A Heresia Antilitúrgica, por Dom Francesco Ricossa

O artigo originalmente publicado na Revista Sodalitium (nº 11, novembro de 1986), e agora republicado no Seminário São José, aborda o que o autor chama de "heresia antilitúrgica", um conjunto de ideias e práticas que, desde o século XVIII, têm minado a liturgia tradicional da Igreja Católica. Ele argumenta que essas reformas, influenciadas pelo Iluminismo, Jansenismo e, posteriormente, pelo modernismo, culminaram nas mudanças litúrgicas do Concílio Vaticano II, especialmente sob o pontificado de João XXIII. A análise é dividida em três partes principais: a definição e importância da liturgia, a evolução histórica da heresia antilitúrgica e as reformas específicas de João XXIII como sua concretização.
 
1. A Importância da Liturgia

O texto começa com uma citação de Dom Prosper Guéranger, que define a liturgia como o "conjunto de símbolos, canções e atos" pelos quais a Igreja manifesta sua fé e culto a Deus. Ricossa enfatiza que a liturgia não é apenas um ritual, mas uma expressão pública e essencial da fé católica, sendo, portanto, um alvo natural para aqueles que desejam alterar a doutrina tradicional. Ele sugere que qualquer ataque à liturgia é, em essência, um ataque à Tradição e à identidade da Igreja.

2. Origens e Desenvolvimento da Heresia Antilitúrgica

Ricossa traça as raízes da "heresia antilitúrgica" ao século XVIII, associando-a ao Iluminismo racionalista e ao Jansenismo, que, como o Protestantismo, rejeitavam aspectos da liturgia romana tradicional. Ele cita exemplos históricos, como as reformas do arcebispo jansenista de Paris, Vintimille, em 1736, que сократиu as Matinas a três lições para simplificar o Breviário, suprimindo partes das Escrituras e comentários patrísticos. Essas ideias, segundo o autor, ressurgiram no século XX por meio do "Movimento Litúrgico", que, embora iniciado com boas intenções sob São Pio X, foi gradualmente desviado por figuras como Dom Lambert Beauduin, Pius Parsch e Romano Guardini. Esses liturgistas, nas décadas de 1920 e 1930, promoveram práticas como a "missa dialogada", a celebração em vernáculo e a orientação da missa voltada para o povo, que Ricossa considera uma ruptura com a Tradição.

O autor também conecta essas tendências ao Sínodo de Pistoia (1786) e às reformas de José II no Império Habsburgo, que, inspiradas pelo Iluminismo, buscavam uma liturgia mais "racional" e focada no homem, em vez de em Deus. Ele argumenta que o Concílio Vaticano II representou a realização plena dessas ideias, com uma "desolação litúrgica" que tem raízes no racionalismo do século XVIII.

3. As Reformas de João XXIII como Culminação

Ricossa dedica atenção especial às reformas litúrgicas de João XXIII em 1960, que ele vê como uma continuação direta da heresia antilitúrgica. Entre as mudanças criticadas estão:

Redução das Matinas a três lições: Assim como Vintimille, João XXIII simplificou o Ofício Divino, eliminando grande parte das Escrituras, vidas dos santos e comentários dos Padres da Igreja, o que Ricossa considera uma perda teológica grave.

Substituição de fórmulas eclesiásticas por leituras bíblicas sem comentários: Enquanto o Breviário de São Pio X integrava as Escrituras com interpretações patrísticas, o de João XXIII as deixou isoladas, enfraquecendo a Tradição interpretativa da Igreja.

Supressão de festas dos santos em favor dos domingos: Isso reflete, segundo o autor, um desprezo pela veneração tradicional dos santos, outro pilar da liturgia católica.

Ele compara essas reformas às do século XVIII, sugerindo uma semelhança "literal" e uma influência contínua do Iluminismo e do Jansenismo. Para Ricossa, tais mudanças não são meras adaptações, mas parte de um projeto deliberado para secularizar e humanizar a liturgia, afastando-a de seu foco sobrenatural.

4. Contexto e Posicionamento

O artigo reflete a posição sedevacantista do Seminário São José, que considera os papas pós-Vaticano II como ilegítimos devido às heresias introduzidas no Concílio. Ricossa cita Klaus Gamber para reforçar sua crítica, destacando que as reformas modernas priorizam o homem e questões sociais em detrimento do culto divino, um eco das ideias iluministas. Ele conclui que a "desolação litúrgica" atual é o resultado de três séculos de gestação dessas tendências heréticas, plenamente realizadas no século XX.

Biografia

Francesco Ricossa é um sacerdote italiano, conhecido por ser o superior do Istituto Mater Boni Consilii (IMBC), uma congregação tradicionalista católica sedevacantista baseada em Verrua Savoia, perto de Turim, Itália. Ricossa foi ordenado padre por Dom Marcel Lefebvre, fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), da qual ele fez parte antes de se separar em 1985, junto com outros três sacerdotes, para fundar o IMBC. Embora o IMBC tenha um bispo associado, Dom Geert Jan Stuyver, que foi consagrado em 2002 por Dom Robert Fidelis McKenna para atender às necessidades da congregação, Francesco Ricossa permanece como sacerdote e não recebeu consagração episcopal. Ele é uma figura proeminente no movimento sedevacantista e sedeprivacionista, sendo também editor da revista Sodalitium e autor de diversos textos teológicos.