ao priorizar o conhecimento, Rahner colapsa as três ideias metafísicas (Deus, Alma, Mundo) na Alma (autoconciência), promovendo um monismo idealista. Isso não é apenas erro filosófico: é heresia ontológica, pois atribui ao homem um poder criador que só pertence a Deus.
🔍 As Críticas Específicas à Metafísica do Conhecimento de Rahner
O cerne da crítica de Mercant reside na análise de Geist in Welt, onde Rahner funda sua metafísica do conhecimento. Mercant desmonta isso ponto a ponto, confrontando textos originais em grego, latim e alemão:
Distorção da Abstração e da Conversio ad Phantasmata: No tomismo, a abstração produz espécies inteligíveis como similitudo rei (semelhança das coisas externas). Rahner inverte: o intelecto agente é uma "luz" que ilumina a si mesmo, eliminando a distinção entre sensível e inteligível. Mercant argumenta que isso reduz a metafísica à antropologia, fazendo do homem o centro do ser.
Subjetivismo e Imanentismo: Rahner identifica o ser (Sein) com o ser da consciência, promovendo um monismo idealista. Mercant vê nisso uma herança cartesiana-kantiana: o conhecimento é "ser consigo mesmo", sem referência à realidade externa, levando a um ontologismo e pantelismo.
O Giro Antropológico e a Redução das Ideias Metafísicas: Rahner colapsa as três ideias metafísicas na Alma, ignorando a visão hilomórfica de Aquino. Mercant destaca que isso aproxima Rahner do existencialismo heideggeriano.
Ambiguidade Estilística e Ideológica: Mercant acusa Rahner de uma linguagem obscura para mascarar contradições, violando a clareza tomista.
⛪ Implicações para a Doutrina Católica e a Igreja
As críticas de Mercant vão além da filosofia: elas revelam como a teologia rahneriana compromete dogmas centrais, porque parte de uma metafísica do conhecimento, não do ser:
As críticas de Mercant vão além da filosofia: elas revelam como a teologia rahneriana compromete dogmas centrais, porque parte de uma metafísica do conhecimento, não do ser:
Cristologia e Trindade: Rahner evita o termo "pessoa" na Cristologia, questionando a unidade hipostática de Cristo. Na Trindade, reduz o pluralismo ao "espírito", promovendo unitarismo — pois não há esse real distinto, apenas consciência.
Graça e Salvação: O "existencial sobrenatural" torna a graça inerente à natureza, diluindo a distinção entre natural e sobrenatural — pois não há esse criado que precise ser elevado. Isso contradiz frontalmente a doutrina tradicional de que a graça é uma participação na vida íntima de Deus, um dom totalmente gratuito que eleva a criatura a uma ordem incomensuravelmente superior à sua própria natureza. A graça santificante não é uma exigência da natureza, mas uma "semente da glória" que nos torna capazes da visão beatífica (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 29, 34). A concepção de Rahner, ao tornar a graça uma estrutura permanente da existência humana, corre o risco de naturalizá-la, diminuindo a percepção de sua gratuidade e de sua finalidade transcendente, que é a união imediata com Deus.
Consequências Eclesiais: Mercant liga Rahner ao progressismo pós-conciliar, que fomentou adaptações litúrgicas e ecumênicas sob modelo protestante, erodindo a identidade católica. Ele vê nisso uma "liquidação de valores católicos". Esta "liquidação" pode ser vista como o resultado de uma teologia que, ao perder seu fundamento ontológico, se torna suscetível às flutuações da cultura e da filosofia do momento, perdendo de vista a "verdade eterna" da qual o teólogo deve ser guardião. O resultado é um cristianismo que, em vez de elevar o mundo a Deus, se rebaixa ao nível do mundo (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 2, p. 347).
🕊️ Conclusão: Uma Chamada ao Retorno ao Tomismo Autêntico
A crítica de Monsenhor Jaime Mercant Simó a Karl Rahner e à nova teologia não é mero academicismo, mas uma defesa apaixonada da ortodoxia católica. Ao expor a inversão fatal, da metafísica do ser para a metafísica do conhecimento, Mercant convida a um retorno ao realismo de São Tomás de Aquino, onde a teologia é ancorada na Revelação divina, não na experiência humana subjetiva. Em um tempo de confusão eclesial, suas obras servem como antídoto contra o antropocentrismo, reafirmando que a verdade divina transcende o homem. Para os fiéis e estudiosos, aprofundar esse tema significa confrontar as tensões entre tradição e modernidade, optando pela fidelidade à doutrina perene da Igreja, aquela que começa pelo ser, não pelo eu. A verdadeira vida interior, afinal, não é uma conversa do homem consigo mesmo, mas uma conversa íntima com Deus, na qual o "eu" egoísta progressivamente dá lugar ao amor de Deus e das almas n'Ele (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 4, 43).
📚 Referências
GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. The Three Ages of the Interior Life: Prelude of Eternal Life. Volume One. Rockford: TAN Books and Publishers, 1989.
GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. The Three Ages of the Interior Life: Prelude of Eternal Life. Volume Two. Rockford: TAN Books and Publishers, 1989.
MERCANT SIMÓ, Jaime. La metafísica del conocimiento de Karl Rahner: análisis de "Espíritu en el mundo". Barcelona: Scire, 2015.
MERCANT SIMÓ, Jaime. Los fundamentos filosóficos de la teología trascendental de Karl Rahner. Barcelona: Balmes, 2017.