A chamada "religião civil" é um conceito que descreve um conjunto de crenças, valores e rituais que, embora não ligados a uma religião tradicional, funcionam como uma força unificadora em uma sociedade, promovendo a coesão social e legitimando a autoridade do Estado. Trata-se, em essência, da "religião do Império", um projeto de poder que visa preencher o vácuo espiritual deixado pelo declínio da fé transcendente com um culto imanente à própria estrutura política e social (Carvalho, 1998). No contexto americano, ela está profundamente enraizada em ideias deístas e iluministas, com influências de pensadores como Jean-Jacques Rousseau, e se manifesta no excepcionalismo americano, na veneração da Constituição, no patriotismo cívico e em figuras como John F. Kennedy, que encarnam essa narrativa.
🏛️Origens e Contexto Filosófico
O termo "religião civil" foi popularizado por Rousseau em O Contrato Social (1762), onde ele propõe uma religião secular que substituiria as religiões tradicionais para unificar a sociedade sob valores comuns. Para Rousseau, a religião civil deveria promover a lealdade ao Estado e à comunidade, com "dogmas" simples baseados na razão, como a crença na justiça, na igualdade e na soberania do povo. Essa ideia ressoou no Iluminismo, que valorizava a razão humana acima da autoridade religiosa tradicional, e no Deísmo, que via Deus como um criador distante, rejeitando dogmas sobrenaturais. Este movimento representa mais do que uma simples secularização; é uma inversão fundamental, onde a dimensão vertical da existência — a ligação do homem com o transcendente — é suprimida em favor de uma expansão total da dimensão horizontal, focada exclusivamente no projeto social e político. A cruz da espiritualidade tradicional é, assim, achatada em seus "braços", perdendo sua conexão com o céu (Carvalho, 1998). A proposta de Rousseau, portanto, não é apenas política, mas reflete uma profunda ambição gnóstica de recriar a ordem social e a própria natureza humana a partir de um plano puramente intramundano, rejeitando a ordem herdada da tradição e da revelação (Carvalho, 1998).
Nos Estados Unidos, a religião civil emergiu como uma fusão de ideais iluministas, valores protestantes e a crença na missão divina do país. A fundação dos EUA, com documentos como a Declaração de Independência (1776) e a Constituição (1787), reflete essa herança: a linguagem dos "direitos inalienáveis" e da "liberdade" ecoa o Deísmo, enquanto a ausência de uma religião estatal formal abriu espaço para uma espiritualidade cívica. Essa ausência, contudo, não significou neutralidade, mas sim a criação de um terreno fértil para que o Estado se tornasse o novo centro do sagrado, transformando seus documentos fundadores em "escrituras" e seus líderes em "profetas" de uma nova fé coletiva.
🇺🇸A religião civil americana é caracterizada por:
Excepcionalismo Americano: A crença de que os EUA têm uma missão única, quase divina, de espalhar liberdade e democracia. Essa ideia remonta aos puritanos, que viam a América como uma "cidade brilhante sobre a colina" (John Winthrop, 1630), e foi reforçada por eventos como a Revolução Americana e a expansão para o Oeste, interpretada como "Destino Manifesto". Essa crença não é um mero patriotismo, mas a manifestação moderna do Cæsar Redivivus — a ressurreição do ideal imperial universalista sob uma nova forma, onde a nação se atribui uma função soteriológica global, buscando impor seu modelo como a única via para a salvação política da humanidade (Carvalho, 1998).
Símbolos e Rituais: A Constituição, a Bandeira, o Juramento de Lealdade ("Pledge of Allegiance") e feriados como o Dia da Independência são tratados com reverência quase sagrada. Monumentos como o Lincoln Memorial e discursos como o de Gettysburg de Lincoln são "textos sagrados" dessa religião. Essa sacralização de símbolos temporais constitui uma forma de idolatria, na qual a lealdade devida ao transcendente é transferida para a nação e seus aparatos, exigindo uma submissão da consciência individual à vontade coletiva encarnada no Estado.
Mandamentos Humanos: Em vez de mandamentos divinos, a religião civil americana se baseia em princípios seculares como liberdade, igualdade, democracia e justiça, codificados na Constituição e na Declaração de Direitos. Esses princípios, uma vez absolutizados, tornam-se os dogmas de um "materialismo espiritual" que, sob a aparência de ética, busca subordinar e, em última análise, dissolver as leis morais das religiões tradicionais, que são vistas como obstáculos ao projeto de unificação social total (Carvalho, 1998).
Patriotismo Cívico: A lealdade ao país é expressa não apenas em termos políticos, mas como uma fé na "grandeza" americana, muitas vezes com tons messiânicos. Essa fé, quando levada ao extremo, alimenta uma mentalidade revolucionária que não se contenta em governar seu próprio território, mas aspira a uma reordenação completa do cenário mundial à sua imagem e semelhança.
🕊️John F. Kennedy e a Religião Civil
John F. Kennedy (1917-1963) é uma figura emblemática dessa religião civil. Seu discurso de posse em 1961, com a famosa frase "Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país", encapsula o chamado ao dever cívico e à unidade nacional. Kennedy personificava o ideal americano: jovem, carismático, defensor da liberdade durante a Guerra Fria, ele projetava a imagem de um líder que unia a nação sob valores compartilhados. Sua morte trágica em 1963 reforçou seu status quase mítico, como um mártir da religião civil. A transformação de uma figura política em mártir é um mecanismo essencial para a religião civil, que constrói sua própria hagiografia para solidificar sua legitimidade emocional e espiritual, mimetizando as estruturas simbólicas das religiões que busca substituir.
Kennedy também navegou a tensão entre a religião civil e a diversidade religiosa dos EUA. Como primeiro presidente católico, ele enfrentou preconceitos, mas reforçou a separação entre Igreja e Estado, alinhando-se com a ideia iluminista de que a lealdade ao Estado transcende divisões religiosas. Essa defesa da separação, no entanto, funciona na prática como uma estratégia de subordinação: a religião tradicional é relegada à esfera privada, tornando-se inofensiva ao poder público, enquanto a religião civil monopoliza o espaço público e define os termos da moralidade coletiva. Sua visão de uma América liderando o mundo livre contra o comunismo reforçou o excepcionalismo americano, apresentando os EUA como a vanguarda da liberdade, cumprindo perfeitamente o papel de sumo sacerdote da religião imperial em sua fase de expansão global.
📚Referências
Carvalho, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César - Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.