📉Entre a Percepção dos Sintomas e a Ignorância das Causas (Sobre o colapso moral do Ocidente)


Um texto recente, intitulado “Sobre o colapso moral doOcidente”, de autoria de Andrea Zhok, propõe-se a analisar a decadência espiritual e moral do mundo contemporâneo. O autor parte da premissa de que o “Ocidente” é um conceito espúrio, uma construção político-militar-financeira recente (“Ocidente Atlântico”), fundamentalmente distinta da milenar “Europa cultural” de raízes greco-latinas e cristãs. Segundo Zhok, esta construção ocidental, hegemônica desde o final do século XX, teria provocado uma “desertificação da alma” ao reduzir todo o valor a um preço monetário, gerando uma das classes dominantes “mais moralmente infames” da história, caracterizada não pela crueldade, mas por um niilismo cínico e uma adesão ilimitada à mentira como instrumento de poder. O autor expressa a preocupação de que a autêntica cultura europeia seja arrastada para a “condenação histórica” junto com a obscenidade do Ocidente contemporâneo, perdendo assim não apenas a hegemonia, mas a própria alma.

A análise, em sua apreensão do estado de abjeção moral e da desertificação espiritual, descreve com notável precisão os sintomas de uma enfermidade profunda. A percepção de que a mentira ilimitada se tornou a prática corrente das classes dominantes e de que a vida humana foi rebaixada a um valor instrumental é, sem dúvida, correta. Contudo, ao tentar diagnosticar as causas do mal, o autor incorre em erros de perspectiva histórica e filosófica tão graves que sua análise, em vez de esclarecer, acaba por engrossar o coro das confusões que constituem a própria doença que pretende descrever.

O erro fundamental reside na distinção radical e historicamente insustentável entre uma “Europa cultural” virtuosa e um “Ocidente” espúrio e recente. O que o autor descreve como o “Ocidente Atlântico” não é uma negação ou um desvio da cultura europeia, mas a sua culminação lógica e inevitável; o resultado final de um processo de inversão espiritual cujas raízes são muito mais antigas e profundas do que um “século e meio”. A tragédia moderna não nasceu da hegemonia do capitalismo financeiro nas últimas décadas do século XX; este é apenas um dos seus muitos frutos tardios.

A gênese do colapso remonta a um drama que se desenrola há séculos, marcado pela supressão progressiva da dimensão vertical e transcendente da existência e pela divinização das forças do plano horizontal: o espaço e o tempo (Carvalho, 1998, p. 96). A passagem de uma cosmologia teocêntrica para uma visão de mundo matematizada e, posteriormente, para uma divinização do processo histórico, representou a transferência da autoridade espiritual de Deus para as estruturas impessoais do cosmos e, enfim, da História. O “Ocidente” que o autor critica é a fase final deste processo, onde a religião do Império — uma religião civil e laica — se estabelece como a única autoridade espiritual, reduzindo todas as tradições sagradas a meros “fatos culturais” ou, na melhor das hipóteses, a opções privadas desprovidas de qualquer poder ordenador da vida pública (Carvalho, 1998, p. 135).

A confusão do diagnóstico torna-se patente quando o autor elenca, entre os expoentes da “extraordinária eflorescência” europeia, a figura de Karl Marx. Ora, Marx não é uma vítima do processo de desertificação da alma, mas um de seus mais potentes agentes. Sua filosofia é a expressão acabada da inversão gnóstica que submete a theoria (a contemplação da verdade) à praxis (a ação transformadora do mundo), reduzindo a realidade a mera matéria-prima para a vontade de poder revolucionária. Colocar Marx como um representante da tradição espiritual que se opõe ao niilismo moderno é um equívoco de proporções colossais, que revela uma incompreensão fundamental da natureza das forças em jogo. O marxismo, como foi demonstrado, é ele mesmo um herdeiro direto da matriz epicurista que busca não compreender, mas transformar o mundo, substituindo a realidade por uma construção voluntarista (Carvalho, 1998, p. 77). A combinação do ateísmo marxista com o calvinismo, que o autor aponta como a matriz do Ocidente Atlântico, não é um acidente, mas a fusão de duas correntes da mesma revolução gnóstica.

A classe dominante “moralmente infame” que o autor descreve não é um produto do “capitalismo financeiro” enquanto força econômica autônoma, mas o sacerdócio da nova Religião Civil. Seu poder não reside apenas no dinheiro, mas na capacidade de manipular o imaginário social e de se apresentar como a administradora única e exclusiva do “sentido da História”. A mentira ilimitada e a negação da evidência não são meras ferramentas de poder; são os dogmas centrais desta nova fé, cuja liturgia consiste em dissolver a estrutura ontológica da realidade num fluxo de interpretações arbitrárias, legitimadas unicamente por sua eficácia pragmática. É a ascensão do Estado-bedel, que, ao se tornar o árbitro de todas as questões morais e espirituais, promove a “confusão das línguas do bem e do mal” (Carvalho, 1998, p. 173).

Por fim, a preocupação com uma futura “condenação histórica” revela que o autor, apesar de suas críticas, permanece prisioneiro da mentalidade historicista que é um dos pilares do mal que descreve. O problema real não é o julgamento que as futuras gerações farão da Europa, mas a perda efetiva da alma no aqui e agora. A tragédia não é uma questão de imagem histórica, mas de realidade espiritual. A perda da alma não é uma possibilidade futura, mas um processo em curso que só pode ser compreendido e combatido pela restauração do primado da consciência individual e da sua ligação com a dimensão transcendente, e não pela lamentação de uma glória cultural passada ou pela criação de falsas genealogias.

Em suma, o texto de Andrea Zhok oferece um retrato vívido dos efeitos da catástrofe espiritual moderna, mas falha em identificar suas causas. Ao projetar a origem do mal numa entidade externa e recente — o “Ocidente” —, ele isenta a tradição intelectual europeia de sua cumplicidade ativa na construção do próprio deserto que agora lamenta. A verdadeira genealogia do niilismo contemporâneo é longa e complexa, e seus agentes mais eficazes se encontram precisamente entre aqueles que o autor, por uma trágica ironia, ainda celebra como heróis da cultura. A cura não virá de um apego nostálgico a uma Europa idealizada, mas do reconhecimento de que o inimigo não está fora, mas dentro, e que sua vitória foi preparada por séculos de erros filosóficos e apostas espirituais suicidas.

Referências

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.