✝️A Crítica de Monsenhor Jaime Mercant Simó a Karl Rahner e à Nova Teologia


A teologia católica do século XX foi marcada por intensos debates, especialmente em torno da chamada "nova teologia" (ou nouvelle théologie), um movimento que buscava renovar o pensamento eclesial, incorporando elementos da filosofia moderna e reinterpretando as fontes patrísticas e escolásticas. Nesse contexto, Karl Rahner (1904-1984), jesuíta alemão, emergiu como uma figura central, frequentemente considerado o "pai" dessa corrente progressista pós-conciliar. No entanto, suas ideias têm sido objeto de severas críticas por parte de teólogos tradicionalistas, entre os quais se destaca Monsenhor Jaime Mercant Simó, sacerdote da Diocese de Mallorca (Espanha), professor, doutor em Estudos Tomísticos e em Direito e Ciências Sociais, e autor de obras como La metafísica del conocimiento de Karl Rahner: análisis de "Espíritu en el mundo" (2015) e Los fundamentos filosóficos de la teología trascendental de Karl Rahner (2017). Mercant Simó acusa Rahner de distorcer o tomismo autêntico de São Tomás de Aquino, promovendo um subjetivismo idealista que compromete os dogmas católicos fundamentais.
 
📜 O Contexto da Nova Teologia e a Ascensão de Rahner

A "nova teologia" surgiu na década de 1930, influenciada por teólogos como Henri de Lubac, Pierre Teilhard de Chardin e o próprio Rahner, que buscavam superar o que viam como um neoescolasticismo rígido e "extrínseco". Inspirados na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907) de Pio X, que condenava o modernismo como uma síntese de todas as heresias, críticos como Mercant Simó veem nessa corrente uma continuação velada do modernismo: um imanentismo que reduz a Revelação divina à experiência humana subjetiva, priorizando a antropologia sobre a ontologia divina.

Rahner, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), tornou-se o "príncipe dos novos teólogos", com obras como Geist in Welt (Espíritu en el mundo, 1939) e Hörer des Wortes (Oyentes de la Palabra, 1941). Sua teologia transcendental antropológica parte da ideia de que o homem é um "ouvinte da Palavra", aberto a priori à transcendência divina. Conceitos como o "existencial sobrenatural" (uma graça inerente à natureza humana) e o "cristianismo anônimo" (salvação possível fora da Igreja visível) visam dialogar com o mundo secular, mas, para Mercant, representam uma redução da teologia a uma filosofia da religião, onde Deus é acessível apenas através da autoconciência humana.

Mercant Simó argumenta que Rahner, apesar de citar profusamente Aquino, "deforma os textos tomistas a seu bel-prazer", adaptando-os a influências não-tomistas como Kant, Hegel, Heidegger e Francisco Suárez. Essa crítica não é isolada: ecoa pensadores como Cornelio Fabro (El giro antropológico de Karl Rahner, 1974), que via em Rahner um "huésped refutado" no tomismo.
 
🔀 A Dicotomia Fundamental: Metafísica do Conhecimento versus Metafísica do Ser

O núcleo da crítica de Mercant Simó não é apenas filosófico, mas ontológico-epistemológico: Rahner substitui a metafísica do ser (centrada no esse como ato de ser, fundamento da realidade extramental) por uma metafísica do conhecimento (centrada no sujeito cognoscente como princípio constitutivo do ser). Essa inversão é o eixo de toda a deformação tomista operada por Rahner.
 
🕯️ Metafísica do Ser em São Tomás de Aquino

No tomismo clássico, a metafísica é primariamente ontologia realista: o ser (ens) é o objeto primeiro do intelecto, e o esse (ato de ser) é o princípio mais profundo da realidade. O conhecimento humano parte do sensível externo (phantasmata), através da abstração, chega à essência (quidditas), e, por juízo, ao esse como existência real. A conversio ad phantasmata é um retorno ao mundo sensível para fundamentar o conhecimento inteligível. O intelecto não cria o ser, mas o recebe e o participa. Deus é conhecido analogicamente, como Causa Primeira do ser, não como objeto de uma antecipação subjetiva. Esta abordagem salvaguarda a transcendência de Deus e a objetividade da verdade, fundamentos indispensáveis para uma teologia que não se dissolve na subjetividade. A alma, embora espiritual, depende intrinsecamente do corpo para conhecer nesta vida, o que reforça o realismo do conhecimento (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 49).
 
🧠 Metafísica do Conhecimento em Karl Rahner

Rahner, em Geist in Welt, inverte essa ordem: o conhecimento não parte do ser, mas constitui o ser. O conceito central é o Vorgriff (antecipação) do ser em geral, um movimento a priori do espírito que precede qualquer contato com o mundo. O intelecto agente não abstrai do sensível, mas ilumina a si mesmo, transformando o sujeito em "espírito no mundo". O phantasma não é fonte, mas produto da estrutura transcendental do sujeito. Assim:
O ser (Sein) é reduzido ao ser da consciência (beisichselbstsein).
O mundo não tem existência independente: é uma totalidade imanente ao espírito.
O conhecimento não é recepção do real, mas autoposição do sujeito.

Mercant Simó demonstra, com confronto textual entre Aquino (em latim) e Rahner (em alemão), que essa estrutura é kantiana-heideggeriana, não tomista: o sujeito transcendental constitui o objeto, e o ser é fenômeno da consciência. Isso elimina a distinção tomista entre essência e existência, reduzindo o esse a um juízo mental, não a um ato real.
 
📉 Consequências da Inversão Ontológica

Essa troca de eixos — do ser para o conhecimento — tem implicações devastadoras:
AspectoMetafísica do Ser (Tomás)Metafísica do Conhecimento (Rahner)
Objeto primeiroEsse (ato de ser)Vorgriff (antecipação do ser)
Relação sujeito-objetoSujeito recebe o objetoSujeito constitui o objeto
Conhecimento de DeusAnalogia entis (a partir do ser criado)Autotranscendência do sujeito
MundoRealidade extramental, participadaTotalidade imanente ao espírito
HomemComposto hilemórfico (corpo-alma)Espírito que se autopõe no mundo
GraçaElevação do ser criado (participação na natureza divina)Existencial sobrenatural inerente

Mercant argumenta que, ao priorizar o conhecimento, Rahner colapsa as três ideias metafísicas (Deus, Alma, Mundo) na Alma (autoconciência), promovendo um monismo idealista. Isso não é apenas erro filosófico: é heresia ontológica, pois atribui ao homem um poder criador que só pertence a Deus.
 
🔍 As Críticas Específicas à Metafísica do Conhecimento de Rahner

O cerne da crítica de Mercant reside na análise de Geist in Welt, onde Rahner funda sua metafísica do conhecimento. Mercant desmonta isso ponto a ponto, confrontando textos originais em grego, latim e alemão:
 
Distorção da Abstração e da Conversio ad Phantasmata: No tomismo, a abstração produz espécies inteligíveis como similitudo rei (semelhança das coisas externas). Rahner inverte: o intelecto agente é uma "luz" que ilumina a si mesmo, eliminando a distinção entre sensível e inteligível. Mercant argumenta que isso reduz a metafísica à antropologia, fazendo do homem o centro do ser.

Subjetivismo e Imanentismo: Rahner identifica o ser (Sein) com o ser da consciência, promovendo um monismo idealista. Mercant vê nisso uma herança cartesiana-kantiana: o conhecimento é "ser consigo mesmo", sem referência à realidade externa, levando a um ontologismo e pantelismo.
 
O Giro Antropológico e a Redução das Ideias Metafísicas: Rahner colapsa as três ideias metafísicas na Alma, ignorando a visão hilomórfica de Aquino. Mercant destaca que isso aproxima Rahner do existencialismo heideggeriano.
 
Ambiguidade Estilística e Ideológica: Mercant acusa Rahner de uma linguagem obscura para mascarar contradições, violando a clareza tomista.
 
⛪ Implicações para a Doutrina Católica e a Igreja

As críticas de Mercant vão além da filosofia: elas revelam como a teologia rahneriana compromete dogmas centrais, porque parte de uma metafísica do conhecimento, não do ser:
 
Cristologia e Trindade: Rahner evita o termo "pessoa" na Cristologia, questionando a unidade hipostática de Cristo. Na Trindade, reduz o pluralismo ao "espírito", promovendo unitarismo — pois não há esse real distinto, apenas consciência.
 
Graça e Salvação: O "existencial sobrenatural" torna a graça inerente à natureza, diluindo a distinção entre natural e sobrenatural — pois não há esse criado que precise ser elevado. Isso contradiz frontalmente a doutrina tradicional de que a graça é uma participação na vida íntima de Deus, um dom totalmente gratuito que eleva a criatura a uma ordem incomensuravelmente superior à sua própria natureza. A graça santificante não é uma exigência da natureza, mas uma "semente da glória" que nos torna capazes da visão beatífica (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 29, 34). A concepção de Rahner, ao tornar a graça uma estrutura permanente da existência humana, corre o risco de naturalizá-la, diminuindo a percepção de sua gratuidade e de sua finalidade transcendente, que é a união imediata com Deus.
 
Consequências Eclesiais: Mercant liga Rahner ao progressismo pós-conciliar, que fomentou adaptações litúrgicas e ecumênicas sob modelo protestante, erodindo a identidade católica. Ele vê nisso uma "liquidação de valores católicos". Esta "liquidação" pode ser vista como o resultado de uma teologia que, ao perder seu fundamento ontológico, se torna suscetível às flutuações da cultura e da filosofia do momento, perdendo de vista a "verdade eterna" da qual o teólogo deve ser guardião. O resultado é um cristianismo que, em vez de elevar o mundo a Deus, se rebaixa ao nível do mundo (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 2, p. 347).
 
🕊️ Conclusão: Uma Chamada ao Retorno ao Tomismo Autêntico

A crítica de Monsenhor Jaime Mercant Simó a Karl Rahner e à nova teologia não é mero academicismo, mas uma defesa apaixonada da ortodoxia católica. Ao expor a inversão fatal, da metafísica do ser para a metafísica do conhecimento, Mercant convida a um retorno ao realismo de São Tomás de Aquino, onde a teologia é ancorada na Revelação divina, não na experiência humana subjetiva. Em um tempo de confusão eclesial, suas obras servem como antídoto contra o antropocentrismo, reafirmando que a verdade divina transcende o homem. Para os fiéis e estudiosos, aprofundar esse tema significa confrontar as tensões entre tradição e modernidade, optando pela fidelidade à doutrina perene da Igreja, aquela que começa pelo ser, não pelo eu. A verdadeira vida interior, afinal, não é uma conversa do homem consigo mesmo, mas uma conversa íntima com Deus, na qual o "eu" egoísta progressivamente dá lugar ao amor de Deus e das almas n'Ele (Garrigou-Lagrange, 1989, v. 1, p. 4, 43).

📚 Referências

GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. The Three Ages of the Interior Life: Prelude of Eternal Life. Volume One. Rockford: TAN Books and Publishers, 1989.
GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. The Three Ages of the Interior Life: Prelude of Eternal Life. Volume Two. Rockford: TAN Books and Publishers, 1989.
MERCANT SIMÓ, Jaime. La metafísica del conocimiento de Karl Rahner: análisis de "Espíritu en el mundo". Barcelona: Scire, 2015.
MERCANT SIMÓ, Jaime. Los fundamentos filosóficos de la teología trascendental de Karl Rahner. Barcelona: Balmes, 2017.