Caridade Reexaminada: Uma Análise da Exortação Apostólica Dilexi Te


Recentemente, foi promulgada a exortação apostólica Dilexi Te, o primeiro documento do pontificado de Leão XIV. A recepção inicial ao texto revela duas vertentes interpretativas. Uma corrente crítica aponta para a continuidade de tendências pós-conciliares: a prolixidade do documento, a primazia de referências a pontífices recentes em detrimento do magistério pré-conciliar, e a natureza "pastoral" do texto, que evita definições dogmáticas. Outra análise, notadamente a de Roberto de Mattei, identifica no documento uma sutil, mas significativa, correção de rota. Segundo esta visão, a exortação se afasta do ativismo sócio-político de seu predecessor imediato, recentralizando o tema da pobreza na virtude teologal da caridade, com fundamentação patrística e um apelo a exemplos históricos de santidade. A tese a ser discutida, portanto, é se Dilexi Te representa uma genuína reafirmação da Tradição ou se, apesar de suas aparentes modulações conservadoras, permanece cativa do quadro de referência que caracteriza a crise eclesial contemporânea.

📜A Primazia do Pastoral sobre o Doutrinal

Uma observação preliminar, mas de capital importância, é a classificação do documento como uma "exortação apostólica" em vez de uma "encíclica". A distinção não é meramente formal. Uma encíclica, por sua natureza, possui um caráter eminentemente doutrinal, enquanto uma exortação se move no campo pastoral, buscando inspirar um certo modo de agir. Esta preferência pelo "pastoral" é um traço distintivo do período pós-conciliar, no qual se buscou uma nova atitude que privilegia a exortação em detrimento da definição, o diálogo em vez da condenação (Amerio, 2011, p. 51).

A pastoralidade, como fim primário, corre o risco de subordinar a clareza doutrinal a uma eficácia prática percebida, gerando uma ambiguidade que pode enfraquecer a própria substância da fé. Um discurso que se propõe a ser pastoral sem um firme e explícito alicerce dogmático pode facilmente resvalar para o sentimentalismo ou para o que se pode denominar circiterismo — uma abordagem de aproximações e metáforas que carece de rigor lógico e teológico (Amerio, 2011, p. 7). Embora a caridade seja um pilar da vida cristã, apresentá-la de forma exortativa, sem a contrapartida de um robusto enquadramento doutrinal sobre a natureza do homem, do pecado, da graça e dos fins últimos, pode esvaziá-la de seu sentido sobrenatural.

⚖️O Risco do "Cristianismo Secundário"

O tema central do documento — o amor aos pobres — é, inegavelmente, evangélico e tradicional. A análise que se faz notar louva o documento por ampliar a noção de pobreza para além da dimensão material, incluindo as pobrezas moral, espiritual e cultural. Contudo, é precisamente aqui que se deve exercer o discernimento, para evitar a queda no que tem sido chamado de "Cristianismo secundário" (Amerio, 2011, p. 2). Este consiste em julgar a religião e sua missão primariamente por seus efeitos secundários e subordinados na ordem da civilização, em vez de seu fim primário e sobrenatural, que é a salvação das almas.

A questão crucial não é se a Igreja deve amar os pobres, mas como e para quê. A caridade cristã autêntica é um ato teologal, ordenado a Deus, que se manifesta no amor ao próximo por amor a Deus. Quando a ênfase se desloca para a resolução de problemas temporais — sejam eles materiais, sociais ou culturais — como um fim em si mesmo, a missão da Igreja corre o risco de ser desnaturalizada, transformando-se numa agência humanitária. O valor da exortação, portanto, não reside na multiplicidade de formas de pobreza que elenca, mas na medida em que subordina inequivocamente toda a ação caritativa ao fim último e sobrenatural do homem. A ausência desta subordinação clara transforma a caridade numa filantropia e a Igreja num agente de "civilização" em detrimento de sua missão salvífica (Amerio, 2011, p. 400).

🔗A Questão da Continuidade Magisterial

A crítica inicial que aponta para a desproporção nas citações magisteriais — abundantes referências ao período pós-conciliar e escassas menções a pontífices anteriores — toca num ponto nevrálgico da crise atual. A saúde da Igreja não reside na inovação, mas na conservação e no aprofundamento orgânico de um depósito da fé que é imutável em sua substância (Amerio, 2011, p. 558). Um magistério que se referencia quase exclusivamente a si mesmo, num ciclo de poucas décadas, manifesta uma ruptura de fato com a Tradição bimilenar.

Ainda que se louve a citação a Leão XIII, como faz de Mattei, tal menção se torna a exceção que confirma a regra. A ausência sistemática do vasto corpo doutrinário sobre a caridade, a justiça social e a ordem política desenvolvido por pontífices como Pio IX, Pio X, Pio XI e Pio XII não é uma omissão acidental, mas um sintoma de uma mentalidade que considera o passado como superado. Esta atitude reflete uma negação do caráter perene da verdade e uma adesão ao movilismo, a ideia de que a verdade evolui com a história (Amerio, 2011, p. 293). Um documento que busca reafirmar a doutrina da caridade seria imensamente fortalecido se se enraizasse visivelmente na totalidade da Tradição, em vez de se apresentar como um desenvolvimento quase exclusivo do pensamento recente.

🕊️Caridade, Verdade e a Plenitude da Fé

A exortação Dilexi Te, ao que parece, afasta-se de um apelo direto ao ativismo político, o que representa uma correção bem-vinda face a certas derivas contemporâneas. A ênfase na esmola e nas obras de misericórdia, bem como a evocação dos grandes santos da caridade, são elementos de sólida tradição. No entanto, a virtude da caridade não existe isoladamente. Ela é inseparável das virtudes da fé e da esperança, e opera dentro do quadro da Lei Divina e da Lei Natural.

Uma apresentação da caridade que não a vincule explicitamente à necessidade da conversão, à adesão à verdade dogmática e à observância da lei moral é incompleta e pode induzir ao erro. O amor cristão não é uma mera benevolência indiscriminada; é um amor que deseja para o outro o bem supremo, que é a união com Deus na verdade. Por isso, "dar de comer a quem tem fome" é inseparável de "ensinar os ignorantes" — e o primeiro ensinamento é a verdade sobre Deus e o homem. O maior ato de caridade é conduzir as almas à verdade que salva. Se a exortação se detém na dimensão da assistência, sem conectá-la vigorosamente à missão de ensinar e santificar na íntegra do depósito da fé, ela corre o risco de promover uma "caridade sem verdade", que, em última instância, não é a caridade de Cristo.

🧭Conclusão

A exortação apostólica Dilexi Te parece ser um documento de transição, que reflete as tensões internas da Igreja pós-conciliar. Por um lado, tenta resgatar a caridade de uma interpretação puramente sócio-política, reconduzindo-a a uma dimensão mais espiritual e pessoal, o que é louvável. Por outro, permanece dentro do paradigma que gerou a crise: a primazia do pastoral, a referência seletiva à Tradição e uma potencial ambiguidade que pode favorecer uma visão de "Cristianismo secundário". O documento pode ser visto como um esforço para moderar os excessos do período anterior, mas não parece constituir uma ruptura com os princípios que os originaram. Assim, embora contenha elementos da perene doutrina católica, sua estrutura e omissões indicam que ele é mais um sintoma da desorientação contínua do que um remédio decisivo para ela.

📚Referências

Amerio, Romano. Iota Unum: Estudio sobre las transformaciones en la Iglesia en el siglo XX. Versión corregida, 2011.

de Mattei, Roberto. Dilexi Te -- Leo XIV's first Exhortation. https://rorate-caeli.blogspot.com/2025/10/dilexi-te-leo-xivs-first-exhortation.html, 12 out. 2025.