A Exegese de Raymond E. Brown: Conflitos Hermenêuticos e Tensões Dogmáticas


O Padre Raymond E. Brown (1928-1998) consolidou-se como um dos mais influentes biblistas católicos do século XX. Sua trajetória acadêmica e eclesial foi marcada pelo uso extensivo do método histórico-crítico para analisar a Bíblia. Brown foi pioneiro na aplicação e na legitimação desse método entre católicos nos EUA, especialmente após o impulso dado pelas encíclicas Divino Afflante Spiritu (1943) de Pio XII, e pela constituição dogmática Dei Verbum (1965) do Concílio Vaticano II, que abriram espaço para abordagens críticas e científicas no estudo das Escrituras. No entanto, a recepção de sua obra não foi unânime. Diversos críticos tradicionalistas, como o Cardeal Lawrence Shehan, Mons. George A. Kelly (autor da obra crítica The New Biblical Theorists, 1983), o Pe. Richard Gilsdorf e outros, acusam-no de minar dogmas centrais da fé católica ao priorizar a análise histórica sobre a tradição e a inerrância bíblica literal. Para esses opositores, a metodologia de Brown representaria uma ruptura com a hermenêutica da continuidade.

👼 A historicidade das narrativas da infância de Jesus

Um dos pontos de maior fricção reside na análise das obras The Birth of the Messiah (1977/1993) e "An Adult Christ at Christmas" (1978). Nelas, Brown considera "muito incertos" ou de valor histórico duvidoso elementos como a aparição de anjos a Maria e José, a estrela guiando os magos, os anjos aos pastores, o massacre dos inocentes por Herodes, a fuga para o Egito e até se Maria e José viviam em Nazaré antes do nascimento de Jesus. Ele vê essas narrativas mais como "teologização" pós-ressurreição (mensagens teológicas elaboradas pelas comunidades primitivas) do que como fatos históricos precisos. Essa postura é interpretada pelos tradicionalistas como uma relativização de milagres e um ataque indireto a dogmas como a virgindade perpétua de Maria, uma vez que a desconstrução da literalidade do relato bíblico fragilizaria, na visão desses críticos, o suporte escriturístico da doutrina Mariana.

📜 O questionamento da inerrância total da Escritura

Tradicionalistas acusam Brown de negar a inerrância plena da Bíblia (ensinada em encíclicas como Providentissimus Deus de Leão XIII e Spiritus Paraclitus de Bento XV), ao sugerir que partes dos Evangelhos contêm elementos mitológicos ou não históricos para transmitir verdades teológicas, em vez de fatos literais. A crítica reside na transição de uma inerrância absoluta - que abrange geografia, história e ciência - para uma inerrância limitada ou salvífica, conforme alguns interpretam a Dei Verbum (n. 11). Para os críticos de Brown, essa distinção abre precedentes para que qualquer evento incômodo à mentalidade moderna seja classificado como "gênero literário" não histórico, esvaziando o caráter divinamente inspirado da narrativa bíblica.

⛪ Abordagem à Ressurreição e à fundação da Igreja

Embora Brown defenda a Ressurreição corporal de Jesus como um evento real, sua ênfase no método crítico leva a questionamentos sobre detalhes das aparições pós-ressurreição e outros milagres (como a Transfiguração), vistos como construções teológicas destinadas a expressar a fé da Igreja primitiva. Críticos dizem que isso enfraquece a historicidade física da Ressurreição e a fundação da Igreja por Jesus. Somado a isso, Brown é frequentemente contestado por suas teses sobre o episcopado monárquico e a sucessão apostólica; em obras como "Priest and Bishop" (1970), ele sugere que a estrutura eclesial evoluiu gradualmente, o que, para os tradicionalistas, contradiz a instituição direta e imediata da hierarquia pelo Cristo histórico.

⚖️ A separação entre crítica histórica e tradição magisterial

Brown é criticado por tratar a Bíblia como um texto independente da Tradição magisterial, promovendo um "concordismo" liberal que reinterpretava documentos da Igreja para harmonizar com achados críticos, o que seria uma distorção da doutrina. Essa "autonomia da exegese" é vista por autores como George A. Kelly como a criação de um "segundo magistério" - o dos acadêmicos -, que se sobrepõe ao magistério oficial da Igreja. Alegam que Brown isolava o texto de seu contexto eclesial vivo, transformando a fé em um objeto de laboratório passível de revisão constante por especialistas.

🕊️ Legado e tensões no pós-concílio

Essas críticas vêm principalmente de círculos conservadores e tradicionalistas católicos, que veem Brown como representante de um "modernismo" pós-Vaticano II que aliena a Igreja de seu centro divino. Por outro lado, Brown era elogiado por moderados - incluindo o então Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI), que, embora demonstrasse apreço pelo rigor técnico de Brown e tenha defendido sua nomeação para a Pontifícia Comissão Bíblica, posteriormente criticou em sua obra "Jesus de Nazaré" (2007) e na conferência na Erasmus Lecture (1988) os excessos do método histórico-crítico quando este se torna autossuficiente e ignora a unidade interna das Escrituras. Em resumo, para os tradicionalistas, o trabalho de Brown, embora erudito, contribui para uma "teologia nova" que lança dúvida sobre artigos de fé históricos, priorizando a crítica acadêmica sobre a leitura fiel e literal da Escritura na tradição católica. O embate entre a escola de Brown e seus críticos reflete, em última análise, o desafio da Igreja em equilibrar a investigação científica da Bíblia com a salvaguarda do depósito da fé.

📚 Referências

BROWN, Raymond E. The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in Matthew and Luke. Garden City, NY: Doubleday, 1977.
BROWN, Raymond E. The Community of the Beloved Disciple. New York: Paulist Press, 1979.
BROWN, Raymond E. Priest and Bishop: Biblical Reflections. New York: Paulist Press, 1970.
GILS DORF, Richard. The Biblical Thought of Raymond E. Brown: An Analysis.
KELLY, George A. The New Biblical Theorists: Raymond E. Brown and Beyond. Ann Arbor: Servant Books, 1983.
SHEHAN, Lawrence. A Blessing of Years: The Autobiography of Lawrence Cardinal Shehan. 1982.