DO SUMO PONTÍFICE LEÃO XIII
SOBRE A RESTAURAÇÃO DA FILOSOFIA CRISTÃ SEGUNDO A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
Veneráveis Irmãos:
Saúde e bênção apostólica.
O Filho Unigênito do Eterno Pai, que apareceu sobre a terra para trazer ao gênero humano a salvação e a luz da sabedoria divina, fez certamente um grande e admirável benefício ao mundo quando, prestes a subir novamente aos céus, ordenou aos apóstolos que «fossem e ensinassem a todas as gentes» (Mt 28,19), e deixou a Igreja por ele fundada como mestra comum e suprema dos povos. Pois os homens, a quem a verdade havia libertado, deviam ser conservados pela verdade; nem teriam durado por longo tempo os frutos das doutrinas celestiais, pelos quais o homem adquiriu a salvação, se Cristo Nosso Senhor não tivesse constituído um magistério perene para instruir os entendimentos na fé. Mas a Igreja, ora animada com as promessas do seu divino autor, ora imitando a sua caridade, cumpriu de tal modo os seus preceitos, que sempre teve por mira e foi seu principal desejo ensinar a religião e lutar perpetuamente contra os erros. A isso tendem os diligentes trabalhos de cada um dos Bispos, a isso as leis e decretos promulgados dos Concílios e, em especial, a cotidiana solicitude dos Romanos Pontífices, a quem, como sucessores no primado do bem-aventurado Pedro, Príncipe dos Apóstolos, pertencem o direito e a obrigação de ensinar e confirmar os seus irmãos na fé. Mas como, segundo o aviso do Apóstolo, «pela filosofia e vã falácia» (Col 2,18) costumam ser enganadas as mentes dos fiéis cristãos e é corrompida a sinceridade da fé nos homens, os supremos pastores da Igreja sempre julgaram ser também próprio da sua missão promover com todas as suas forças as ciências que merecem tal nome, e ao mesmo tempo prover com singular vigilância para que as ciências humanas se ensinassem em toda parte segundo a regra da fé católica, e em especial a filosofia, da qual sem dúvida depende em grande parte o reto ensino das demais ciências. Já Nós, veneráveis irmãos, vos advertimos brevemente, entre outras coisas, sobre isto mesmo, quando pela primeira vez nos dirigimos a vós por cartas Encíclicas; mas agora, pela gravidade do assunto e pela condição dos tempos, vemo-nos compelidos pela segunda vez a tratar convosco de estabelecer para os estudos filosóficos um método que não só corresponda perfeitamente ao bem da fé, mas que esteja também conforme com a própria dignidade das ciências humanas.
Se alguém fixa a consideração na acridez dos nossos tempos, e abraça com o pensamento a condição das coisas que pública e privadamente se executam, descobrirá sem dúvida que a causa fecunda dos males, tanto daqueles que hoje nos oprimem, como dos que tememos, consiste em que os perversos princípios sobre as coisas divinas e humanas, emanados há muito tempo das escolas dos filósofos, se introduziram em todas as ordens da sociedade, recebidos pelo sufrágio comum de muitos. Pois, sendo natural ao homem que no agir tenha a razão por guia, se em algo falta a inteligência, facilmente cai também no mesmo a vontade; e assim acontece que a perversidade das opiniões, cujo assento está na inteligência, influi nas ações humanas e as perverte. Pelo contrário, se está são o entendimento do homem e se apoia firmemente em sólidos e verdadeiros princípios, produzirá muitos benefícios de utilidade pública e privada. Certamente não atribuímos tal força e autoridade à filosofia humana, que a julguemos suficiente para repelir e arrancar todos os erros; pois assim como quando no princípio foi instituída a religião cristã, o mundo teve a dita de ser restituído à sua dignidade primitiva, mediante a luz admirável da fé, «não com as palavras persuasivas da sabedoria humana, mas na manifestação do espírito e da virtude» (1Cor 2,4), assim também no presente deve-se esperar principalmente do onipotente poder de Deus e do seu auxílio, que as inteligências dos homens, dissipadas as trevas do erro, voltem à verdade. Mas não se hão de desprezar nem postergar os auxílios naturais, que por benefício da divina sabedoria, que dispõe forte e suavemente todas as coisas, estão à disposição do gênero humano, entre cujos auxílios consta ser o principal o reto uso da filosofia. Não em vão imprimiu Deus na mente humana a luz da razão, e dista tanto de apagar ou diminuir a acrescentada luz da fé a virtude da inteligência, que antes a aperfeiçoa e, aumentadas as suas forças, a torna hábil para maiores empresas. Pede, pois, a ordem da própria Providência, que se peça apoio inclusive à ciência humana, ao chamar os povos à fé e à salvação: indústria plausível e sábia que os monumentos da antiguidade atestam ter sido praticada pelos preclaríssimos Padres da Igreja. Estes costumavam ocupar a razão em muitos e importantes ofícios, todos os que o grande Agostinho compendiou brevíssimamente, «atribuindo a esta ciência... aquilo com que a fé salubérrima... se engendra, se nutre, se defende, se consolida»[1].
Em primeiro lugar, a filosofia, se se emprega devidamente pelos sábios, pode de certo aplainar e facilitar de algum modo o caminho para a verdadeira fé e preparar convenientemente os ânimos dos seus alunos a receber a revelação; pelo qual, não sem injustiça, foi chamada pelos antigos, «ora prévia instituição à fé cristã»[2], «ora prelúdio e auxílio do cristianismo»[3], «ora pedagogo do Evangelho»[4].
E, na verdade, nosso benigníssimo Deus, no que toca às coisas divinas, não nos manifestou somente aquelas verdades para cujo conhecimento é insuficiente a inteligência humana, mas manifestou também algumas, não de todo inacessíveis à razão, para que, sobrevindo a autoridade de Deus, imediatamente e sem nenhuma mistura de erro, se fizessem a todos manifestas. Daqui que os próprios sábios, iluminados tão só pela razão natural, tenham conhecido, demonstrado e defendido com argumentos convenientes algumas verdades que, ou se propõem como objeto de fé divina, ou estão unidas por certos laços estreitíssimos com a doutrina da fé. «Porque as coisas invisíveis dele, depois da criação do mundo, se veem, sendo consideradas pelas obras criadas, assim o seu sempiterno poder como a sua divindade» (Rm 1, 20), e «as gentes que não têm a lei... mostram, contudo, a obra da lei escrita nos seus corações» (Rm 2, 14, 15). É, pois, sumamente oportuno que estas verdades, ainda que reconhecidas pelos próprios sábios pagãos, se convertam em proveito e utilidade da doutrina revelada, para que, com efeito, se manifeste que também a sabedoria humana e o próprio testemunho dos adversários favorecem a fé cristã; cujo modelo de agir consta que não foi recentemente introduzido, mas que é antigo, e foi usado muitas vezes pelos Santos Padres da Igreja. Mais ainda: estas veneráveis testemunhas e guardiães das tradições religiosas reconhecem certa norma disto, e quase uma figura no fato dos hebreus que, ao tempo de sair do Egito, receberam o mandato de levar consigo os vasos de ouro e prata dos egípcios, para que, mudado repentinamente o seu uso, servisse à religião do Deus verdadeiro aquela baixela, que antes havia servido para ritos ignominiosos e para a superstição. Gregório de Neocesareia[5] louva Orígenes, porque converteu com admirável destreza muitos conhecimentos tomados engenhosamente das máximas dos infiéis, como dardos quase arrebatados aos inimigos, em defesa da filosofia cristã e em prejuízo da superstição. E o mesmo modo de disputar louvam e aprovam em Basílio Magno, quer Gregório Nazianzeno[6], quer Gregório de Nissa[7], e Jerônimo recomenda-o grandemente em Quadrado, discípulo dos Apóstolos, em Arístides, em Justino, em Ireneu e em muitos outros[8]. E Agostinho diz: «Não vemos com quanto ouro e prata, e com que vestes saiu carregado do Egito Cipriano, doutor suavíssimo e mártir beatíssimo? Com quanto Lactâncio? Com quanto Vitorino, Optato, Hilário? E para não falar dos vivos, com quantos inumeráveis gregos?»[9]. Verdadeiramente, se a razão natural deu tão opima semente de doutrina antes de ser fecundada com a virtude de Cristo, muito mais abundante a produzirá certamente depois que a graça do Salvador restaurou e enriqueceu as forças naturais da mente humana. E quem não vê que com este modo de filosofar se abre um caminho plano e praticável para a fé?
Não se circunscreve, não obstante, dentro destes limites a utilidade que dimana daquela maneira de filosofar. E realmente, as páginas da sabedoria divina repreendem gravemente a loucura daqueles homens «que dos bens que se veem não souberam conhecer aquele que é, nem, considerando as obras, reconheceram quem fosse o seu artífice» (Sab 13,1). Assim, em primeiro lugar, o grande e excelentíssimo fruto que se colhe da razão humana é o demonstrar que há um Deus: «pois pela grandeza da formosura da criatura poder-se-á claramente vir ao conhecimento do Criador delas» (Sab 13,5). Depois demonstra (a razão) que Deus sobressai singularmente pela reunião de todas as perfeições, primeiro pela infinita sabedoria, à qual jamais pode ocultar-se coisa alguma, e pela suma justiça, à qual nunca pode vencer afeto algum perverso; pelo mesmo que Deus não só é veraz, mas também a própria verdade, incapaz de enganar e de ser enganado. Do qual se segue clarissimamente que a razão humana granjeia à palavra de Deus pleníssima fé e autoridade. Igualmente a razão declara que a doutrina evangélica brilhou ainda desde a sua origem por certos prodígios, como argumentos certos da verdade, e que, portanto, todos os que creem no Evangelho não creem temerariamente, como se seguissem doutas fábulas (cf. 2Pd 1, 16), mas com um obséquio de todo racional, sujeitam a sua inteligência e o seu juízo à autoridade divina. Entenda-se que não é de menor preço que a razão ponha de manifesto que a igreja instituída por Cristo, como estabeleceu o Concílio Vaticano, «pela sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todas as religiões, pela unidade católica e invencível estabilidade, é um grande e perene motivo de credibilidade e testemunho irrefragável da sua divina missão»[10].
Postos assim estes solidíssimos fundamentos, ainda se requer um uso perpétuo e múltiplo da filosofia para que a sagrada teologia tome e vista a natureza, o hábito e a índole de verdadeira ciência. Nesta, a mais nobre de todas as ciências, é grandemente necessário que as muitas e diversas partes das doutrinas celestiais se reúnam como num corpo, para que cada uma delas, convenientemente disposta no seu lugar, e deduzida dos seus próprios princípios, esteja relacionada com as demais por uma conexão oportuna; por último, que todas e cada uma delas se confirmem nos seus próprios e invencíveis argumentos. Nem se há de passar em silêncio ou estimar em pouco aquele mais diligente e abundante conhecimento das coisas, que dos próprios mistérios da fé, que Agostinho e outros Santos Padres louvaram e procuraram conseguir, e que o mesmo Concílio Vaticano[11] julgou frutuosíssimo; e certamente conseguirão mais perfeita e facilmente este conhecimento e esta inteligência aqueles que, com a integridade da vida e o amor à fé, reúnam um engenho adornado com as ciências filosóficas, especialmente ensinando o Sínodo Vaticano, que esta mesma inteligência dos sagrados dogmas convém tomá-la «quer da analogia das coisas que naturalmente se conhecem, quer do enlace dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem»[12].
Por último, também pertence às ciências filosóficas defender religiosamente as verdades ensinadas por revelação e resistir aos que se atrevam a impugná-las. Sob este aspecto é grande louvor da filosofia o ser considerada baluarte da fé e como firme defesa da religião. Como atesta Clemente de Alexandria, «é por si mesma perfeita a doutrina do Salvador e de ninguém necessita, sendo virtude e sabedoria de Deus. A filosofia grega, que se lhe une, não torna mais poderosa a verdade; mas, fazendo débeis os argumentos dos sofistas contra aquela, e repelindo as enganosas ciladas contra a mesma, foi chamada oportunamente cerca e sebe da vinha»[13]. Certamente, assim como os inimigos do nome cristão, para pelejar contra a religião, tomam muitas vezes da razão filosófica os seus instrumentos bélicos; assim os defensores das ciências divinas tomam do arsenal da filosofia muitas coisas com que poder defender os dogmas revelados. Nem se há de julgar que obtenha pequeno triunfo a fé cristã, porque as armas dos adversários, preparadas pela arte da razão humana para causar dano, sejam repelidas poderosa e prontamente pela mesma razão humana.
Esta espécie de combate religioso foi usado pelo próprio Apóstolo das gentes, como o recorda São Jerônimo escrevendo a Magno: «Paulo, capitão do exército cristão, é orador invicto, defendendo a causa de Cristo, faz servir com arte uma inscrição fortuita para argumento da fé; havia aprendido do verdadeiro Davi a arrancar a espada das mãos dos inimigos, e a cortar a cabeça do soberbo Golias com a sua própria espada»[14]. E a própria Igreja não somente aconselha, mas também ordena que os doutores católicos peçam este auxílio à filosofia. Pois o V Concílio de Latrão, depois de estabelecer que «toda asserção contrária à verdade da fé revelada é completamente falsa, porque a verdade jamais se opôs à verdade»[15], manda aos Doutores de filosofia que se ocupem diligentemente em resolver os enganosos argumentos, pois, como testifica Agostinho, «se se dá uma razão contra a autoridade das Divinas Escrituras, por mais aguda que seja, enganará com a semelhança da verdade, mas não pode ser verdadeira»[16].
Mas para que a filosofia seja capaz de produzir os preciosos frutos que recebemos, é de todo ponto necessário que jamais se afaste daqueles caminhos que seguiu a veneranda antiguidade dos Padres e que o Sínodo Vaticano aprovou com o solene sufrágio da autoridade. Na verdade, está claramente averiguado que se hão de aceitar muitas verdades da ordem sobrenatural que superam em muito as forças de todas as inteligências, a razão humana, conhecedora da própria debilidade, não se atreve a aceitar coisas superiores a ela, nem negar as mesmas verdades, nem medi-las com a sua própria capacidade, nem interpretá-las a seu bel-prazer; antes, deve recebê-las com plena e humilde fé e ter em suma honra o ser-lhe permitido, por benefício de Deus, servir como escrava e servidora às doutrinas celestiais e de algum modo chegar a conhecê-las. Em todas estas doutrinas principais, que a inteligência humana não pode receber naturalmente, é muito justo que a filosofia use do seu método, dos seus princípios e argumentos; mas não de tal modo que pareça querer subtrair-se à autoridade divina. Antes, constando que as coisas conhecidas por revelação gozam de uma verdade indiscutível, e que as que se opõem à fé pugnam também com a reta razão, deve ter presente o filósofo católico que violará ao mesmo tempo os direitos da fé e da razão, abraçando algum princípio que conhece que repugna à doutrina revelada.
Sabemos muito bem que não faltam quienes, exaltando mais do que o justo as faculdades da natureza humana, defendam que a inteligência do homem, uma vez submetida à autoridade divina, cai da sua dignidade natural, está ligada e como que impedida de poder chegar ao cume da verdade e da excelência. Mas estas doutrinas estão cheias de erro e de falácia, e finalmente tendem a que os homens, com suma insensatez, e não sem o crime de ingratidão, repudiem as mais sublimes verdades e espontaneamente rejeitem o benefício da fé, da qual, inclusive para a sociedade civil, brotaram as fontes de todos os bens. Pois, encontrando-se a mente humana encerrada em certos e muito estreitos limites, está sujeita a muitos erros e a ignorar muitas coisas. Pelo contrário, a fé cristã, apoiando-se na autoridade de Deus, é mestra infalível da verdade, seguindo a qual ninguém cai nos laços do erro, nem é agitado pelas ondas de incertas opiniões. Por isso, os que unem o estudo da filosofia com a obediência à fé cristã, raciocinam perfeitamente, pressupondo que o esplendor das verdades divinas, recebido pela alma, auxilia a inteligência, à qual não tira nada da sua dignidade, mas antes lhe acrescenta muitíssima nobreza, penetração e energia. E quando dirigem a perspicácia do engenho a repelir as sentenças que repugnam à fé e a aprovar as que concordam com esta, exercitam digna e utilissimamente a razão: pois no primeiro caso descobrem as causas do erro e conhecem o vício dos argumentos, e no último estão na posse das razões com que se demonstra solidamente e se persuade a todo homem prudente da verdade de ditas sentenças. Aquele que negue que com esta indústria e exercício se aumentam as riquezas da mente e se desenvolvem as suas faculdades, é necessário que absurdamente pretenda que não conduz ao aperfeiçoamento do engenho a distinção do verdadeiro e do falso. Com razão o Concílio Vaticano recorda com estas palavras os benefícios que a fé presta à razão: «A fé livra e defende a razão dos erros e a instrui em muitos conhecimentos»[17]. E, por conseguinte, o homem, se o entendesse, não deveria culpar a fé de inimiga da razão, antes deveria dar dignas graças a Deus, e alegrar-se veementemente de que, entre as muitas causas da ignorância e no meio das ondas dos erros, lhe tenha iluminado aquela fé santíssima, que como estrela amiga indica o porto da verdade, excluindo todo temor de errar.
Porque, Veneráveis Irmãos, se dirigirdes um olhar à história da filosofia, compreendereis que todas as coisas que pouco antes dissemos se comprovam com os fatos. E certamente, dos antigos filósofos, que careceram do benefício da fé, mesmo os que são considerados mais sábios, erraram pessimamente em muitas coisas, falsas e indecorosas, quantas incertas e duvidosas, entre algumas verdadeiras, ensinaram sobre a verdadeira natureza da divindade, sobre a origem primitiva das coisas, sobre o governo do mundo, sobre o conhecimento divino das coisas futuras, sobre a causa e princípio dos males, sobre o último fim do homem e a eterna bem-aventurança, sobre as virtudes e os vícios e sobre outras doutrinas cujo verdadeiro e certo conhecimento é a coisa mais necessária ao gênero humano.
Pelo contrário, os primeiros Padres e Doutores da Igreja, que haviam entendido muito bem que por decreto da divina vontade o restaurador da ciência humana era também Jesus Cristo, que é a virtude de Deus e a sua sabedoria (1Cor 1,24), e «no qual estão escondidos os tesouros da sabedoria» (Col 2,3), trataram de investigar os livros dos antigos sábios e de comparar as suas sentenças com as doutrinas reveladas, e com prudente eleição abraçaram as que neles viram perfeitamente ditas e sabiamente pensadas, emendando ou rejeitando as demais. Pois assim como Deus, infinitamente providente, suscitou para defesa da Igreja mártires fortíssimos, pródigos das suas grandes almas, contra a crueldade dos tiranos, assim aos falsos filósofos ou hereges opôs varões grandíssimos em sabedoria, que defendessem, ainda com o apoio da razão, o depósito das verdades reveladas. E assim, desde os primeiros dias da Igreja, a doutrina católica teve adversários muito hostis que, zombando dos dogmas e instituições dos cristãos, sustentavam a pluralidade dos deuses, que a matéria do mundo careceu de princípio e de causa, e que o curso das coisas se conservava mediante uma força cega e uma necessidade fatal e não era dirigido pelo conselho da Divina Providência. Ora bem; com estes mestres de disparatada doutrina disputaram oportunamente aqueles sábios que chamamos Apologistas, os quais, precedidos da fé, usaram também os argumentos da sabedoria humana com os quais estabeleceram que deve ser adorado um só Deus, excelentíssimo em todo gênero de perfeições, que todas as coisas que foram tiradas do nada pela sua onipotente virtude, subsistem pela sua sabedoria e cada uma se move e dirige aos seus próprios fins. Ocupa o primeiro posto entre estes São Justino mártir, quem, depois de ter percorrido as mais célebres academias dos gregos para adquirir experiência, e de ter visto, como ele mesmo confessa abertamente, que a verdade somente pode ser extraída das doutrinas reveladas, abraçando-as com todo o ardor do seu espírito, as purificou de calúnias perante os Imperadores romanos, e em não poucas sentenças dos filósofos gregos concordou com estes. O mesmo fizeram excelentemente por este tempo Quadrado e Arístides, Hérmias e Atenágoras. Nem menos glória conseguiu pelo mesmo motivo Ireneu, mártir invicto e Bispo da igreja de Lião, quem, refutando valorosamente as perversas opiniões dos orientais disseminadas graças aos gnósticos por todo o império romano, «explicou, segundo São Jerônimo, os princípios de cada uma das heresias e de que fontes filosóficas dimanaram»[18]. Todos conhecem as disputas de Clemente de Alexandria, que o mesmo Jerônimo, para honrá-las, recorda assim: «Que há nelas de indouto? E mais, que não há da filosofia média?»[19]. Ele mesmo tratou com incrível variedade de muitas coisas utilíssimas para fundar a filosofia da história, exercitar oportunamente a dialética, estabelecer a concórdia entre a razão e a fé. Seguindo a este, Orígenes, insigne no magistério da igreja alexandrina, eruditíssimo nas doutrinas dos gregos e dos orientais, deu à luz muitos e eruditos volumes para explicar as sagradas letras e para ilustrar os dogmas sagrados, cujas obras, embora como hoje existem não careçam absolutamente de erros, contêm, não obstante, grande quantidade de sentenças, com as quais se aumentam as verdades naturais em número e em firmeza. Tertuliano combate contra os hereges com a autoridade das sagradas letras, e com os filósofos, mudando o gênero de armas, filosoficamente, e convence a estes tão sutil e eruditamente que abertamente e com confiança lhes diz: «Nem na ciência nem na arte somos igualados, como pensais vós»[20].
Arnóbio, nos livros publicados contra os hereges, e Lactâncio, especialmente nas suas instituições divinas, esforçam-se valorosamente por persuadir os homens com igual eloquência e galhardia da verdade dos preceitos da sabedoria cristã, não destruindo a filosofia, como costumam os acadêmicos[21], mas convencendo aqueles, em parte com as suas próprias armas, e em parte com as tomadas da luta dos filósofos entre si[22].
As coisas que sobre a alma humana, os atributos divinos e outras questões de suma importância deixaram escritas o grande Atanásio e Crisóstomo, o Príncipe dos oradores, de tal maneira, a juízo de todos, sobressaem, que parece não se poder acrescentar quase nada à sua engenhosidade e riqueza. E para não sermos pesados em enumerar cada um dos apologistas, acrescentamos o catálogo dos excelsos varões de que se fez menção, a Basílio Magno e aos dois Gregórios, os quais, tendo saído de Atenas, empório das humanas letras, equipados abundantemente com todo o armamento da filosofia, converteram aquelas mesmas ciências, que com ardoroso estudo haviam adquirido, em refutar os hereges e instruir os cristãos. Mas a todos arrebatou a glória Agostinho, quem de engenho poderoso, e imbuído perfeitamente nas ciências sagradas e profanas, lutou acerrimamente contra todos os erros dos seus tempos com fé suma e não menor doutrina. Que ponto da filosofia não tratou e, mais ainda, qual não investigou diligentissimamente, ora quando propunha aos fiéis os altíssimos mistérios da fé e os defendia contra os furiosos ímpetos dos adversários, ora quando, reduzidas a nada as fábulas dos maniqueus ou acadêmicos, colocava sobre terra firme os fundamentos da ciência humana e a sua estabilidade, ou indagava a razão da origem, e as causas dos males que oprimem o gênero humano? Quanto não discutiu sutilissimamente acerca dos anjos, da alma, da mente humana, da vontade e do livre arbítrio, da religião e da vida bem-aventurada, e até da própria natureza dos corpos mutáveis? Depois deste tempo, no Oriente João Damasceno, seguindo as pegadas de Basílio e Gregório de Nazianzo, e no Ocidente Boécio e Anselmo, professando as doutrinas de Agostinho, enriqueceram muitíssimo o patrimônio da filosofia.
Em seguida, os Doutores da Idade Média, chamados escolásticos, acometeram uma obra magna, a saber: reunir diligentemente as fecundas e abundantes messes de doutrina, refundidas nas volumosas obras dos Santos Padres, e reunidas, colocá-las num só lugar para uso e comodidade dos vindouros. Qual seja a origem, a índole e a excelência da ciência escolástica, é útil aqui, Veneráveis Irmãos, mostrá-lo mais difusamente com as palavras de sapientíssimo varão, nosso predecessor, Sisto V: «Por dom divino d'Aquele, único que dá o espírito da ciência, da sabedoria e do entendimento, e que enriquece com novos benefícios a sua Igreja ao longo dos séculos, segundo o reclama a necessidade, e a provê de novos auxílios, foi encontrada por nossos santíssimos maiores a teologia escolástica, a qual cultivaram e adornaram principalmente dois gloriosos Doutores, o angélico Santo Tomás e o seráfico São Boaventura, claríssimos Professores desta faculdade... com engenho excelente, assíduo estudo, grandes trabalhos e vigílias, e a legaram à posteridade, disposta otimamente e explicada com brilhantismo de muitas maneiras. E, na verdade, o conhecimento e exercício desta salutar ciência, que flui das abundantíssimas fontes das diversas letras, Sumos Pontífices, Santos Padres e Concílios, pôde sempre proporcionar grande auxílio à Igreja, quer para entender e interpretar verdadeira e sanamente as mesmas Escrituras, quer para ler e explicar mais segura e utilmente os Padres, quer para descobrir e rebater os vários erros e heresias; mas nestes últimos dias, em que chegaram já os tempos perigosos descritos pelo Apóstolo, e homens blasfemos, soberbos, sedutores, crescem em maldade, errando e induzindo outros ao erro, é na verdade sumamente necessária para confirmar os dogmas da fé católica e para refutar as heresias.»[23]
Palavras são estas que, embora pareçam abraçar somente a teologia escolástica, está claro que devem entender-se também da filosofia e dos seus louvores. Pois as preclaras dotes que tornam tão temível aos inimigos da verdade a teologia escolástica, como diz o mesmo Pontífice, «aquela oportuna e encadeada coerência de causas e de coisas entre si, aquela ordem e aquela disposição como a formação dos soldados em batalha, aquelas claras definições e distinções, aquela firmeza dos argumentos e das agudíssimas disputas em que se distinguem a luz das trevas, o verdadeiro do falso, as mentiras dos hereges envoltas em muitas aparências e falácias, que como se se lhes tirasse o vestido aparecem manifestas e desnudas»[24]; estas excelsas e admiráveis dotes, dizemos, derivam-se unicamente do reto uso daquela filosofia que os mestres escolásticos, de propósito e com sábio conselho, costumaram usar frequentemente até nas disputas filosóficas. Além disso, sendo próprio e singular dos teólogos escolásticos o terem unido a ciência humana e a divina entre si com estreitíssimo laço, a teologia, na qual sobressaíram, não teria obtido tantas honras e louvores da parte dos homens se tivessem empregado uma filosofia manca e imperfeita ou ligeira.
Ora bem: entre os Doutores escolásticos brilha grandemente Santo Tomás de Aquino, Príncipe e Mestre de todos, o qual, como adverte Caetano, «por ter venerado em grande maneira os antigos Doutores sagrados, obteve de algum modo a inteligência de todos»[25]. As suas doutrinas, como membros dispersos de um corpo, reuniu e congregou Tomás num todo, dispôs com ordem admirável, e de tal modo as aumentou com novos princípios, que com razão e justiça é tido por singular apoio da Igreja católica; de dócil e penetrante engenho, de memória fácil e tenaz, de vida integérrima, amador unicamente da verdade, riquíssimo na ciência divina e humana, comparado ao sol, animou o mundo com o calor das suas virtudes, e o iluminou com esplendor. Não há parte da filosofia que não tenha tratado aguda e ao mesmo tempo solidamente: tratou das leis do raciocínio, de Deus e das substâncias incorpóreas, do homem e de outras coisas sensíveis, dos atos humanos e dos seus princípios, de tal modo que não se echa de menos nele, nem a abundância de questões, nem a oportuna disposição das partes, nem a firmeza dos princípios ou a robustez dos argumentos, nem a clareza e propriedade da linguagem, nem certa facilidade de explicar as coisas abstrusas.
Acrescenta-se a isto que o Doutor Angélico indagou as conclusões filosóficas nas razões e princípios das coisas, os quais se estendem muito latamente, e encerram como que no seu seio as sementes de quase infinitas verdades, que haviam de se abrir com fruto abundantíssimo pelos mestres posteriores. Tendo empregado este método de filosofia, conseguiu ter vencido ele só os erros dos tempos passados, e ter fornecido armas invencíveis, para refutar os erros que perpetuamente se hão de renovar nos séculos futuros. Além disso, distinguindo muito bem a razão da fé, como é justo, e associando-as, contudo, amigavelmente, conservou os direitos de uma e outra, proveu à sua dignidade de tal sorte, que a razão, elevada à maior altura nas asas de Tomás, já quase não pode levantar-se a regiões mais sublimes, nem a fé pode quase esperar da razão mais e mais poderosos auxílios do que os que até aqui conseguiu por Tomás.
Por estas razões, homens doutíssimos nas idades passadas, e digníssimos de louvor pelo seu saber teológico e filosófico, buscando com indizível afã os volumes imortais de Tomás, consagraram-se à sua angélica sabedoria, não tanto para aperfeiçoá-lo nela, quanto para serem totalmente por ela sustentados. É um fato constante que quase todos os fundadores e legisladores das ordens religiosas mandaram aos seus companheiros estudar as doutrinas de Santo Tomás, e aderir a elas religiosamente, dispondo que a ninguém fosse lícito impunemente separar-se, nem mesmo no mínimo, das pegadas de tão grande Mestre. E deixando de lado a família dominicana, que com direito indisputável se gloria deste seu sumo Doutor, estão obrigados a esta lei os Beneditinos, os Carmelitas, os Agostinianos, os Jesuítas e muitas outras ordens sagradas, como os estatutos de cada uma nos manifestam.
E neste lugar, com indizível prazer recorda a alma aquelas celebérrimas Academias e escolas que em outro tempo floresceram na Europa, a saber: a parisiense, a salamanquense, a complutense, a duacense, a tolosana, a lovaniense, a patavina, a bolonhesa, a napolitana, a coimbrã e muitas outras. Ninguém ignora que a fama destas cresceu de certo modo com o tempo, e que as sentenças que se lhes pediam quando se agitavam gravíssimas questões, tinham muita autoridade entre os sábios. Pois bem, é coisa fora de dúvida que naqueles grandes empórios do saber humano, como no seu reino, dominou como príncipe Tomás, e que os ânimos de todos, tanto mestres como discípulos, descansaram com admirável concórdia no magistério e autoridade do Doutor Angélico.
Mas o que é mais, os Romanos Pontífices, nossos predecessores, honraram a sabedoria de Tomás de Aquino com singulares elogios e testemunhos amplíssimos. Pois Clemente VI[26], Nicolau V[27], Bento XIII[28] e outros, atestam que a Igreja universal é ilustrada com a sua admirável doutrina; São Pio V[29] confessa que com a mesma doutrina as heresias, confundidas e vencidas, se dissipam, e o universo mundo é libertado cotidianamente; outros, com Clemente XII[30], afirmam que das suas doutrinas dimanaram à Igreja católica abundantíssimos bens, e que ele mesmo deve ser venerado com aquela honra que se dá aos Sumos Doutores da Igreja Gregório, Ambrósio, Agostinho e Jerônimo; outros, finalmente, não duvidaram em propor nas Academias e grandes liceus a Santo Tomás como exemplar e mestre, a quem se devia seguir com pé firme. A respeito do que parecem muito dignas de se recordar as palavras do B. Urbano V: «Queremos, e pelas presentes vos mandamos, que adoteis a doutrina do bem-aventurado Tomás, como verídica e católica, e procureis ampliá-la com todas as vossas forças»[31]. Renovaram o exemplo de Urbano na Universidade de estudos de Lovaina Inocêncio XII[32], e Bento XIV[33], no Colégio Dionisiano dos Granatenses. Acrescente-se a estes juízos dos Sumos Pontífices sobre Tomás de Aquino, o testemunho de Inocêncio VI, como complemento: «A doutrina deste tem sobre as demais, excetuada a canônica, propriedade nas palavras, ordem nas matérias, verdade nas sentenças, de tal sorte que nunca aqueles que a seguirem se verão apartar do caminho da verdade, e sempre será suspeito de erro aquele que a impugnar»[34].
Também os Concílios Ecumênicos, nos quais brilha a flor da sabedoria escolhida em todo o orbe, procuraram perpetuamente tributar honra singular a Tomás de Aquino. Nos Concílios de Lião, de Viena, de Florença e Vaticano, pode-se dizer que Tomás interveio nas deliberações e decretos dos Padres, e quase foi o presidente, pelejando com força inelutável e faustíssimo êxito contra os erros dos gregos, dos hereges e dos racionalistas. Mas a maior glória própria de Tomás, louvor nunca partilhado por nenhum dos Doutores católicos, consiste em que os Padres tridentinos, para estabelecer a ordem no mesmo Concílio, quiseram que juntamente com os livros da Escritura e os decretos dos Sumos Pontífices se visse sobre o altar a Suma de Tomás de Aquino, à qual se pedissem conselhos, razões e oráculos.
Ultimamente, também estava reservada ao varão incomparável obter a palma de conseguir obséquios, louvores, admiração dos próprios adversários do nome católico. Pois está averiguado que não faltaram chefes das facções heréticas que confessassem publicamente que, uma vez retirada do meio a doutrina de Tomás de Aquino, «podiam facilmente entrar em combate com todos os Doutores católicos, e vencê-los e derrotar a Igreja»[35]. Vã esperança, certamente, mas testemunho não vão.
Por isto, veneráveis irmãos, sempre que consideramos a bondade, a força e as excelentes utilidades da sua ciência filosófica, que tanto amaram os nossos maiores, julgamos que se agiu temerariamente não conservando sempre e em toda parte a honra que lhe é devida; constando especialmente que o uso contínuo, o juízo de grandes homens, e o que é mais, o sufrágio da Igreja, favoreciam a filosofia escolástica. E em lugar da antiga doutrina apresentou-se em várias partes certa nova espécie de filosofia, da qual não se colheram os frutos desejados e salutares que a Igreja e a própria sociedade civil haviam anelado. Procurando-o os inovadores do século XVI, agradou o filosofar sem respeito algum à fé, e foi pedida alternativamente a potestade de excogitar segundo o gosto e o gênio de quaisquer coisas. Por cujo motivo foi já fácil que se multiplicassem mais do que o justo os gêneros de filosofia e nascessem sentenças diversas e contrárias entre si, mesmo acerca das coisas principais nos conhecimentos humanos. Da multidão das sentenças passou-se frequentissimamente às vacilações e às dúvidas, e desde a luta, quão facilmente caem em erro os entendimentos dos homens, não há ninguém que o ignore. Deixando-se arrastar os homens pelo exemplo, o amor à novidade pareceu também invadir em algumas partes os ânimos dos filósofos católicos, os quais, rejeitando o patrimônio da antiga sabedoria, quiseram, mas com prudência certamente pouco sábia e não sem detrimento das ciências, fazer coisas novas, em vez de aumentar e aperfeiçoar com as novas as antigas. Pois esta múltipla regra de doutrina, fundando-se na autoridade e arbítrio de cada um dos mestres, tem fundamento variável, e por esta razão não torna a filosofia firme, estável nem robusta como a antiga, mas flutuante e movediça, à qual, se porventura sucede que se a encontre alguma vez insuficiente para sofrer o ímpeto dos inimigos, saiba-se que a causa e a culpa disto reside nela mesma. E ao dizer isto não condenamos na verdade aqueles homens doutos e engenhosos que põem a sua indústria e erudição e as riquezas das novas descobertas ao serviço da filosofia; pois sabemos muito bem que com isto recebe incremento a ciência. Mas há de se evitar diligentissimamente não fazer consistir naquela indústria e erudição todo ou o principal exercício da filosofia. Do mesmo modo se há de julgar da Sagrada Teologia, a qual nos agrada que seja ajudada e ilustrada com os múltiplos auxílios da erudição; mas é de todo ponto necessário que seja tratada segundo o grave costume dos escolásticos, para que unidas nela as forças da revelação e da razão continue sendo «defesa invencível da fé»[36].
Com excelente conselho, não poucos cultivadores das ciências filosóficas tentaram nestes últimos tempos restaurar ultimamente a filosofia, renovar a preclara doutrina de Tomás de Aquino e devolver-lhe o seu antigo esplendor.
Soubemos, veneráveis irmãos, que muitos da vossa ordem, com igual desejo, entraram galhardamente por esta via com grande regozijo do nosso ânimo. Aos quais louvamos ardentemente e exortamos a permanecer no plano começado; e a todos os demais de entre vós em particular vos fazemos saber, que nada nos é mais grato nem mais apetecível do que todos vós forneçais copiosa e abundantemente à juventude estudiosa os rios puríssimos de sabedoria que emanam em contínua e riquíssima veia do Doutor Angélico.
Os motivos que nos movem a querer isto com grande ardor são muitos. Primeiramente, sendo costume nos nossos dias tempestuosos combater a fé com as maquinações e as astúcias de uma falsa sabedoria, todos os jovens, e em especial os que se educam para esperança da Igreja, devem ser alimentados por isto mesmo com o poderoso e robusto pasto da doutrina, para que, potentes com as suas forças e equipados com suficiente armamento, se acostumem a tempo a defender forte e sabiamente a causa da religião, dispostos sempre, segundo os conselhos evangélicos, «a satisfazer a todo o que pergunte a razão daquela esperança que temos» (1Pd 3,15), e «a exortar com a sã doutrina e a arguir os que contradizem» (Tt 1,9). Além disso, muitos dos homens que, afastando o seu espírito da fé, aborrecem os ensinamentos católicos, professam que para ela é só a razão mestra e guia. E para sarar a estes e devolvê-los à fé católica, além do auxílio sobrenatural de Deus, julgamos que nada é mais oportuno do que a sólida doutrina dos Padres e dos escolásticos, os quais demonstram com tanta evidência e energia os firmíssimos fundamentos da fé, a sua divina origem, a sua infalível verdade, os argumentos com que se provam, os benefícios que prestou ao gênero humano e a sua perfeita harmonia com a razão, quanto basta e ainda sobra para dobrar os entendimentos, mesmo os mais opostos e contrários.
A própria sociedade civil e a doméstica, que se encontra no grave perigo que todos sabemos, por causa da peste dominante das perversas opiniões, viveria certamente mais tranquila e mais segura, se nas Academias e nas escolas se ensinasse doutrina mais sã e mais conforme com o magistério do ensinamento da Igreja, tal como a contêm os volumes de Tomás de Aquino. Tudo o que é relativo à genuína noção da liberdade, que hoje degenera em licença, à origem divina de toda autoridade, às leis e à sua força, ao paternal e equitativo império dos Príncipes supremos, à obediência às potestades superiores, à mútua caridade entre todos; tudo o que destas coisas e outras do mesmo teor é ensinado por Tomás, tem uma robustez grandíssima e invencível para deitar por terra os princípios do novo direito, que, como todos sabem, são perigosos para a tranquila ordem das coisas e para o bem-estar público. Finalmente, todas as ciências humanas devem esperar aumento e prometer-se grande auxílio desta restauração das ciências filosóficas por Nós proposta. Porque todas as boas artes costumaram tomar da filosofia, como da ciência reguladora, o são ensinamento e o reto modo, e daquela, como de fonte comum de vida, tirar energia.
Uma constante experiência nos demonstra que, quando floresceram maiormente as artes liberais, permaneceu incólume a honra e o sábio juízo da filosofia, e que foram descuidadas e quase esquecidas, quando a filosofia se inclinou aos erros ou se enredou em inépcias. Pelo qual, ainda as ciências físicas que são hoje tão apreciadas e excitam singular admiração com tantos inventos, não receberão prejuízo algum com a restauração da antiga filosofia, mas, pelo contrário, receberão grande auxílio. Pois para o seu frutuoso exercício e incremento, não somente se hão de considerar os fatos e se há de contemplar a natureza, mas dos fatos há de se subir mais alto e há de se trabalhar engenhosamente para conhecer a essência das coisas corpóreas, para investigar as leis a que obedecem, e os princípios de onde procedem a sua ordem e unidade na variedade, e a mútua afinidade na diversidade. A cujas investigações é maravilhosa quanta força, luz e auxílio dá a filosofia católica, se se ensina com um sábio método.
Acerca do que se deve advertir também que é grave injúria atribuir à filosofia o ser contrária ao incremento e desenvolvimento das ciências naturais. Pois quando os escolásticos, seguindo o sentir dos Santos Padres, ensinaram com frequência na antropologia, que a inteligência humana somente pelas coisas sensíveis se elevava a conhecer as coisas que careciam de corpo e de matéria, naturalmente que nada era mais útil ao filósofo do que investigar diligentemente os arcanos da natureza e ocupar-se no estudo das coisas físicas muito e por muito tempo. O qual confirmaram com a sua conduta, pois Santo Tomás, o bem-aventurado Alberto Magno, e outros príncipes dos escolásticos não se consagraram à contemplação da filosofia, de tal sorte que não pusessem grande empenho em conhecer as coisas naturais, e muitos ditos e sentenças suas neste gênero de coisas os aprovam os mestres modernos, e confessam estar conformes com a verdade. Além disso, nos nossos próprios dias, muitos e muito insignes Doutores das ciências físicas atestam clara e manifestamente que entre as certas e aprovadas conclusões da física mais recente e os princípios filosóficos da Escola, não existe verdadeira pugna.
Nós, pois, enquanto manifestamos que receberemos com boa vontade e agradecimento tudo o que se tenha dito sabiamente, tudo o útil que se tenha inventado e excogitado por qualquer um, a vós todos, veneráveis irmãos, com grave empenho exortamos a que, para defesa e glória da fé católica, bem da sociedade e incremento de todas as ciências, renoveis e propagueis latissimamente a áurea sabedoria de Santo Tomás. Dizemos a sabedoria de Santo Tomás, pois se há alguma coisa tratada pelos escolásticos com demasiada sutileza ou ensinada inconsideradamente; se há algo menos concorde com as doutrinas manifestas das últimas idades, ou finalmente, não louvável de qualquer modo, de nenhuma maneira está no nosso ânimo propô-lo para ser imitado na nossa idade. Pelo demais, procurem os mestres escolhidos inteligentemente por vós, insinuar nos ânimos dos seus discípulos a doutrina de Tomás de Aquino, e ponham em evidência a sua solidez e excelência sobre todas as demais. As Academias fundadas por vós, ou as que haveis de fundar, ilustrem e defendam a mesma doutrina e a usem para a refutação dos erros que circulam. Mas para que não se beba a suposta doutrina pela verdadeira, nem a corrompida pela sincera, cuidai de que a sabedoria de Tomás se tome das mesmas fontes ou ao menos daqueles rios que, segundo certa e conhecida opinião de homens sábios, saíram da mesma fonte e ainda correm íntegros e puros; mas dos que se dizem ter procedido destes e na realidade cresceram com águas alheias e não saudáveis, procurai afastar os ânimos dos jovens.
Muito bem conhecemos que os nossos propósitos serão de nenhum valor se não favorecer as comuns empresas, Veneráveis Irmãos, Aquele que nas divinas letras é chamado «Deus das ciências» (1Sm 2, 3) nas quais também aprendemos «que toda dádiva boa e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes» (Tg 1, 17). E além disso; «se algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá abundantemente e não censura, e ser-lhe-á dada» (Tg 1, 5).
Também nisto sigamos o exemplo do Doutor Angélico, que nunca se pôs a ler e a escrever sem se ter tornado propício a Deus com as suas preces, e o qual confessou candidamente que tudo o que sabia não o havia adquirido tanto com o seu estudo e trabalho, mas que o havia recebido divinamente; e pelo mesmo roguemos todos juntamente a Deus com humilde e concorde súplica que derrame sobre todos os filhos da Igreja o espírito de ciência e de entendimento e lhes abra o sentido para entender a sabedoria. E para perceber mais abundantes frutos da divina bondade, interponde também diante de Deus o patrocínio eficacíssimo da Virgem Maria, que é chamada sede da sabedoria, e ao mesmo tempo tomai por intercessores o bem-aventurado José, puríssimo esposo da Virgem Maria, e os grandes Apóstolos Pedro e Paulo, que renovaram com a verdade o universo mundo corrompido pelo imundo lodo dos erros e o encheram com a luz da celestial sabedoria.
Por último, sustentados com a esperança do divino auxílio e confiados na vossa diligência pastoral, vos damos amantissimamente no Senhor a todos vós, Veneráveis Irmãos, a todo o Clero e povo, a cada um de vós encomendado, a apostólica bênção, augúrio de dons celestiais e testemunho da nossa singular benevolência.
Dado em Roma, em São Pedro, a 4 de Agosto de 1879. No ano segundo do nosso Pontificado.
LEÃO PP XIII
Notas
[1] De Trin. lib. XIV, c. 1.
[2] Clem. Alex. Strom. lib. 1, c. 16; l. VII, c. 3.
[3] Orig. ad Greg. Thaum.
[4] Clem. Alex., Strom. I, c. 5.
[5] Orat. paneg. ad Origen.
[6] Vit. Moys.
[7] Carm. 1, Iamb. 3.
[8] Epist. ad Magn.
[9] De doctr. christ. I. 11, c. 40.
[10] Const. dogm. de Fid. Cath., cap. 3.
[11] Const. dogm. de Fid. Cath. cap. 4.
[12] Ibid.
[13] Strom. lib. 1, c. 20.
[14] Epist. ad Magn.
[15] Bula Apostolici regiminis.
[16] Epist. 143 (al 7) ad Marcellin., n. 7.
[17] Const. dogm. de Fid. Cath., cap. 4.
[18] Epis. ad Magn.
[19] Ibid.
[20] Apologet. §46.
[21] Inst. VII, cap. 7.
[22] De opif. Dei, cap. 21.
[23] Bula Triumphantis, an. 1588.
[24] Ibid.
[25] In 2ª, 2ª, q. 148, a. 4, in fin.
[26] Bula In ordine.
[27] Breve ad fratres. ord. Praedicat. 1451.
[28] Bula Pretiosus.
[29] Bula Mirabilis.
[30] Bula Verbo Dei.
[31] Const. 5ª dat die 3 Aug. 1368 ad Cancell. Univ. Tolos.
[32] Litt. in form. Brer., die 6 Febr. 1694.
[33] Litt. in form. Brer., die 21 Aug. 1752.
[34] Serm. de S. Tom.
[35] Beza Bucerus.
[36] Sixtus V, Bull. cit.
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