A Filiação Divina em Xeque: Uma Análise da Fraternidade Universal Pós-Conciliar


O texto submetido para análise é uma crítica a uma mensagem de Papa Leão XIV, que celebra um encontro inter-religioso e promove uma "cultura de harmonia" fundamentada na ideia de que todos os seres humanos são "filhos de Deus e, portanto, irmãos e irmãs". O autor do texto refuta veementemente esta premissa, argumentando que a filiação divina não é uma condição natural, mas um dom sobrenatural concedido através da fé e da adoção em Cristo. Ele sustenta que todos os homens são criaturas, mas apenas aqueles que acolhem Cristo se tornam filhos de Deus. O autor identifica a origem teológica desta "confusão entre o natural e o sobrenatural" nos documentos do Concílio Vaticano II, especificamente na ambiguidade da declaração de Gaudium et Spes 22, que afirma que "pela Sua Encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem". A crítica central é que esta visão conciliar esvazia a necessidade da evangelização e da Igreja, promovendo uma fraternidade universal naturalista em detrimento da filiação sobrenatural.

A promoção de uma fraternidade universal, baseada numa dignidade humana comum supostamente revelada e confirmada pela Encarnação de Cristo, tornou-se um pilar do discurso eclesial contemporâneo. No entanto, esta ênfase suscita questões teológicas cruciais sobre a distinção entre a ordem natural da criação e a ordem sobrenatural da redenção. Uma análise aprofundada, à luz de uma hermenêutica crítica do Concílio Vaticano II, revela que esta noção de fraternidade pode representar um desvio antropológico que redefine a própria natureza da salvação e a missão da Igreja no mundo.

🧬A Distinção Fundamental: Criatura versus Filho por Adoção
A doutrina católica perene estabelece uma distinção clara e insuperável entre ser criatura de Deus e ser filho de Deus. Todos os homens, sem exceção, são criaturas, feitos "à imagem e semelhança de Deus" (Gn 1, 26). Esta condição confere uma dignidade natural intrínseca a cada pessoa. Contudo, a filiação divina é de uma ordem completamente diferente: é um dom sobrenatural, uma participação na filiação única e eterna do Verbo. Como ensina o Prólogo do Evangelho de São João, é àqueles que O receberam que Cristo "deu o poder de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1, 12).

Esta filiação não é, portanto, um direito de nascença da natureza humana, mas o fruto da graça redentora. Trata-se de uma adoção que nos insere no Corpo Místico de Cristo, tornando-nos filhos no Filho. Confundir o plano da criação com o da redenção, afirmando que todos os homens são "filhos de Deus" por natureza, é dissolver o caráter gratuito e sobrenatural da graça e, consequentemente, a necessidade da fé e do Batismo para a salvação.

📖O Novo Humanismo Conciliar e a Reinterpretação da Encarnação
A fonte desta ambiguidade moderna pode ser rastreada até uma nova antropologia promovida durante o Concílio Vaticano II, cujo epicentro se encontra na constituição pastoral Gaudium et Spes. A afirmação de que "pela Sua Encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem" (Gaudium et Spes, 22) tornou-se a pedra angular de um novo humanismo (Calderón, 2010, p. 19). Embora esta frase possa admitir uma interpretação ortodoxa — no sentido de que a Encarnação tornou a salvação objetivamente possível para todos —, ela foi instrumentalizada para fundamentar uma nova teologia.

Nesta nova perspectiva, a Encarnação não é primariamente o ato pelo qual Deus assume uma natureza humana para redimir os que crêem, mas o evento que revela a cada homem a sua própria dignidade e valor intrínseco. Cristo torna-se o revelador do homem para o próprio homem. A consequência é uma inversão radical: o foco desloca-se da necessidade de o homem se converter a Cristo para a ideia de que Cristo, ao encarnar, já confirmou e elevou a condição de todo homem. Assim, a "união de certo modo" passa de uma possibilidade de salvação a um fato consumado que confere a todos uma espécie de divinização imanente (Calderón, 2010, p. 122-124).

🕊️Da Missão Evangelizadora ao Diálogo pela Harmonia Humana
Esta mudança antropológica acarreta uma redefinição profunda da missão da Igreja. Se a dignidade e uma certa união com Cristo já são um dado adquirido para toda a humanidade, o imperativo missionário de "ir e fazer discípulos de todas as nações, batizando-os" (Mt 28, 19) perde a sua urgência soteriológica. A missão da Igreja deixa de ser primariamente a de chamar os homens das trevas do pecado e da incredulidade para a luz admirável da filiação divina em Cristo.

Em seu lugar, surge um novo paradigma: o diálogo inter-religioso e a colaboração com todos os homens de "boa vontade" para a construção de um mundo mais justo e fraterno. A Igreja passa a se ver como "sacramento ou sinal da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano" (Lumen Gentium, 1). O objetivo principal torna-se a promoção de uma "cultura de harmonia", onde os valores comuns a todas as religiões e filosofias são exaltados. A evangelização, neste contexto, é frequentemente rebaixada à categoria de "proselitismo" indesejado, e a verdade única de Cristo é ofuscada em favor de uma unidade que se fundamenta na fraternidade natural e não na fé comum (Calderón, 2010, p. 75).

🏛️Conclusão: A Religião do Homem e a Nova Fraternidade
A insistência numa fraternidade universal que pressupõe uma filiação divina natural para todos os homens representa a expressão pastoral daquilo que pode ser definido como a "religião do homem" (Calderón, 2010, p. 128). Trata-se de um humanismo que, embora se revista de linguagem cristã, subordina o sobrenatural ao natural e a verdade revelada à consciência humana. Nesta visão, a importância de Jesus Cristo reside menos em ser o único Salvador cuja graça é necessária para a filiação, e mais em ser o modelo do "homem perfeito" que revela a grandeza da própria humanidade. A fraternidade celebrada não é a comunhão dos santos, unidos pela mesma fé e graça no Corpo de Cristo, mas uma solidariedade terrena que encontra em si mesma o seu próprio fim e justificação.

📜Referências
Calderón, Álvaro. Prometeo: La Religión del Hombre. Ensayo de una hermenéutica del Concilio Vaticano II, 2010.