D. ANTÔNIO MARIA CLARET E CLARÁ
BARCELONA. 1862
1. O Evangelho desta Dominica é tomado do capítulo ix de São Mateus, que diz assim:
Naquele tempo: Falando Jesus à multidão que o seguia, chega um homem principal ou chefe de sinagoga, e, adorando-o, lhe disse: Senhor, uma filha minha acaba de morrer; mas vem, impõe tua mão sobre ela, e viverá. Levantando-se Jesus, ia-o seguindo com seus discípulos; quando eis aqui que uma mulher que havia já doze anos que padecia um fluxo de sangue, veio por detrás e tocou o ruedo de seu vestido. Porque dizia ela entre si: Com que possa somente tocar seu vestido, me verei curada. Mas voltando-se Jesus e mirando-a, disse: Filha, tem confiança: tua fé te curou. Em efeito, desde aquele ponto ficou curada a mulher. Vindo Jesus à casa daquele homem principal, e vendo aos tocadores de flautas, ou música fúnebre, e o alvoroço da gente, dizia: Retirai-vos, pois não está morta a menina, senão dormida. E faziam burla dele. Mas echada fora a gente, entra, a toma pela mão, e a menina se levanta. E divulgou-se o sucesso por todo aquele país.
2. Hoje nos refere São Mateus que, estando Jesus falando às turbas, se chega a Ele um magistrado, dizendo-lhe: Senhor, minha filha acaba agora de morrer; mas vem, põe tua mão sobre ela, e viverá. Jesus se levanta e o segue. Nesse tempo, uma mulher que havia doze anos que padecia fluxo de sangue se chega por detrás e toca a orla de seu vestido. Jesus, voltando-se e vendo-a, lhe disse: Confia, filha, tua fé te salvou; e desde aquele ponto ficou sã. E, havendo chegado Jesus à casa do magistrado e vendo os músicos e a turba de gente alvoroçada, dizia: Apartai-vos, porque a menina não está morta, mas dorme. E faziam-lhe burla. E, havendo echado dali a turba, entra e a toma pela mão; e a menina se levanta; e a fama disto se divulgou por toda aquela terra.
A fé e a humildade da mulher de que se faz menção neste Evangelho, e que não se julgava digna de falar a Jesus Cristo, senão que somente desejava tocar o borde de seu vestido, é uma boa instrução para os pecadores que querem converter-se. Ensina-lhes que, depois de haver ofendido a Deus tão gravemente com tantos pecados mortais, devem julgar-se indignos de chegar a Jesus Cristo pela participação de seu sagrado corpo, e que devem estar com as mesmas disposições que o filho pródigo, o qual se contentava com morar na casa de seu pai e ser tratado nela como um jornaleiro ou criado de salário. Também Jesus Cristo fez retirar a multidão de gente que fazia grande ruído antes de entrar no quarto da jovem que estava morta: com o que nos adverte que, se queremos que ressuscite nossa alma, é necessário que arrojemos nossas paixões desregradas que inquietam nosso coração, e que nos retiremos do bulício do mundo e das concorrências profanas; pois não se acha a Deus entre a confusão e o tumulto. Jesus Cristo dizia que aquela jovem não estava morta, senão dormida; sem dúvida seria para mostrar que tão fácil lhe era ressuscitá-la como despertá-la: com isto nos dá também uma bela instrução, e é que a morte dos justos é um princípio da vida bem-aventurada, ou como um sono para o corpo que descansa esperando sua ressurreição. Saquemos desta verdade o assunto deste discurso.
3. Em outra instrução vos hei falado da morte infeliz dos pecadores*, e hoje me hei proposto expor-vos a felicidade da morte dos justos. Vou, pois, fazer-vos ver como a morte é um trânsito feliz para os justos; porque, quando estão para morrer, nem o passado, nem o presente, nem o futuro causa neles motivo algum de pena nem de tormento.
4. Não o passado. O Espírito Santo nos diz que desde então descansarão, e estarão isentos de trabalhos, de dores e de perigos. A alma cristã santamente se alegra quando morre, porque vê o fim de seus trabalhos. Um lavrador se alegra quando o sol se põe e se aproxima a noite, porque conhece que seu trabalho vai cessar por aquele dia, e que logo irá descansar. A alma cristã não pode deixar de estar contente ao ver-se ao fim das misérias desta vida: sabe que vai receber a recompensa de suas boas obras e o prêmio de sua penitência. Um marinheiro que esteve largo tempo no mar ao arbítrio das tempestades, dos ventos e das ondas, e privado da companhia de seus parentes, se alegra quando vê o porto aonde vai parar. Esta vida é uma navegação: a alma está neste mundo como um bajel no mar; é o brinquedo das ondas e das tempestades, vê-se agitada sempre de tentações, e privada da posse de Deus e da companhia de seus Santos. A morte é para ela um porto de salvação: quando o vê de longe o saúda, e se alegra de ver que vai ficar isenta de todo dor. Deus enxugará as lágrimas de seus Santos, diz o Profeta*. A pobreza, os pleitos, os trabalhos, as guerras, a fome, a sede, a tristeza, o tédio e as enfermidades estarão inteiramente desterradas da região onde vai entrar. O que mais a consola é que bem presto estará fora de todo perigo de pecar; nada haverá que a distraia de pensar em Deus, nem que a separe do amor de seu Senhor. Isto quanto ao passado.
5. O presente também não a aflige. Duas coisas costumam angustiar-nos na morte: as dores da enfermidade e as noites longas e pesadas; mas a alma cristã se acha muito aliviada nestes dois pontos. Deus então derrama em seu coração uns consolos que acalmam os ardores da febre, e que embotam as punzadas de seus dores, suavizando as asperezas do mal que a alma sofre em seu corpo. O Profeta rei no-lo diz por estas palavras: O Senhor virá socorrê-la quando está sobre o leito de sua dor: *Dominus opem feret illi super lectum doloris ejus*; em que, segundo os intérpretes, Davi quer dizer que Deus dá voltas ao redor de sua cama como uma mãe caritativa que assiste a um filho enfermo, e que incessantemente se desvela por ele. A qualquer lado que a alma cristã se volte, tem sempre a Jesus seu Deus diante de seus olhos: o pesado das noites longas não a atormenta; pois tem em que entreter-se, havendo feito provisão de bons pensamentos, de santas orações, de atos de adoração, de amor de Deus, de contrição, de resignação em sua vontade, e muito mais se se ocupa em pensar nos mistérios da vida e paixão de seu Salvador.
6. Não lhe dá pena o porvir, e se tranquiliza com estas palavras do apóstolo São Paulo: Aguardamos a nosso Salvador Jesus Cristo, que transformará nosso corpo desprezível, e o fará conforme a seu corpo glorioso*. O que inquieta ao réprobo é o temor do que lhe sucederá a sua alma e a seu corpo: sua alma será apresentada no tribunal do soberano Juiz, e seu corpo será presa dos vermes. O homem justo está isento destas duas penas; porque confia ser apresentado a um Salvador, e não a um juiz, ou ao menos está animado da santa confiança de que, quando Deus o chame a juízo, espera ver-se coroado de glória em presença dos Anjos.
7. Quanto a seu corpo, o homem justo não está com temor nem sobressalto. É verdade que sente seu desfallecimento, e que será reduzido a pó; mas também está certo de que não o será para sempre, que Jesus Cristo o reformará, e o fará conforme ao seu. O Filho de Deus quer reformar nosso corpo mortal e passível para fazê-lo imortal e impassível, nos diz São Paulo. A alma escolhida está contente quando se despoja do vestido de seu corpo, sabendo que se lho volverá a pôr inteiramente novo, e adornado das diademas da glória. Assim, pois, o trânsito do homem justo propriamente não é uma morte, senão uma curta separação da alma; como se um homem de qualidade deixasse sua mulher por alguns anos, fosse à corte para conseguir do rei algum cargo, ou para exercê-lo, com intenção de voltar depois por ela, e levá-la à corte, não se diria com razão que se havia divorciado. A alma do homem se separa por um pouco de tempo do corpo: aquela querida metade vai à corte do céu receber de Deus as recompensas que mereceu com seus serviços, e deve voltar um dia a reunir-se a seu corpo, e fazê-lo participante de sua glória, pois sua ausência é de curta duração.
8. Nesta separação pode supor-se uma doce e apazível despedida entre o espírito e a carne: figurai-vos, pois, por um momento que o corpo pudesse falar, sem dúvida diria à alma: Por que me deixas? Quem te há precisado a separar-te de mim? Te hei desobedecido em algo? Não há sido Deus quem nos uniu? Não me formou a mim para servir-te como de alojamento? E aonde vais, saindo daqui? Que será de mim depois de tua separação? Ficarei desfigurado, despedaçado, mal cheiroso, serei presa dos vermes, e me converterei em pó abominável. Ah! Responderia a alma: se me aparto de ti, não é por estares descontente: vou tomar posse da morada dos Anjos, que os dois havemos merecido com a graça de Jesus Cristo: deverias vir comigo, pois a primeira intenção de Deus foi unir-nos inseparavelmente; mas o pecado de nosso primeiro pai Adão frustrou esta intenção, e te obrigou a pagar este tributo à corrupção; porém, depois de haver sido reduzido a pó, serás como refundido de novo; serás reformado, rejuvenescido, e te levantarás da terra imortal, resplandecente, glorioso, e então nos volveremos a unir por toda a eternidade: adeus, fiel companheiro meu, meu patrono caritativo, tu me hás servido fielmente, obedecido com tanta paciência, e levado tua cruz tão constantemente, que me hás ajudado a merecer a coroa da glória: perdoa se te hei tratado com rigor com as austeridades da penitência, e se te hei privado de muitos prazeres: fi-lo por não condenar-me, e pelo amor que te tinha: Deus te recompensará: não te entristeças, eu me vou a primeira: dia virá em que volverei a unir-me contigo: entre tanto rogo à terra que guarde fielmente esta sagrada prenda que lhe dou em depósito, e que te volva a ti esposa no dia da ressurreição.
9. Consolai-vos, pois, todos os que servis bem a Deus, e viveis santamente; consolai-vos e alegrai-vos pensando na morte. Quando chegue esta hora, funesta para os pecadores e felicíssima para vós, a qualquer parte que volvais os olhos vereis objetos de gozo e de alegria. Se olhardes para cima, contemplareis o céu, que é uma região de delícias, um paraíso em que havereis de gozar sem pecados para sempre, e direis com o real Profeta: *Laetatus sum in his, quae dicta sunt mihi: in domum Domini ibimus*. Alegrei-me porque me disseram: iremos à casa do Senhor. Se para baixo, vereis o inferno que haveis evitado pela misericórdia de Deus, os perigos em que vos haveis visto, as ocasiões em que vos haveis achado, e os pecados que Deus vos há perdoado. Que agradecimento, que alabanças, que bênçãos não dareis a Deus, que vos há ajudado com sua graça! Se olhardes à direita, vereis a santíssima Virgem a quem haveis honrado; à esquerda as almas do purgatório que haveis livrado com vossas orações, os Santos que haveis invocado, e que se gozarão de receber-vos em sua companhia. Se ao frente, vereis os Anjos que vêm diante de vós, que aguardam gozosos a hora de vossa morte para levar vossa alma ao céu, e que fazem a guarda ao redor de vossa cama para impedir que se acerquem os espíritos malignos. A vosso lado tereis a vosso cura que, rezando a recomendação da alma, dirá: Senhor, livrai a alma de vosso servo dos perigos da condenação, como livrastes a Davi da mão de Golias; como livrastes a Susana das falsas acusações, e como livrastes a Daniel da caverna dos leões. Todas estas orações serão ouvidas em vosso favor. E se a Davi, havendo desfeito a Golias, e levado a cabeça deste gigante, as mulheres de Israel lhe saíram ao encontro, cantando um cântico de triunfo por sua vitória, assim também os pecadores que haveis convertido, as pobres jovens que haveis sacado do perigo de perder-se vos virão ao encontro, fazendo um concerto de alabanças pelas vitórias que lhes haveis conseguido contra o mundo, o demônio e a carne. Depois de vossa morte vossos parentes, vossos amigos e vossos vizinhos celebrarão vossos elogios, e publicarão vossa piedade. E à maneira que saindo o profeta Daniel da caverna dos leões se lhe pôs o rei diante, o felicitou de sua dita, e o alabou por sua fidelidade para com Deus, assim quando sairdes deste mundo o Filho de Deus se vos apresentará dizendo a vossa alma: Vem, querida minha, sai desse mundo perverso e corrompido em que estavas entre viciosos e malvados: vem receber a coroa que te tenho preparada: *Veni, sponsa mea, veni, coronaberis*. Esta é a felicidade que vos desejo, etc.
* Veja-se a Plática do Domingo décimo sexto, pág. 291.
* Philip. iii, 20. — *1 Cor. xv, 53.
* Psalm. cxxi.
BARCELONA. 1862
1. O Evangelho desta Dominica é tomado do capítulo ix de São Mateus, que diz assim:
Naquele tempo: Falando Jesus à multidão que o seguia, chega um homem principal ou chefe de sinagoga, e, adorando-o, lhe disse: Senhor, uma filha minha acaba de morrer; mas vem, impõe tua mão sobre ela, e viverá. Levantando-se Jesus, ia-o seguindo com seus discípulos; quando eis aqui que uma mulher que havia já doze anos que padecia um fluxo de sangue, veio por detrás e tocou o ruedo de seu vestido. Porque dizia ela entre si: Com que possa somente tocar seu vestido, me verei curada. Mas voltando-se Jesus e mirando-a, disse: Filha, tem confiança: tua fé te curou. Em efeito, desde aquele ponto ficou curada a mulher. Vindo Jesus à casa daquele homem principal, e vendo aos tocadores de flautas, ou música fúnebre, e o alvoroço da gente, dizia: Retirai-vos, pois não está morta a menina, senão dormida. E faziam burla dele. Mas echada fora a gente, entra, a toma pela mão, e a menina se levanta. E divulgou-se o sucesso por todo aquele país.
2. Hoje nos refere São Mateus que, estando Jesus falando às turbas, se chega a Ele um magistrado, dizendo-lhe: Senhor, minha filha acaba agora de morrer; mas vem, põe tua mão sobre ela, e viverá. Jesus se levanta e o segue. Nesse tempo, uma mulher que havia doze anos que padecia fluxo de sangue se chega por detrás e toca a orla de seu vestido. Jesus, voltando-se e vendo-a, lhe disse: Confia, filha, tua fé te salvou; e desde aquele ponto ficou sã. E, havendo chegado Jesus à casa do magistrado e vendo os músicos e a turba de gente alvoroçada, dizia: Apartai-vos, porque a menina não está morta, mas dorme. E faziam-lhe burla. E, havendo echado dali a turba, entra e a toma pela mão; e a menina se levanta; e a fama disto se divulgou por toda aquela terra.
A fé e a humildade da mulher de que se faz menção neste Evangelho, e que não se julgava digna de falar a Jesus Cristo, senão que somente desejava tocar o borde de seu vestido, é uma boa instrução para os pecadores que querem converter-se. Ensina-lhes que, depois de haver ofendido a Deus tão gravemente com tantos pecados mortais, devem julgar-se indignos de chegar a Jesus Cristo pela participação de seu sagrado corpo, e que devem estar com as mesmas disposições que o filho pródigo, o qual se contentava com morar na casa de seu pai e ser tratado nela como um jornaleiro ou criado de salário. Também Jesus Cristo fez retirar a multidão de gente que fazia grande ruído antes de entrar no quarto da jovem que estava morta: com o que nos adverte que, se queremos que ressuscite nossa alma, é necessário que arrojemos nossas paixões desregradas que inquietam nosso coração, e que nos retiremos do bulício do mundo e das concorrências profanas; pois não se acha a Deus entre a confusão e o tumulto. Jesus Cristo dizia que aquela jovem não estava morta, senão dormida; sem dúvida seria para mostrar que tão fácil lhe era ressuscitá-la como despertá-la: com isto nos dá também uma bela instrução, e é que a morte dos justos é um princípio da vida bem-aventurada, ou como um sono para o corpo que descansa esperando sua ressurreição. Saquemos desta verdade o assunto deste discurso.
3. Em outra instrução vos hei falado da morte infeliz dos pecadores*, e hoje me hei proposto expor-vos a felicidade da morte dos justos. Vou, pois, fazer-vos ver como a morte é um trânsito feliz para os justos; porque, quando estão para morrer, nem o passado, nem o presente, nem o futuro causa neles motivo algum de pena nem de tormento.
4. Não o passado. O Espírito Santo nos diz que desde então descansarão, e estarão isentos de trabalhos, de dores e de perigos. A alma cristã santamente se alegra quando morre, porque vê o fim de seus trabalhos. Um lavrador se alegra quando o sol se põe e se aproxima a noite, porque conhece que seu trabalho vai cessar por aquele dia, e que logo irá descansar. A alma cristã não pode deixar de estar contente ao ver-se ao fim das misérias desta vida: sabe que vai receber a recompensa de suas boas obras e o prêmio de sua penitência. Um marinheiro que esteve largo tempo no mar ao arbítrio das tempestades, dos ventos e das ondas, e privado da companhia de seus parentes, se alegra quando vê o porto aonde vai parar. Esta vida é uma navegação: a alma está neste mundo como um bajel no mar; é o brinquedo das ondas e das tempestades, vê-se agitada sempre de tentações, e privada da posse de Deus e da companhia de seus Santos. A morte é para ela um porto de salvação: quando o vê de longe o saúda, e se alegra de ver que vai ficar isenta de todo dor. Deus enxugará as lágrimas de seus Santos, diz o Profeta*. A pobreza, os pleitos, os trabalhos, as guerras, a fome, a sede, a tristeza, o tédio e as enfermidades estarão inteiramente desterradas da região onde vai entrar. O que mais a consola é que bem presto estará fora de todo perigo de pecar; nada haverá que a distraia de pensar em Deus, nem que a separe do amor de seu Senhor. Isto quanto ao passado.
5. O presente também não a aflige. Duas coisas costumam angustiar-nos na morte: as dores da enfermidade e as noites longas e pesadas; mas a alma cristã se acha muito aliviada nestes dois pontos. Deus então derrama em seu coração uns consolos que acalmam os ardores da febre, e que embotam as punzadas de seus dores, suavizando as asperezas do mal que a alma sofre em seu corpo. O Profeta rei no-lo diz por estas palavras: O Senhor virá socorrê-la quando está sobre o leito de sua dor: *Dominus opem feret illi super lectum doloris ejus*; em que, segundo os intérpretes, Davi quer dizer que Deus dá voltas ao redor de sua cama como uma mãe caritativa que assiste a um filho enfermo, e que incessantemente se desvela por ele. A qualquer lado que a alma cristã se volte, tem sempre a Jesus seu Deus diante de seus olhos: o pesado das noites longas não a atormenta; pois tem em que entreter-se, havendo feito provisão de bons pensamentos, de santas orações, de atos de adoração, de amor de Deus, de contrição, de resignação em sua vontade, e muito mais se se ocupa em pensar nos mistérios da vida e paixão de seu Salvador.
6. Não lhe dá pena o porvir, e se tranquiliza com estas palavras do apóstolo São Paulo: Aguardamos a nosso Salvador Jesus Cristo, que transformará nosso corpo desprezível, e o fará conforme a seu corpo glorioso*. O que inquieta ao réprobo é o temor do que lhe sucederá a sua alma e a seu corpo: sua alma será apresentada no tribunal do soberano Juiz, e seu corpo será presa dos vermes. O homem justo está isento destas duas penas; porque confia ser apresentado a um Salvador, e não a um juiz, ou ao menos está animado da santa confiança de que, quando Deus o chame a juízo, espera ver-se coroado de glória em presença dos Anjos.
7. Quanto a seu corpo, o homem justo não está com temor nem sobressalto. É verdade que sente seu desfallecimento, e que será reduzido a pó; mas também está certo de que não o será para sempre, que Jesus Cristo o reformará, e o fará conforme ao seu. O Filho de Deus quer reformar nosso corpo mortal e passível para fazê-lo imortal e impassível, nos diz São Paulo. A alma escolhida está contente quando se despoja do vestido de seu corpo, sabendo que se lho volverá a pôr inteiramente novo, e adornado das diademas da glória. Assim, pois, o trânsito do homem justo propriamente não é uma morte, senão uma curta separação da alma; como se um homem de qualidade deixasse sua mulher por alguns anos, fosse à corte para conseguir do rei algum cargo, ou para exercê-lo, com intenção de voltar depois por ela, e levá-la à corte, não se diria com razão que se havia divorciado. A alma do homem se separa por um pouco de tempo do corpo: aquela querida metade vai à corte do céu receber de Deus as recompensas que mereceu com seus serviços, e deve voltar um dia a reunir-se a seu corpo, e fazê-lo participante de sua glória, pois sua ausência é de curta duração.
8. Nesta separação pode supor-se uma doce e apazível despedida entre o espírito e a carne: figurai-vos, pois, por um momento que o corpo pudesse falar, sem dúvida diria à alma: Por que me deixas? Quem te há precisado a separar-te de mim? Te hei desobedecido em algo? Não há sido Deus quem nos uniu? Não me formou a mim para servir-te como de alojamento? E aonde vais, saindo daqui? Que será de mim depois de tua separação? Ficarei desfigurado, despedaçado, mal cheiroso, serei presa dos vermes, e me converterei em pó abominável. Ah! Responderia a alma: se me aparto de ti, não é por estares descontente: vou tomar posse da morada dos Anjos, que os dois havemos merecido com a graça de Jesus Cristo: deverias vir comigo, pois a primeira intenção de Deus foi unir-nos inseparavelmente; mas o pecado de nosso primeiro pai Adão frustrou esta intenção, e te obrigou a pagar este tributo à corrupção; porém, depois de haver sido reduzido a pó, serás como refundido de novo; serás reformado, rejuvenescido, e te levantarás da terra imortal, resplandecente, glorioso, e então nos volveremos a unir por toda a eternidade: adeus, fiel companheiro meu, meu patrono caritativo, tu me hás servido fielmente, obedecido com tanta paciência, e levado tua cruz tão constantemente, que me hás ajudado a merecer a coroa da glória: perdoa se te hei tratado com rigor com as austeridades da penitência, e se te hei privado de muitos prazeres: fi-lo por não condenar-me, e pelo amor que te tinha: Deus te recompensará: não te entristeças, eu me vou a primeira: dia virá em que volverei a unir-me contigo: entre tanto rogo à terra que guarde fielmente esta sagrada prenda que lhe dou em depósito, e que te volva a ti esposa no dia da ressurreição.
9. Consolai-vos, pois, todos os que servis bem a Deus, e viveis santamente; consolai-vos e alegrai-vos pensando na morte. Quando chegue esta hora, funesta para os pecadores e felicíssima para vós, a qualquer parte que volvais os olhos vereis objetos de gozo e de alegria. Se olhardes para cima, contemplareis o céu, que é uma região de delícias, um paraíso em que havereis de gozar sem pecados para sempre, e direis com o real Profeta: *Laetatus sum in his, quae dicta sunt mihi: in domum Domini ibimus*. Alegrei-me porque me disseram: iremos à casa do Senhor. Se para baixo, vereis o inferno que haveis evitado pela misericórdia de Deus, os perigos em que vos haveis visto, as ocasiões em que vos haveis achado, e os pecados que Deus vos há perdoado. Que agradecimento, que alabanças, que bênçãos não dareis a Deus, que vos há ajudado com sua graça! Se olhardes à direita, vereis a santíssima Virgem a quem haveis honrado; à esquerda as almas do purgatório que haveis livrado com vossas orações, os Santos que haveis invocado, e que se gozarão de receber-vos em sua companhia. Se ao frente, vereis os Anjos que vêm diante de vós, que aguardam gozosos a hora de vossa morte para levar vossa alma ao céu, e que fazem a guarda ao redor de vossa cama para impedir que se acerquem os espíritos malignos. A vosso lado tereis a vosso cura que, rezando a recomendação da alma, dirá: Senhor, livrai a alma de vosso servo dos perigos da condenação, como livrastes a Davi da mão de Golias; como livrastes a Susana das falsas acusações, e como livrastes a Daniel da caverna dos leões. Todas estas orações serão ouvidas em vosso favor. E se a Davi, havendo desfeito a Golias, e levado a cabeça deste gigante, as mulheres de Israel lhe saíram ao encontro, cantando um cântico de triunfo por sua vitória, assim também os pecadores que haveis convertido, as pobres jovens que haveis sacado do perigo de perder-se vos virão ao encontro, fazendo um concerto de alabanças pelas vitórias que lhes haveis conseguido contra o mundo, o demônio e a carne. Depois de vossa morte vossos parentes, vossos amigos e vossos vizinhos celebrarão vossos elogios, e publicarão vossa piedade. E à maneira que saindo o profeta Daniel da caverna dos leões se lhe pôs o rei diante, o felicitou de sua dita, e o alabou por sua fidelidade para com Deus, assim quando sairdes deste mundo o Filho de Deus se vos apresentará dizendo a vossa alma: Vem, querida minha, sai desse mundo perverso e corrompido em que estavas entre viciosos e malvados: vem receber a coroa que te tenho preparada: *Veni, sponsa mea, veni, coronaberis*. Esta é a felicidade que vos desejo, etc.
* Veja-se a Plática do Domingo décimo sexto, pág. 291.
* Philip. iii, 20. — *1 Cor. xv, 53.
* Psalm. cxxi.