Um texto recente, intitulado “Sobre o colapso moral doOcidente”, de autoria de Andrea Zhok, propõe-se a analisar a decadência
espiritual e moral do mundo contemporâneo. O autor parte da premissa de que o
“Ocidente” é um conceito espúrio, uma construção político-militar-financeira
recente (“Ocidente Atlântico”), fundamentalmente distinta da milenar “Europa
cultural” de raízes greco-latinas e cristãs. Segundo Zhok, esta construção
ocidental, hegemônica desde o final do século XX, teria provocado uma
“desertificação da alma” ao reduzir todo o valor a um preço monetário, gerando
uma das classes dominantes “mais moralmente infames” da história, caracterizada
não pela crueldade, mas por um niilismo cínico e uma adesão ilimitada à mentira
como instrumento de poder. O autor expressa a preocupação de que a autêntica
cultura europeia seja arrastada para a “condenação histórica” junto com a
obscenidade do Ocidente contemporâneo, perdendo assim não apenas a hegemonia,
mas a própria alma.
A análise, em sua apreensão do estado de
abjeção moral e da desertificação espiritual, descreve com notável precisão os
sintomas de uma enfermidade profunda. A percepção de que a mentira ilimitada se
tornou a prática corrente das classes dominantes e de que a vida humana foi
rebaixada a um valor instrumental é, sem dúvida, correta. Contudo, ao tentar
diagnosticar as causas do mal, o autor incorre em erros de perspectiva histórica
e filosófica tão graves que sua análise, em vez de esclarecer, acaba por
engrossar o coro das confusões que constituem a própria doença que pretende
descrever.
O erro fundamental reside na distinção radical e
historicamente insustentável entre uma “Europa cultural” virtuosa e um
“Ocidente” espúrio e recente. O que o autor descreve como o “Ocidente Atlântico”
não é uma negação ou um desvio da cultura europeia, mas a sua culminação lógica
e inevitável; o resultado final de um processo de inversão espiritual cujas
raízes são muito mais antigas e profundas do que um “século e meio”. A tragédia
moderna não nasceu da hegemonia do capitalismo financeiro nas últimas décadas do
século XX; este é apenas um dos seus muitos frutos tardios.
A
gênese do colapso remonta a um drama que se desenrola há séculos, marcado pela
supressão progressiva da dimensão vertical e transcendente da existência e pela
divinização das forças do plano horizontal: o espaço e o tempo (Carvalho, 1998,
p. 96). A passagem de uma cosmologia teocêntrica para uma visão de mundo
matematizada e, posteriormente, para uma divinização do processo histórico,
representou a transferência da autoridade espiritual de Deus para as estruturas
impessoais do cosmos e, enfim, da História. O “Ocidente” que o autor critica é a
fase final deste processo, onde a religião do Império — uma religião civil e
laica — se estabelece como a única autoridade espiritual, reduzindo todas as
tradições sagradas a meros “fatos culturais” ou, na melhor das hipóteses, a
opções privadas desprovidas de qualquer poder ordenador da vida pública
(Carvalho, 1998, p. 135).
A confusão do diagnóstico torna-se
patente quando o autor elenca, entre os expoentes da “extraordinária
eflorescência” europeia, a figura de Karl Marx. Ora, Marx não é uma vítima do
processo de desertificação da alma, mas um de seus mais potentes agentes. Sua
filosofia é a expressão acabada da inversão gnóstica que submete a theoria (a
contemplação da verdade) à praxis (a ação transformadora do mundo), reduzindo a
realidade a mera matéria-prima para a vontade de poder revolucionária. Colocar
Marx como um representante da tradição espiritual que se opõe ao niilismo
moderno é um equívoco de proporções colossais, que revela uma incompreensão
fundamental da natureza das forças em jogo. O marxismo, como foi demonstrado, é
ele mesmo um herdeiro direto da matriz epicurista que busca não compreender, mas
transformar o mundo, substituindo a realidade por uma construção voluntarista
(Carvalho, 1998, p. 77). A combinação do ateísmo marxista com o calvinismo, que
o autor aponta como a matriz do Ocidente Atlântico, não é um acidente, mas a
fusão de duas correntes da mesma revolução gnóstica.
A classe
dominante “moralmente infame” que o autor descreve não é um produto do
“capitalismo financeiro” enquanto força econômica autônoma, mas o sacerdócio da
nova Religião Civil. Seu poder não reside apenas no dinheiro, mas na capacidade
de manipular o imaginário social e de se apresentar como a administradora única
e exclusiva do “sentido da História”. A mentira ilimitada e a negação da
evidência não são meras ferramentas de poder; são os dogmas centrais desta nova
fé, cuja liturgia consiste em dissolver a estrutura ontológica da realidade num
fluxo de interpretações arbitrárias, legitimadas unicamente por sua eficácia
pragmática. É a ascensão do Estado-bedel, que, ao se tornar o árbitro de todas
as questões morais e espirituais, promove a “confusão das línguas do bem e do
mal” (Carvalho, 1998, p. 173).
Por fim, a preocupação com uma
futura “condenação histórica” revela que o autor, apesar de suas críticas,
permanece prisioneiro da mentalidade historicista que é um dos pilares do mal
que descreve. O problema real não é o julgamento que as futuras gerações farão
da Europa, mas a perda efetiva da alma no aqui e agora. A tragédia não é uma
questão de imagem histórica, mas de realidade espiritual. A perda da alma não é
uma possibilidade futura, mas um processo em curso que só pode ser compreendido
e combatido pela restauração do primado da consciência individual e da sua
ligação com a dimensão transcendente, e não pela lamentação de uma glória
cultural passada ou pela criação de falsas genealogias.
Em
suma, o texto de Andrea Zhok oferece um retrato vívido dos efeitos da catástrofe
espiritual moderna, mas falha em identificar suas causas. Ao projetar a origem
do mal numa entidade externa e recente — o “Ocidente” —, ele isenta a tradição
intelectual europeia de sua cumplicidade ativa na construção do próprio deserto
que agora lamenta. A verdadeira genealogia do niilismo contemporâneo é longa e
complexa, e seus agentes mais eficazes se encontram precisamente entre aqueles
que o autor, por uma trágica ironia, ainda celebra como heróis da cultura. A
cura não virá de um apego nostálgico a uma Europa idealizada, mas do
reconhecimento de que o inimigo não está fora, mas dentro, e que sua vitória foi
preparada por séculos de erros filosóficos e apostas espirituais suicidas.
Referências
CARVALHO,
Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio
sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks,
1998.