A Crise Pastoral da igreja e sua transformação em uma ONG piedosa, por frei Clodovis Boff


Em uma coluna de opinião publicada em 24 de junho de 2025, o jornalista Marcio Antonio Campos analisa uma carta do frei Clodovis Boff dirigida aos bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (Celam). A missiva de Boff, segundo o relato, serve como uma crítica contundente a uma mensagem publicada pelos bispos após sua 40.ª Assembleia Geral Ordinária, realizada no Rio de Janeiro em maio do mesmo ano. O cerne da argumentação do frade é que a Igreja na América Latina, ao adotar um discurso quase exclusivamente social, transformou-se em uma espécie de “ONG piedosa”, abandonando sua missão primária de anunciar Cristo e Sua graça.

Campos detalha os pontos levantados por Boff: a Igreja, ao focar em temas sociais em detrimento da espiritualidade, falha em saciar a sede de transcendência do povo. A carta episcopal do Celam é criticada por seu silêncio sobre a “descatolicização” do continente — a “sangria de fiéis” — e por ignorar que o crescimento pastoral ocorre precisamente onde a fé é sólida e a espiritualidade é ofertada. O frei adverte que, sem Cristo como centro, a própria atuação social se corrompe em ideologia. O colunista conclui endossando a visão de Boff e citando o lançamento de um documentário do Vatican Media, León de Perú, sobre os anos do então Papa Leão XIV como missionário no Peru.

A análise do frei Clodovis Boff, conforme relatada, diagnostica com precisão os sintomas da enfermidade que acomete a Igreja na América Latina e, por extensão, em grande parte do Ocidente. A inversão de prioridades, a transformação da missão evangelizadora em ativismo social e a consequente perda de fiéis são realidades inegáveis. Contudo, ao apontar os efeitos, a análise detém-se na superfície, sem adentrar na causa fundamental que tornou tal desvio não apenas possível, mas inevitável. A verdadeira raiz do problema não é meramente pastoral, mas profundamente doutrinal e, acima de tudo, litúrgica.

O princípio teológico clássico, lex orandi, lex credendi — a lei da oração é a lei da fé — ensina que a forma como a Igreja reza estabelece e manifesta aquilo em que ela crê. Uma análise teológica detalhada sobre a reforma litúrgica demonstra que a Missa de Paulo VI, ao contrário da Missa Tridentina, foi construída sobre uma “teologia da assembleia”, que efetivamente deslocou o centro de gravidade do rito (CEKADA, 2010, p. 22). O culto, antes de tudo um sacrifício propiciatório oferecido a Deus Pai por um sacerdote agindo in persona Christi, foi redefinido como uma reunião da comunidade, uma celebração do “povo de Deus” presidida por um funcionário.

Esta mudança fundamental não é um detalhe secundário; é a própria matriz da crise que o frei Boff descreve. Quando a Missa deixa de ser percebida como a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário e passa a ser vista como a “ceia do Senhor” celebrada pela comunidade (CEKADA, 2010, p. 142), o seu propósito intrínseco é alterado. A dimensão vertical (do homem para Deus) é subsumida pela dimensão horizontal (a relação entre os membros da comunidade). Consequentemente, a “eficácia” da celebração passa a ser medida não mais por sua capacidade de dar a devida glória a Deus e aplicar os méritos de Cristo às almas, mas por critérios sociológicos e psicológicos: o senso de acolhida, a participação ativa, a fraternidade e, logicamente, o engajamento nas questões sociais que afetam aquela comunidade.

A transformação da Igreja em uma “ONG piedosa” é, portanto, o resultado direto da transformação da Missa em uma reunião de assembleia. Se o foco principal do rito é a comunidade reunida, é natural que as preocupações da Igreja se voltem para os problemas materiais e sociais dessa mesma comunidade. A transcendência, o sobrenatural, a doutrina sobre as últimas coisas (morte, juízo, inferno, paraíso) e a necessidade da graça para a salvação da alma tornam-se elementos secundários, se não embaraçosos, em um rito cujo principal objetivo é “estabelecer comunhão” e “engendrar unanimidade” (CEKADA, 2010, p. 251-253).

Da mesma forma, a “sangria de fiéis” para outras denominações religiosas ou para a indiferença não deveria causar espanto. Ao despojar a Missa de seu caráter sagrado e sacrificial, a reforma litúrgica removeu precisamente aquilo que a tornava única e essencial. A majestade silenciosa do Cânon Romano, os gestos de profunda reverência, o rico simbolismo que apontava para o mistério da transubstanciação — tudo foi substituído por uma estrutura que privilegia o falatório, a instrução didática e a autocelebração da comunidade. A liturgia católica, ao tentar se tornar mais “relevante” e “compreensível” para o homem moderno, tornou-se apenas mais uma entre tantas outras experiências religiosas, muitas vezes menos atraente que as ofertas emocionalmente mais vibrantes das igrejas pentecostais. O povo busca a “Água viva”, como bem diz o frei, mas a Igreja moderna, em vez de conduzi-lo à fonte do Sacrifício, oferece-lhe a água tépida do humanismo e do diálogo social.

O apelo do frei Clodovis para que se “retire Cristo da sombra” e se restitua a Ele a “primazia absoluta” é louvável e necessário. Contudo, tal restauração permanecerá no campo da retórica se não se atacar a causa primária que levou a esse obscurecimento. Não se pode restituir a Cristo a primazia na vida da Igreja sem primeiro restaurar Sua primazia na liturgia. Enquanto a Missa for primariamente a ação da assembleia, seu foco será o homem. Somente quando a Missa for novamente entendida e celebrada como a Ação de Cristo, o Sumo Sacerdote, oferecendo a Si mesmo ao Pai, é que a Igreja deixará de ser uma ONG para voltar a ser aquilo que é: o “Sacramento de salvação”. A crise pastoral e social descrita é o fruto amargo de uma deliberada ruptura com a tradição litúrgica e doutrinal da Igreja (CEKADA, 2010, p. 471).

Referências

CEKADA, Anthony. Obra de Mãos Humanas: Uma crítica teológica à Missa de Paulo VI. 2. ed. West Chester: Philothea Press, 2010.