A revisão do Calendário Litúrgico em 1969, sob o pontificado de Paulo VI, representa muito mais do que uma mera reorganização administrativa do culto. Trata-se de um sintoma agudo da penetração do pensamento moderno — gnóstico e secularizante — no coração da Igreja. Sob o pretexto de uma purificação baseada na "verdade histórica", assiste-se a uma capitulação da verdade da fé e da tradição multissecular diante dos tribunais do historicismo e do relativismo. Este processo não é um fortalecimento, mas um esvaziamento da Cruz de Cristo, onde a piedade dos séculos é julgada e condenada pela mentalidade profana do mundo contemporâneo (Meinvielle, 1970, p. 329).
🏛️ A Tradição Sagrada Submetida ao Juízo Secular
A premissa fundamental da reforma litúrgica é a de que a validade do culto a um santo depende de sua comprovação segundo os métodos da ciência histórica profana. Esta abordagem representa uma inversão radical da ordem católica. A Igreja, ao longo de sua história, nunca fundamentou a veneração dos seus mártires e santos na certeza documental exigida pelos arquivos seculares, mas sim na Tradição viva, na piedade do povo fiel e na autoridade do seu Magistério. A verdade de um santo não residia na exatidão biográfica de cada detalhe de sua vida, mas na realidade espiritual que sua história — seja ela histórica ou lendária — transmitia: a vitória de Cristo sobre o mundo, o pecado e a morte.
Ao submeter o sagrado ao critério do profano, a Igreja adota o princípio gnóstico de que existe um "conhecimento superior" — neste caso, a crítica histórica moderna — capaz de julgar e corrigir a fé "simples" do passado. Este é o mesmo erro do modernismo, que busca reformar os conceitos da doutrina cristã para adequá-los ao "progresso das ciências" (Meinvielle, 1970, p. 409). O resultado é a substituição da certeza da fé pela incerteza da erudição humana e a transformação do calendário dos santos em um catálogo provisório, sujeito a revisões constantes conforme as flutuações da opinião acadêmica. A verdade, que para a fé católica é imutável, torna-se tão mutável quanto o próprio homem (Meinvielle, 1970, p. 409).
⚖️ O Caso de Simão de Trento: Um Símbolo da Capitulação
O caso da supressão do culto a São Simão de Trento é o mais revelador. A narrativa moderna o classifica sumariamente como um "libelo de sangue antissemita", adotando, sem crítica, a perspectiva do adversário histórico da Igreja. Do ponto de vista da tradição católica, Simão de Trento era venerado como um mártir da fé, um símbolo da inocência vitimada pela iniquidade. A decisão de remover seu culto não pode ser vista isoladamente, mas como parte de um movimento mais amplo de "diálogo" e "reconciliação" com a Sinagoga, um diálogo que frequentemente exige que a Igreja renegue seu próprio passado e silencie sobre as verdades que se tornaram "inconvenientes" para a mentalidade moderna.
A remoção do culto de um mártir cuja história se entrelaça com a denúncia da perfídia judaica representa uma vitória simbólica da Sinagoga na dialéctica histórica que a opõe à Igreja (Meinvielle, 1970, p. 458). É a manifestação de uma Igreja que, em vez de buscar a conversão do mundo e de seus inimigos, busca ser aceita por eles, mesmo que o preço seja o sacrifício de seus próprios santos e de sua memória histórica. Trata-se de um episódio claro de secularização, onde a Igreja, para se conformar ao "mundo moderno", adota a visão de mundo de seus detratores, em um processo que culmina na sua própria dissolução na imanência do mundo (Meinvielle, 1970, p. 408, 423).
🌍 A Desintegração do Sagrado e a Nova Hagiografia
A mesma lógica se aplica à remoção ou reclassificação de santos como São Cristóvão, Santa Úrsula e São Nicolau. Suas histórias, repletas de elementos lendários, alimentaram a fé e a imaginação de gerações de cristãos, servindo como veículos para verdades teológicas profundas sobre a proteção divina, o martírio e a caridade. Ao descartá-los por "falta de provas históricas", o progresismo revela seu desprezo pela piedade popular e sua adesão a um racionalismo estéril.
Este processo visa criar uma nova hagiografia, adequada a um "cristianismo secularizado": uma galeria de figuras puramente humanas, despojadas de seu caráter sobrenatural e milagroso, cuja santidade reside não mais em sua união com o Deus transcendente, mas em seu "compromisso com o mundo" e com a "construção da cidade secular" (Meinvielle, 1970, p. 384, 396). O resultado final é a transformação da comunhão dos santos em um panteão humanista, onde o homem, e não mais Deus, é a medida de todas as coisas. A revisão do calendário não é, portanto, uma reforma, mas uma demolição. É um passo decisivo na transformação da religião católica em uma gnosis moderna, onde o mistério é substituído pela crítica, a fé pela opinião, e a Tradição eterna pelo fluxo incessante do devir histórico.
📚 Referências
Meinvielle, Julio. De la Cábala al Progresismo. Salta: Editora Calchaquí, 1970.