Um resumo dos últimos séculos revela uma infiltração progressiva e perniciosa de um erro funesto no seio da Igreja: o naturalismo. Entendido como a tendência de explicar a fé, a moral e a própria vida da Igreja a partir de princípios meramente humanos, despojando-os de sua origem e fim sobrenaturais, este erro não é uma novidade isolada, mas a raiz de um mal muito mais profundo. Tendo germinado no racionalismo e no moralismo de séculos passados, ele encontrou sua expressão mais completa e perigosa num sistema que corrói a fé por dentro, conhecido como modernismo, que nada mais é do que o naturalismo aplicado de forma coerente a todos os aspectos da doutrina católica.
🌱 A Falsa Raiz: o Sentimento e a Razão Humilhada
O fundamento de todo este desvio naturalista assenta numa filosofia corrompida, que opera através de dois princípios destrutivos. O primeiro é o agnosticismo, que aprisiona a razão humana ao mundo dos fenômenos, declarando-a incapaz de se elevar a Deus e conhecer com certeza a sua existência por meio das coisas criadas. Com isso, a teologia natural, os milagres e toda a revelação externa são rejeitados como matéria imprópria para a ciência e a história, sendo relegados a um domínio puramente subjetivo (Pio X, 1907).
Uma vez fechada a porta da razão, abre-se uma outra, enganadora: a da imanência vital. Se a religião não pode vir de fora, deve necessariamente brotar de dentro do homem. Sua origem é atribuída a uma necessidade do divino, um movimento cego do coração que emerge do subconsciente e que se manifesta como um sentimento religioso. Esta experiência interior e puramente natural é, para esta doutrina, a única fonte e a própria essência da fé e da revelação (Pio X, 1907). Assim, a ordem sobrenatural é negada em sua origem, sendo reduzida a um produto espontâneo da natureza humana.
💥 A Destruição da Ordem Sobrenatural
Uma vez estabelecido este fundamento naturalista, as consequências para a fé católica são devastadoras e inevitáveis, desdobrando-se com uma lógica implacável. Se a fé é um sentimento, então:
O dogma já não é uma verdade imutável revelada por Deus, mas um mero símbolo, uma fórmula humana criada para expressar aquele sentimento numa dada época. Como o sentimento evolui, o dogma também deve evoluir e adaptar-se, perdendo todo o seu caráter de verdade absoluta (Pio X, 1907).
As Sagradas Escrituras deixam de ser a Palavra de Deus inspirada para se tornarem uma coleção de experiências religiosas extraordinárias, cujo valor é puramente humano e simbólico.
Nosso Senhor Jesus Cristo é despojado de sua divindade. Pelo princípio do agnosticismo, a história só pode vê-lo como homem. A fé, por sua vez, o “transfigura”, mas essa divindade é um produto do sentimento dos primeiros crentes, e não uma realidade objetiva. Ele é rebaixado à craveira de um puro e simples homem, ainda que de natureza excepcional (Pio X, 1907).
A Igreja e os Sacramentos não são mais instituições divinas, mas criações da “consciência coletiva” dos fiéis para organizar e propagar o sentimento religioso. A autoridade, por conseguinte, não emana de Cristo, mas da comunidade, devendo sujeitar-se a formas democráticas.
Com efeito, não se trata de um erro entre outros, mas da “síntese de todas as heresias”, pois ao naturalizar a fé, destrói-se não apenas o catolicismo, mas a própria noção de qualquer religião revelada, abrindo caminho para o panteísmo ou para o ateísmo completo (Pio X, 1907).
🧠 As Causas Morais e Intelectuais da Apostasia
Este sistema não viceja no vácuo, mas é nutrido por profundas desordens morais e intelectuais. A causa primária é a soberba, que leva o homem a confiar presunçosamente em si mesmo, a ponto de se constituir como medida e regra de tudo, desprezando toda autoridade e tradição. É o orgulho que o leva a crer que possui um saber superior, rejeitando a sabedoria dos séculos e abraçando toda sorte de novidades, por mais absurdas que sejam (Pio X, 1907).
A esta soberba alia-se uma funesta ignorância, especialmente da filosofia escolástica. Ao desprezar este método seguro de raciocínio, os fautores do erro carecem dos instrumentos necessários para discernir a confusão das ideias e refutar os sofismas da filosofia moderna, sendo por ela iludidos. Da aliança entre esta falsa filosofia e uma fé já enfraquecida nasce este sistema de erros que ameaça a Igreja (Pio X, 1907).
🔬 O Diagnóstico Definitivo: o Modernismo como Naturalismo Teológico
A análise histórica que traça o avanço do naturalismo — do campo político ao teológico — está correta em seu diagnóstico final. O sistema modernista é, de fato, a manifestação mais completa e coerente do naturalismo no campo da fé. Não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de “um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser” (Pio X, 1907).
A sua perversidade reside no fato de que os seus promotores não são inimigos declarados, mas se ocultam “no próprio seio da Igreja”, fingindo amor por ela enquanto trabalham para “solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo” (Pio X, 1907). O combate a esta peste, portanto, exige não apenas a condenação do erro, mas a aplicação de remédios enérgicos: a restauração da sã filosofia, a vigilância sobre o ensino e a firmeza da autoridade para extirpar este mal que ameaça o depósito da fé.
📚 Referências
Pio X, Papa. Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis sobre as doutrinas modernistas. Vaticano, 1907.