A gnose e o antropoteísmo litúrgico na Igreja Pós-Conciliar


Monsenhor Carlo Maria Viganò apresenta uma crítica contundente a um artigo do Cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago. A tese central de Viganò é que as reformas litúrgicas e eclesiológicas do Concílio Vaticano II não representam uma "restauração" de uma pureza primitiva, como argumenta Cupich, mas sim a culminação de um longo processo revolucionário, de natureza gnóstico-panteísta, que busca substituir a religião teocêntrica de Deus pela religião antropocêntrica do Homem.

Viganò denuncia Cupich como um expoente da "igreja conciliar e sinodal", alinhada com a "esquerda globalista e LGBTQ+", e o acusa de falsificar a história litúrgica para justificar o Novus Ordo. Segundo Viganò, a alegação de que a liturgia tradicional foi "obscurecida" por elementos das cortes imperiais (períodos Carolíngio e Barroco) é uma falsidade histórica, repetindo acusações de hereges protestantes e modernistas. A verdadeira intenção da reforma, argumenta ele, foi inverter a abordagem teocêntrica, transformando a Missa de um Sacrifício a Deus em um "evento comunitário" centrado no homem.

Essa inversão, segundo Viganò, é análoga à revolução política contra o trono, agora completada pela revolução contra o altar. Ele conclui que a visão de Cupich sobre a Tradição—uma fé "viva" que evolui, em oposição a um "tradicionalismo" morto—é, na verdade, uma traição à fé católica, que consiste em transmitir intacto o depósito da Revelação. O artigo de Cupich é visto como uma "declaração de guerra à Tradição", movida pelo medo de que o poder usurpado pelos "Inovadores" na Igreja esteja ameaçado pelo crescente movimento tradicionalista.

📖A Inversão Litúrgica: Da Adoração de Deus ao Culto do Homem

A tese apresentada denuncia com acerto a inversão operada na Igreja pós-conciliar, identificando-a como uma mudança de paradigma de teocêntrico para antropocêntrico. Essa análise, contudo, ganha uma profundidade ainda maior quando compreendida não apenas como uma crise moderna, mas como a manifestação contemporânea de um fenômeno muito mais antigo e persistente: o Antropoteísmo, ou a Religião do Homem. Esta "religião cársica", que ora emerge, ora se oculta na história, encontra na crise litúrgica seu campo de batalha decisivo, pois é no altar que a relação entre o Criador e a criatura é definida e vivida.

O argumento de que a reforma litúrgica buscou uma "nobre simplicidade" contra um suposto "crescimento tumoral" do cerimonial é, de fato, um eco de antigas heresias gnósticas. A Gnose, em sua essência, repudia a matéria como uma prisão para o espírito. Consequentemente, sua eclesiologia tende a um "espiritualismo" que rejeita tudo o que é visível, hierárquico, material e ritualístico na Igreja. Os sinos tornam-se "trombetas de Satã", os templos "amontoados de pedras", os paramentos e as imagens são vistos como corrupções que obscurecem a "pureza" de uma igreja invisível, "do coração". A acusação de que a Igreja se corrompeu ao se associar ao poder temporal, especialmente a partir de Constantino e do Papa São Silvestre, é um refrão constante em movimentos como o dos Cátaros, dos Fraticelli e, mais tarde, dos reformadores protestantes (Fedeli, 2011).

Essa hostilidade à forma externa é a manifestação visível de um ódio metafísico mais profundo. A liturgia católica tradicional, com sua riqueza simbólica, sua hierarquia sagrada e sua orientação ad orientem, reflete a ordem da criação. Nela, cada gesto, cada paramento, cada nota do canto gregoriano são como "véus que velam e revelam o Criador", espelhando a hierarquia dos seres que ascendem analogicamente até Deus (Fedeli, 2011). A reforma litúrgica, ao abolir essa sacralidade em nome da "participação ativa" e da "simplicidade", não apenas empobreceu o rito, mas destruiu sua função exemplar, transformando-o de um espelho do céu em um espelho da própria comunidade reunida. O Sacrifício oferecido a Deus foi substituído pela celebração da vida do povo.

A tese em discussão aponta corretamente para a inversão do altar, mas é crucial entender que essa inversão litúrgica é a consequência direta de uma inversão soteriológica. A soteriologia católica afirma que o homem, decaído pelo pecado, necessita de um Redentor externo e divino. A soteriologia do Antropoteísmo, por sua vez, afirma que o homem é o "redentor que se redime a si mesmo" (Fedeli, 2011, p. 222). Se o homem é o seu próprio salvador, a liturgia naturalmente deixa de ser um ato de propiciação e adoração a um Deus transcendente para se tornar um ato de autocelebração e conscientização de sua própria "divindade" imanente. A "participação ativa" deixa de ser a união interior com o Sacrifício de Cristo para se tornar protagonismo humano, onde o homem se torna o centro da ação sagrada.

Neste novo paradigma, a Igreja deixa de ser o Corpo Místico de Cristo, cuja finalidade é a salvação eterna das almas, para se tornar uma instituição a serviço do homem, preocupada com "injustiça social" e com a construção de uma utopia terrena. Essa é a manifestação eclesiológica do Panteísmo, o outro ramo da Religião do Homem. Enquanto a Gnose ataca a Igreja por sua materialidade, o Panteísmo a coopta para seus fins imanentes. A "Igreja que eu quero", descrita com ironia em certos textos modernos, uma igreja "sem dogmas", "caseira", onde "pecadores, maricas, drogadictos" são os fundamentos, nada mais é que a expressão grotesca dessa eclesiologia antropoteísta (Fedeli, 2011).

Finalmente, a distinção proposta entre "Tradição" e "tradicionalismo" é a própria essência da dialética gnóstica aplicada à história. Na visão herética, a "Tradição viva" é aquela que se adapta, que evolui, que "muda" para permanecer "a mesma" — uma contradição em termos. Para a fé católica, a Tradição é a transmissão imutável de um depósito que não pode ser alterado, pois seu autor é Deus. A acusação de que o "tradicionalismo" é a "fé morta dos vivos" ecoa a acusação gnóstica de que a Lei do Antigo Testamento — fixa e imutável — era obra de um Demiurgo ignorante, enquanto a "verdadeira" revelação é sempre fluida, secreta e "espiritual". O ataque à Tradição não é, portanto, um mero debate sobre costumes, mas uma guerra contra a própria natureza da Revelação e contra o Deus que não muda.

📚Referências

Fedeli, Orlando. (2011). Antropoteísmo: A Religião do Homem. Editora Celta.