Publicado em 1924, Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte ("A Ideia da Razão de Estado na História Moderna") é uma obra fundamental da historiografia e da teoria política ocidental, em que o historiador alemão Friedrich Meinecke analisa o surgimento e a evolução do conceito de razão de Estado (Staatsräson) como categoria central da política moderna. A obra investiga como os governantes, no processo de formação dos Estados modernos, passaram a justificar ações que violavam preceitos morais ou religiosos em nome da estabilidade e da continuidade do poder político.
Para Meinecke, o conceito de razão de Estado expressa uma contradição trágica e persistente na modernidade: a oposição entre a moral cristã tradicional, orientada pela verdade, pela justiça e pela caridade, e as exigências práticas da política, voltadas para o sucesso, a eficácia e a sobrevivência do Estado. Essa tensão aparece de forma intensa no processo de centralização do poder nos séculos XVI e XVII, quando os príncipes europeus, diante de guerras religiosas, crises de autoridade e ameaças à ordem, passaram a justificar medidas excepcionais, muitas vezes imorais ou violentas, como necessárias para o bem maior do Estado.
A análise de Meinecke, embora perspicaz, circunscreve a "razão de Estado" como um conflito inerente à modernidade, mas a estrutura desse dilema é anterior e mais profunda do que a mera tensão entre a moralidade cristã e a prática política. Olavo de Carvalho, em "O Jardim das Aflições", demonstra que a própria noção de um poder temporal que se legitima por sua capacidade de garantir a sobrevivência e a expansão — a Staatsräson de Meinecke — é um dos sintomas da ascensão do que ele chama de "religião de César". Este fenômeno não é apenas um arranjo pragmático, mas a consolidação de uma nova forma de sacralidade que transfere a autoridade última da esfera espiritual (a Igreja, a consciência individual) para a esfera temporal (o Estado). Nesse sentido, o conflito que Meinecke descreve não é apenas entre a moral cristã e a necessidade política, mas entre duas formas de religião: a religião do Deus transcendente, que fundamenta a moralidade objetiva, e a religião imanente do Estado, que se torna a fonte de sua própria moralidade (CARVALHO, 1998, p. 135).
O núcleo da obra é a dialética entre o ideal ético e o realismo político, entre a norma universal da moral cristã e a exceção pragmática do poder político. A política moderna, diz Meinecke, nasce marcada por esse conflito. A “razão de Estado” é, pois, a consciência da primazia da política sobre a ética individual ou, ao menos, sua autonomia relativa.
Aqui, a perspectiva do Objetivismo oferece um esclarecimento crucial: não existe uma "dialética" intrínseca entre o "ideal ético" e o "realismo político". Essa oposição é uma falsa alternativa. Uma ética racional e objetiva não é um conjunto de mandamentos transcendentais divorciados da realidade, mas um código de valores derivado das exigências factuais da sobrevivência do homem qua homem. A moralidade, portanto, é realismo. A suposta "exceção pragmática" que a razão de Estado invoca é, na verdade, a substituição de princípios de longo prazo (justiça, direitos individuais) por expediency de curto prazo. A "tragédia" de Meinecke é o resultado de uma filosofia que separou a moral da vida, a ética da razão, transformando a primeira num idealismo impraticável e a segunda num pragmatismo amoral. O governante que viola direitos individuais em nome da "segurança do Estado" não está fazendo uma escolha "trágica" entre dois bens, mas sacrificando a moralidade (a base da sobrevivência a longo prazo) em nome do poder arbitrário. A "autonomia relativa" da política é, na verdade, a declaração de que o poder coletivo pode operar fora dos limites da moralidade objetiva, o que é a definição de tirania.
A dimensão religiosa está presente em toda a análise de Meinecke. Ele mostra como, na cristandade medieval, a política estava subordinada à moral cristã, inspirada nos mandamentos do Evangelho e na autoridade da Igreja. O poder político era visto como um instrumento da ordem divina, e o príncipe era um servo da justiça e da moralidade objetiva.
Carvalho (1998) aprofunda essa análise ao mostrar que a subordinação da política à moral na Idade Média não era monolítica. A tensão entre o poder temporal (realeza) e a autoridade espiritual (sacerdócio) era a própria dinâmica da civilização ocidental. A "razão de Estado" emerge precisamente quando essa tensão se resolve em favor do poder temporal, que absorve as funções sacerdotais. O exemplo de Henrique VIII, que se torna chefe da Igreja, é paradigmático: ele não apenas subordina a Igreja, mas se torna a própria fonte da autoridade religiosa em seu reino. Ele é César ressuscitado, que agora não apenas governa os corpos, mas também as almas (CARVALHO, 1998, p. 146). A Staatsräson é, portanto, a teologia desse novo deus: o Estado auto-sacralizado.
Entretanto, com o advento da Reforma e do Renascimento, essa concepção foi profundamente abalada. A fragmentação religiosa, a emergência do individualismo e a nova visão do homem como ser ativo e autônomo abrem espaço para uma política que reconhece a realidade do pecado e da imperfeição humana. Meinecke observa que o pensamento moderno (sobretudo influenciado por Maquiavel) assume que o homem político precisa lidar com o mal, e até praticá-lo, se necessário, para evitar males maiores. Aqui se insere a ideia de que, em nome do bem público, é lícito ao governante cometer atos moralmente questionáveis.
Nesse sentido, a razão de Estado não nega a moral, mas a relativiza diante de circunstâncias extremas. O governante pode ser “forçado” a agir contra os princípios cristãos para preservar a ordem e evitar o caos. Trata-se de uma espécie de "pecado trágico", praticado por necessidade, com consciência do mal que implica, mas ainda assim justificável por seus fins.
A ideia de um "pecado trágico" justificável é uma racionalização sofisticada da imoralidade. Do ponto de vista do Objetivismo, um "mal necessário" é uma contradição em termos. A realidade não impõe contradições. Se um governante se vê diante de uma escolha onde todas as opções parecem exigir a violação de princípios morais, é porque premissas falsas ou ações imorais anteriores o colocaram nessa situação. A "necessidade" não é uma força metafísica, mas o resultado de escolhas humanas. O que é apresentado como "preservar a ordem" é, frequentemente, a preservação de uma ordem injusta ou de um poder ilegítimo. O verdadeiro "bem público" não pode ser alcançado através do sacrifício sistemático de indivíduos, pois a sociedade não é uma entidade com vida própria, mas uma associação de indivíduos. Sacrificar o indivíduo ao "bem público" é sacrificar o fim (os indivíduos) aos meios (a organização social).
Carvalho, por sua vez, mostra que a ascensão do Império americano e do Estado moderno em geral é precisamente a institucionalização dessa lógica: a criação de um poder que, em nome de "direitos" abstratos e de uma suposta "vontade coletiva", se arroga a autoridade de definir a moralidade e de intervir em todas as esferas da vida, tornando-se, ao final, o "Estado bedel" que governa uma massa de indivíduos atomizados e infantilizados (CARVALHO, 1998, p. 174).
Meinecke destaca que a Staatsräson se baseia em três pilares:
A necessidade (Notwendigkeit): a política é o reino das circunstâncias e das urgências. Muitas vezes, o governante se vê compelido a agir fora da norma para preservar o todo.
A segurança do Estado: o primeiro dever do príncipe moderno é garantir a sobrevivência do Estado, mesmo que isso exija medidas excepcionais.
A manutenção do poder: o poder político, uma vez instituído, precisa ser protegido contra inimigos internos e externos — mesmo à custa de transgressões morais.
Esses elementos definem um novo tipo de ética: uma ética da responsabilidade, em oposição à ética da convicção pura. O estadista deve considerar as consequências de seus atos e não apenas sua intenção moral.
Esses três pilares são, na verdade, os pilares da tirania. A "necessidade" é o álibi universal dos déspotas. A "segurança do Estado" é o pretexto para esmagar a segurança do indivíduo. A "manutenção do poder" é o objetivo que justifica qualquer meio. A distinção entre "ética da responsabilidade" e "ética da convicção" é outra falsa dicotomia. Uma ética racional é uma ética de responsabilidade para com a realidade e para com as consequências lógicas das próprias ações. Um homem de convicção racional age de forma responsável. A oposição só existe para quem sustenta convicções irracionais ou para quem define responsabilidade como a mera adaptação a pressões de curto prazo.
Carvalho (1998, p. 149) aponta para a emergência de um "corpo místico" da nação, como teorizado por Sir John Fortescue, que precede a formulação de Meinecke. A Staatsräson é a liturgia desse corpo místico, onde o Estado se torna uma entidade com uma vida e uma moralidade próprias, superior à dos indivíduos que o compõem. O governante, nesse quadro, não é mais um indivíduo responsável perante uma lei moral objetiva, mas o sumo sacerdote de um culto estatal.
Meinecke não é um apologista da razão de Estado sem limites. Ele reconhece que, se levada ao extremo, essa doutrina pode justificar o despotismo e o maquiavelismo mais cínico. Por isso, ele busca delimitar o espaço legítimo da razão de Estado dentro de um arcabouço ético e espiritual mais amplo.
Para ele, a política moderna precisa equilibrar dois princípios fundamentais:
A consciência moral do indivíduo e da tradição religiosa;
A necessidade histórica e política da preservação do Estado.
A razão de Estado, assim, deve ser controlada por uma consciência superior, por uma cultura política que respeite o ser humano como fim e não apenas como meio. Meinecke valoriza especialmente os momentos em que estadistas souberam unir realismo e moralidade, como foi o caso de Frederico, o Grande ou mesmo Bismarck em certos momentos.
A tentativa de Meinecke de "equilibrar" esses princípios é, em si, um sintoma da tragédia que ele descreve. Ele aceita a premissa de que há um conflito insolúvel entre a moral e a política, e então busca uma solução de compromisso. Mas a solução não está no compromisso, e sim na rejeição da premissa. O que se deve equilibrar não é a "moral" e a "necessidade", mas sim os direitos dos indivíduos e as funções legítimas de um governo. Um governo legítimo é aquele que protege os direitos individuais, e suas ações são limitadas por essa função. Não existe "necessidade histórica" que possa justificar a violação de direitos. O que existe são escolhas.
Carvalho demonstra que a modernidade, ao abandonar a autoridade espiritual transcendente, não deixou um vácuo, mas o preencheu com a autoridade imanente do Estado, do processo histórico e do "corpo místico" da nação ou da humanidade. A "consciência superior" que Meinecke invoca já não pode ser a da tradição religiosa, que foi destronada, nem a da consciência individual, que foi relativizada. Ela só pode ser a própria Staatsräson elevada à categoria de imperativo categórico. O controle se torna a própria doença que se pretendia curar. É a "inversão diabólica" que Carvalho descreve: a ascensão da força tomando o lugar do espírito (CARVALHO, 1998, p. 145).
Ao final da obra, Meinecke sugere que a razão de Estado é um produto inevitável da modernidade, mas também um desafio moral contínuo. A política é o lugar do trágico porque obriga os homens a escolher entre o bem e o necessário, entre a moral pessoal e a responsabilidade coletiva. A grandeza do estadista reside, justamente, na capacidade de carregar esse fardo com lucidez e nobreza, sem se entregar ao cinismo.
A conclusão de Meinecke é a resignação diante de uma premissa falsa. A verdadeira tragédia da política moderna não é a escolha entre o bem e o necessário, mas a recusa em definir o bem em termos racionais e objetivos, e a consequente entrega do destino humano ao "necessário", ou seja, ao poder bruto. A "grandeza do estadista" não reside em "carregar o fardo" da imoralidade, mas em recusar-se a carregá-lo; em subordinar a política à moral, e não o contrário.
Em última análise, a Staatsräson é a expressão da vitória do "homem de poder", o comissário, sobre o "homem de espírito", o iogue, para usar a tipologia de Koestler que Carvalho analisa. No entanto, como Carvalho demonstra, a síntese moderna cria a figura do "iogue-comissário", o líder que justifica a tirania temporal com argumentos espirituais imanentizados (CARVALHO, 1998, p. 124). Ele não apenas age "por necessidade", mas ensina que essa necessidade é o novo evangelho. A razão de Estado, portanto, não é apenas uma prática política; é a religião civil do mundo moderno, o culto a César que se consolida no Império Americano e se expande como a forma final da modernidade, como o próprio "Jardim das Aflições" para onde a civilização se dirige.
Referência
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César — Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.