A
Semana Santa, ápice do ano litúrgico, é um tempo de profunda espiritualidade e
renovação para os cristãos, mas o abandono progressivo de práticas tradicionais,
especialmente as do rito tridentino, tem esvaziado sua riqueza simbólica e
espiritual. As cerimônias que veremos são testemunhas de uma tradição que, em
muitos lugares, foi substituída por simplificações ou negligenciada, privando os
fiéis de uma experiência plena da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. A
seguir, analisamos criticamente esse abandono, destacando as cerimônias de cada
dia abordado — Quinta-feira Santa, Sábado Santo e Domingo de Páscoa — e
resgatando elementos tridentinos esquecidos que merecem ser revalorizados.
A Missa In Coena Domini, com o lava-pés e a transladação do
Santíssimo Sacramento, permanece como um pilar da Quinta-feira Santa, evocando a
instituição da Eucaristia, do sacerdócio e o mandamento do amor. No entanto, a
redução desse rito em muitas paróquias a uma celebração apressada ou desprovida
de solenidade trai sua gravidade. O lava-pés, por exemplo, frequentemente perde
seu caráter de humildade quando transformado em gesto performático, distante da
intenção original de serviço. Após a Missa, a adoração noturna, que convida à
vigília com Cristo no Getsêmani, é cada vez menos incentivada, substituída por
uma mentalidade pragmática que esvazia o chamado à contemplação.Mais grave ainda
é o quase total abandono do Ofício de Tenebras, uma prática tridentina que,
embora mencionada, merece destaque por sua ausência generalizada. No rito
tridentino, o Tenebras para a Quinta-feira Santa (rezado na noite de
Quarta-feira ou madrugada de Quinta) era uma celebração comovente, com salmos,
lamentações de Jeremias e o gradual apagamento das velas, simbolizando as trevas
da traição de Judas e a solidão de Cristo. Essa liturgia, rica em poesia e
simbolismo, foi praticamente extinta nas paróquias modernas, mesmo em
comunidades que poderiam resgatá-la. Seu esquecimento priva os fiéis de uma
meditação profunda sobre o sofrimento de Cristo, substituída por celebrações
menos densas ou por silêncio litúrgico estéril.
O Sábado Santo, dia
de silêncio e expectativa, culmina na majestosa Vigília Pascal, com a bênção do
fogo, o Círio Pascal e as profecias que narram a história da salvação. No rito
tridentino, essa liturgia era ainda mais rica, com doze profecias (em vez das
sete ou menos do rito moderno), cantadas em latim com um tom solene que
reforçava a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. A redução dessas
leituras, embora justificada por razões pastorais, diminui a imersão dos fiéis
na grandiosidade do plano divino. Além disso, a bênção do fogo, que deveria ser
um momento de impacto espiritual, muitas vezes é tratada com pressa ou
informalidade, perdendo sua força simbólica como vitória da luz sobre as trevas.
Outro elemento tridentino negligenciado é o jejum pascal estrito, que, no
passado, se estendia até a Vigília. Embora tenha sido mencionado que o jejum não
termina obrigatoriamente ao meio-dia, a tradição tridentina incentivava uma
abstinência mais rigorosa no Sábado Santo, refletindo a espera pela
Ressurreição. Hoje, essa prática foi amplamente abandonada, mesmo em comunidades
conservadoras, com fiéis frequentemente desconectados do espírito de penitência
que prepara o coração para a alegria pascal. A ausência de uma disciplina
quaresmal mais marcante no Sábado Santo reflete uma tendência a suavizar a
ascese cristã, privando-a de sua capacidade formativa.
O Domingo de
Páscoa, com a Missa do Dia celebrando a Ressurreição, deveria ser o clímax da
Semana Santa. Contudo, a liturgia moderna, embora festiva, muitas vezes carece
da solenidade que caracterizava o rito tridentino. Um exemplo claro é o abandono
das Matinas Solenes, que, no rito antigo, eram celebradas na madrugada do
Domingo de Páscoa com cânticos vibrantes, como o Te Deum e hinos pascais,
marcando o triunfo de Cristo com uma alegria quase palpável. Essa prática, comum
em mosteiros e catedrais até o início do século XX, foi praticamente esquecida,
exceto em raros contextos tradicionais. Sua ausência deixa um vazio na
celebração pascal, que poderia começar o dia com uma explosão de louvor
litúrgico.
As Laudes, embora ainda presentes em comunidades religiosas, também
sofreram declínio nas paróquias. No rito tridentino, as Laudes pascais eram
cantadas com esplendor, muitas vezes em procissão, com salmos e o Benedictus
proclamando a vitória de Cristo. Hoje, sua prática é restrita a mosteiros ou
igrejas com forte tradição litúrgica, enquanto a maioria dos fiéis se limita à
Missa dominical, sem acesso a essa oração matinal que complementa a
espiritualidade pascal. Esse abandono reflete uma tendência mais ampla de
reduzir a Liturgia das Horas a um exercício clerical, em vez de uma herança
comum dos fiéis.
O abandono dessas práticas tradicionais — do Ofício
de Tenebras à Quinta-feira Santa, do jejum rigoroso e das profecias completas no
Sábado Santo, até as Matinas Solenes e Laudes no Domingo de Páscoa — representa
uma perda inestimável para a Igreja. A simplificação litúrgica, muitas vezes
justificada pela acessibilidade, acabou por diluir a profundidade teológica e a
beleza que sustentavam a fé de gerações. No rito tridentino, cada gesto, cântico
e silêncio era cuidadosamente estruturado para conduzir os fiéis ao mistério
pascal; hoje, muitas celebrações parecem apressadas ou desconexas, mais focadas
em cumprir um cronograma do que em transformar corações.
Além disso,
a negligência de práticas como o Tenebras ou as Matinas Solenes reflete uma
desconexão com a tradição que moldou a identidade católica. Essas cerimônias não
eram meros ornamentos, mas expressões vivas da fé, capazes de ensinar, consolar
e elevar. Sua substituição por liturgias minimalistas ou por uma espiritualidade
individualista empobrece a comunidade e enfraquece o senso de continuidade com a
Igreja de séculos passados. A Semana Santa, que deveria ser um mergulho total no
mistério de Cristo, torna-se, em muitos lugares, uma sequência de eventos
desconexos, sem a força pedagógica e espiritual que o rito tridentino oferecia.