31 mar - SEGUNDA-FEIRA DA 4ª SEMANA DA QUARESMA


Introito (Sl 53, 3-4| ib., 5)
Deus, in nómine tuo salvum me fac, et in virtúte tua líbera me... Ó Deus, em vosso Nome, salvai-me, e por vosso poder libertai-me. Ó Deus, ouvi a minha oração; atendei às palavras de minha boca. Sl. Porque estranhos se levantaram contra mim e poderosos querem tirar-me a vida.

Epístola (3 Reis 3, 16-28)
Naqueles dias, apresentaram-se duas mulheres de vida má, perante o rei Salomão. Uma delas assim falou: Dignai-Vos ouvir-me, senhor meu. Eu e esta mulher habitávamos em uma mesma casa, e dei à luz, junto dela, num aposento. Três; dias depois do meu parto, também ela deu à luz. Estávamos juntas e ninguém havia em casa além de nós. O filho desta mulher morreu durante a noite, pois dormindo, ela o sufocara. E levantando-se no silêncio profundo da noite, enquanto dormia esta vossa criada, ela tirou o meu filho, que estava ao meu lado, e colocando-o junto a si, pôs em lugar do meu, o filho dela que morrera. Quando, pela manhã, me levantei para aleitar o meu filho, apareceu-me morto, mas, reparando melhor, quando se fez mais claridade, reconheci que não era o meu, aquele que eu tinha dado à luz. Respondeu-lhe a outra mulher: Não é verdade o que dizes, pois o teu filho é o que está morto, e o meu é o que vive. E a primeira replicava: Mentes, pois é o meu filho que está vivo, e o teu, o que morto está. E desse modo discutiam perante o rei. Então o rei disse: Diz esta: O meu filho vive e o teu está morto. E a outra responde: Não, o teu é que está morto e vive o meu. Por isso, acrescentou o rei: Trazei-me uma espada. E quando trouxeram a espada, disse o rei: Dividi o menino vivo em duas partes, dai metade a uma, e metade à outra mulher, Disse então ao rei a mulher cujo filho estava vivo (porque seu coração se compadeceu de seu filho): Senhor, eu vos suplico, dai-lhe a criança viva; não a mateis. Ao contrário, dizia a outra: Não seja minha, nem tua, porém dividida. Respondeu então o rei: Dai àquela o menino vivo, não o mateis, pois essa é a sua mãe. Ouviu todo o Israel a sábia sentença pela qual o rei julgara; e encheram-se de grande respeito pelo rei, vendo que a sabedoria de Deus nele estava para fazer justiça.

Evangelho (Jo 2, 13-25)
Naquele tempo, estando próxima a Páscoa dos judeus, subiu Jesus a Jerusalém e encontrou no templo (no átrio externo) vendedores de bois, de ovelhas e de pombas, e assentados, cambistas. E tendo feito de cordas um chicote, expulsou a todos do templo, assim como às ovelhas e aos bois, jogando por terra as moedas dos cambistas, e derrubando-lhes as mesas. Aos que vendiam pombas, Ele disse: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai, um mercado. Recordaram-se então os seus discípulos de que está escrito: O zelo por tua casa devorou-me. Responderam pois os judeus, dizendo-lhe: Que sinal nos mostrais de que podeis fazer isto? Respondeu Jesus com estas palavras: Destruí este templo e eu o restabelecerei em três dias. Retrucaram-Lhe os judeus: Quarenta e seis anos foram gastos na edificação deste templo e Tu, em três dias o restabelecerás? Ele falava, entretanto, do templo de seu corpo. Depois que Ele ressurgiu dos mortos, recordaram-se os seus discípulos que Ele dissera isto, e creram na Escritura e nas palavras que Jesus havia pronunciado. Enquanto Ele estava em Jerusalém, nos dias da festa da Páscoa, muitos acreditaram em seu Nome, vendo os milagres que operava. Jesus porém, neles não confiava, porque a todos conhecia e não carecia do testemunho de nenhum homem. Porque sabia, Ele mesmo, o que havia no homem.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 112) - A expulsão dos vendilhões do templo é um ato de purificação que revela a santidade divina exigida no culto a Deus. A casa do Pai não pode ser profanada por interesses terrenos, pois ela é destinada à oração e à comunhão com o Criador. O chicote de cordas simboliza a correção divina que afasta o pecado e restaura a ordem espiritual. Quando Cristo fala do templo de seu corpo, ele aponta para o mistério da Encarnação e da Ressurreição, mostrando que o verdadeiro templo é sua humanidade unida à divindade, que será destruída na cruz e reconstruída na glória. Os discípulos, ao lembrarem-se das Escrituras, percebem que o zelo de Cristo é o mesmo zelo do salmista, um fogo que consome o mal e exalta a justiça. A incredulidade dos judeus reflete a cegueira espiritual que não reconhece o poder de Deus além das coisas materiais. Cristo, conhecendo o coração humano, não se entrega aos que creem apenas por sinais, pois a fé verdadeira exige um coração purificado, não movido por curiosidade ou vantagens temporais.

São Tomás de Aquino - Summa Theologica (III, q. 46, a. 3) - A ação de Cristo ao purificar o templo manifesta sua autoridade divina e seu ofício messiânico como aquele que restabelece a verdadeira adoração a Deus. O templo, enquanto figura da Igreja, deve ser um lugar de santidade, e a expulsão dos vendilhões prefigura a purificação dos pecados que Cristo realiza pela sua Paixão. A menção ao templo de seu corpo é um sinal profético da Ressurreição, pela qual ele demonstra que a morte não tem poder sobre ele, e que a nova aliança será selada em seu sacrifício. O zelo pela casa de Deus, que o consome, é a expressão de sua caridade perfeita, que não tolera a corrupção no culto divino. A incredulidade dos judeus diante do sinal pedido revela a limitação da razão humana que não alcança os mistérios divinos sem a luz da fé. A ciência de Cristo sobre o coração humano sublinha sua divindade, pois só Deus perscruta as profundezas da alma, mostrando que sua missão não depende da aprovação dos homens, mas da vontade do Pai.

Santo Anselmo de Cantuária (Proslogion, cap. 14-16) - A purificação do templo por Cristo é um ato de justiça divina que expulsa a desordem e restaura a harmonia entre o homem e Deus. O templo, como casa de oração, deve refletir a pureza da alma que busca a Deus, e o gesto de Cristo com o chicote é uma advertência contra a profanação do sagrado por interesses terrenos. Quando fala do templo de seu corpo, Cristo revela o mistério de sua natureza divina e humana, indicando que a verdadeira adoração agora se realiza por meio dele, o Verbo encarnado. O zelo que o consome é o amor infinito de Deus que se entrega pela redenção da humanidade. A incapacidade dos judeus de compreenderem o sinal mostra a necessidade da graça para elevar a mente humana aos mistérios celestes. A recusa de Cristo em confiar-se aos homens sublinha que a salvação vem de sua iniciativa divina, não da fragilidade humana, pois ele conhece a fraqueza do coração e a chama à conversão.

IV DOMINGO DA QUARESMA


Introito (Is 66, 10 e 11 | Sl 121, 1) (Áudio)
Lætáre, Jerúsalem: et convéntum fácite, omnes qui dilígitis eam... Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, todos os que a amais, entregai-vos à alegria, vós que estivestes na tristeza, para que exulteis e vos sacieis da abundância de vossa consolação. Sl. Alegrei-me com o que me foi dito: iremos à casa do Senhor.

Epístola (Gal 4, 22-31)
Leitura da Epístola de São Paulo Apóstolo aos Gálatas.Irmãos: Está escrito que Abraão teve dois filhos: um da escrava, e outro da mulher livre. Mas o da escrava nasceu segundo a carne, enquanto o da livre nasceu em virtude da promessa. Isto é dito em sentido alegórico para significar as duas alianças. Uma vem do monte Sinai, gerando para a servidão: e é Agar. Pois Sinai é monte da Arábia que corresponde à Jerusalém atual, a qual é escrava com os seus filhos. Mas [a outra] que é a Jerusalém do alto, é livre e esta é a nossa mãe. Porque está escrito: Alegra-te, ó estéril, que não dás à luz; exulta e clama, tu que não geras, pois são mais numerosos os filhos da abandonada [Sara], que os da que tem marido. Nós, porém, irmãos, somos como Isaac, filhos da promessa. E como então aquele que nascera segundo a carne perseguia o que nascera segundo o espírito, assim também agora. Mas, que diz a Escritura? Expulsa a escrava e o seu filho; porque o filho da escrava não será herdeiro como o filho da livre. Assim também, nós, meus irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre, pela liberdade para a qual o Cristo nos resgatou.

Evangelho (Jo 6, 1-15)
Naquele tempo, passou Jesus à outra margem do mar da Galileia, que é o de Tiberíades, seguindo-O grande multidão, porque via as maravilhas que Ele fazia aos que eram enfermos. Subiu então Jesus ao monte e sentou-se ali com os seus discípulos. Ora, estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus. Erguendo Jesus os olhos e vendo que uma grande multidão vinha a Ele, disse a Filipe: Onde compraremos pães para dar de comer a toda essa gente? Dizia isso, porém, para o experimentar, porque Ele bem sabia o que havia de fazer. Respondeu-Lhe Filipe: Duzentos dinheiros de pão não bastariam para que cada um deles recebesse uma pequena porção. Disse a Jesus um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro: Está aqui um moço que tem cinco pães de cevada e dois peixes; mas que é isto para tanta gente? Disse-lhes Jesus: Fazei assentar os homens. Havia no lugar muita relva. Assentaram-se, pois, os homens, em número de quase cinco mil. Tomou então Jesus os pães, e havendo dado graças, distribuiu-os aos que estavam sentados: e igualmente distribuiu os peixes, quanto eles quiseram. Quando já estavam fartos, disse Ele a seus discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram para que se não percam. Recolheram-nos, pois, e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada, que sobraram aos que comeram. Vendo então aqueles homens o milagre que Jesus fizera, diziam: Este é verdadeiramente o Profeta que deve vir ao mundo. Mas Jesus, sabendo que O viriam buscar à força, para O fazerem rei, afastou-se indo a um monte para estar sozinho.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 130) - A multiplicação dos pães aponta para um mistério mais profundo: o próprio Cristo é o pão vivo que desceu do céu, multiplicado para alimentar a humanidade inteira. O milagre não é apenas um ato de poder sobre a natureza, mas um sinal da abundância divina que excede toda necessidade humana. Os cinco pães representam os cinco livros da Lei de Moisés, que, por si só, não saciam a alma, mas, nas mãos de Cristo, tornam-se suficientes para todos. Os dois peixes simbolizam os Profetas e os Salmos, complementando a Lei e anunciando a vinda do Salvador. A ação de dar graças antes de distribuir revela que toda a criação depende da bênção divina para sua eficácia, e os doze cestos de sobras indicam a plenitude da graça que se estende às doze tribos de Israel e, por extensão, a todas as nações. Este evento prefigura a Eucaristia, onde Cristo se oferece como alimento eterno, saciando não apenas a fome física, mas a espiritual, chamando todos à fé e à unidade no seu corpo místico.

São Tomás de Aquino – Suma Teológica (III, q. 75, a. 1 e Comentário a João 6) - O milagre da multiplicação dos pães demonstra a potência divina de Cristo sobre a matéria, mostrando que Ele é o Senhor da criação, capaz de transformar o pouco em muito pela sua vontade. Este ato não é apenas um prodígio externo, mas um sinal da sua missão de restaurar a humanidade à vida sobrenatural. Os pães e peixes, sendo poucos, indicam a insuficiência dos bens terrenos para satisfazer o homem, enquanto a multiplicação revela que só em Deus se encontra a verdadeira saciedade. A distribuição ordenada aos discípulos aponta para o papel da Igreja na dispensação dos sacramentos, especialmente da Eucaristia, que é o verdadeiro pão multiplicado para a salvação do mundo. As sobras recolhidas significam a superabundância da graça divina, que nunca se esgota e está disponível a todos os que creem. Este evento é uma preparação para o discurso do Pão da Vida, onde Cristo ensina que Ele mesmo é o alimento essencial, unindo os fiéis a Si pela fé e pela caridade.

São Boaventura, Sermão sobre João 6 - A multiplicação dos pães é um mistério de amor e providência divina, revelando a bondade de Cristo que não abandona os seus seguidores na necessidade. O número cinco dos pães simboliza os cinco sentidos do homem, que, quando ordenados por Cristo, conduzem à verdadeira sabedoria espiritual. Os dois peixes representam a dupla natureza de Cristo, divina e humana, que sustenta a Igreja. A relva onde a multidão se senta é a esperança da ressurreição, pois o verde aponta para a vida eterna prometida aos fiéis. A ação de partir e distribuir os pães prefigura o sacrifício da Cruz, onde Cristo se entrega totalmente, e a Eucaristia, onde Ele permanece presente para nutrir a alma. Os doze cestos cheios mostram que a graça divina excede toda expectativa humana, alcançando todas as gerações e povos, e chamando à contemplação do mistério da unidade em Deus.

A Evolução dos Missais Tridentinos e a Luta de Dom Lefebvre pela Tradição


A história do Missale Romanum Tridentino é uma narrativa de continuidade, refinamento e, eventualmente, resistência às mudanças radicais do século XX. Desde sua codificação após o Concílio de Trento até sua última edição antes do Concílio Vaticano II, o missal reflete a riqueza da liturgia latina e os desafios enfrentados por figuras como Dom Marcel Lefebvre, que lutaram para preservar sua essência tradicional. Vamos explorar cada edição principal, suas características e as alterações em relação à anterior, culminando no papel de Lefebvre como defensor dessa herança.

O Missal de 1570: A Fundação do Rito Tridentino

Promulgado em 14 de julho de 1570 por São Pio V, o Missale Romanum ex decreto Sacrosancti Concilii Tridentini restitutum foi a resposta do Concílio de Trento (1545-1563) à necessidade de uniformizar a liturgia latina diante da fragmentação da Reforma Protestante. Baseado em manuscritos romanos medievais, como o da Cúria do século XIII, este missal eliminou variações locais, exceto onde ritos tinham mais de 200 anos de uso contínuo (ex.: ambrosiano, moçárabe).

Estrutura: Incluía o Ordinário da Missa (em latim), o Próprio do Tempo (celebrações do ano litúrgico), o Próprio dos Santos (festas fixas), o Comum dos Santos (textos genéricos para santos) e rubricas detalhadas para o sacerdote. As leituras (epístola e evangelho) eram fixas para cada dia, sem ciclo anual variável.

Características: A Missa era celebrada exclusivamente em latim, com o sacerdote voltado ad orientem (para o altar), e o Cânon Romano era o único ofertório. O calendário litúrgico tinha 149 festas, com muitas vigílias (preparação para festas maiores) e oitavas (extensão de celebrações por oito dias). Textos deuterocanônicos como Daniel 13 (História de Susana) apareciam mais em ofícios monásticos do Breviário do que na Missa.

Inovações: Não havia missal anterior unificado para comparação direta, mas o de 1570 padronizou práticas que variavam amplamente, como o número de orações e gestos. Esse missal tornou-se o pilar da liturgia católica por séculos, com sua estrutura básica mantida nas edições seguintes.

O Missal de 1604: Correções de Clemente VIII

Em 7 de julho de 1604, o Papa Clemente VIII publicou uma revisão do Missal Tridentino, a primeira desde 1570. O objetivo era corrigir erros tipográficos e ajustar detalhes acumulados após 34 anos de uso.

Mudanças em Relação a 1570: Correção de erros de impressão no texto latino, especialmente no Cânon e nas rubricas, que haviam sido copiados manualmente antes da impressão em massa.
Adição de algumas festas menores ao calendário, como a da Expectação da Virgem (18 de dezembro), refletindo devoções emergentes. Pequenos ajustes nas rubricas para maior clareza, como instruções sobre o uso de incenso e a posição das mãos do sacerdote.

Estrutura: Permaneceu idêntica à de 1570, com Ordinário, Próprio do Tempo, Próprio dos Santos e Comum dos Santos. O latim e as leituras fixas foram mantidos. As mudanças foram mínimas, focando na precisão, mas reforçaram a autoridade do rito tridentino como padrão universal.


O Missal de 1634: Refinamento de Urbano VIII

Em 2 de setembro de 1634, Urbano VIII revisou o Missal Tridentino para aprimorar sua consistência e responder a críticas sobre a linguagem e as rubricas.

Mudanças em Relação a 1604: Revisão dos hinos do Breviário (embora isso afete mais o ofício divino, alguns ecoaram no Missal), ajustando o latim para um estilo mais clássico, o que indiretamente influenciou os textos litúrgicos. Ajustes nas rubricas para uniformizar gestos e orações, como a precisão no uso do véu do cálice e na elevação da hóstia. Inclusão de novas festas aprovadas nos 30 anos anteriores, como a de São Carlos Borromeu (canonizado em 1610).

Estrutura: Continuou fiel ao modelo de 1570, com poucas alterações no conteúdo central da Missa. A Semana Santa, por exemplo, manteve seus ritos longos, como o Sábado Santo matinal com 12 profecias. As mudanças foram sutis, mantendo a essência do rito, mas mostrando a preocupação da Igreja em refinar a liturgia sem romper com a tradição.

O Missal de 1888: Atualização de Leão XIII

Em 1888, Leão XIII autorizou uma nova edição típica, refletindo o crescimento do calendário de santos e a necessidade de modernizar a impressão.

Mudanças em Relação a 1634: Adição significativa de festas de santos canonizados nos séculos XVII e XVIII, como São João Nepomuceno e Santa Margarida Maria Alacoque, aumentando o Próprio dos Santos. Revisão tipográfica para facilitar a leitura, com fontes mais claras e melhor organização das rubricas (impressas em vermelho) e textos (em preto). Pequenos ajustes no calendário para evitar sobreposições entre festas e o Tempo Litúrgico, mas sem alterar a estrutura de vigílias e oitavas.

Estrutura: O núcleo do Missal — Ordinário, Próprio do Tempo, Próprio dos Santos e Comum — permaneceu intacto. A liturgia da Quaresma, por exemplo, ainda usava leituras como Jeremias ou Oséias, sem incluir Daniel 13 como padrão. A edição de 1888 foi um refinamento prático, mantendo a tradição tridentina enquanto acomodava a expansão do culto aos santos.

O Missal de 1920: A Reforma de Bento XV

Promulgado em 25 de julho de 1920 por Bento XV, este missal consolidou as reformas litúrgicas iniciadas por São Pio X (1903-1914), que buscava simplificar o calendário e incentivar a participação dos fiéis.

Mudanças em Relação a 1888: Redução de algumas festas menores para priorizar o Tempo Litúrgico (ex.: menos duplicações entre Próprio do Tempo e dos Santos). Incorporação das reformas de Pio X no Breviário (1911), que indiretamente afetaram o Missal, como a reorganização das festas classificadas em duplos, semiduplos e simples. Manutenção de oitavas importantes (ex.: Natal, Páscoa, Pentecostes) e vigílias, como a de Pentecostes, preservando a riqueza da liturgia tradicional. Atualização tipográfica e impressão em massa, com edições como a de Bruges em 1940 refletindo essa versão.

Estrutura: O Ordinário da Missa permaneceu inalterado, com o Cânon Romano fixo. A Semana Santa ainda tinha ritos longos, como o Sábado Santo matinal com 12 profecias e bênçãos elaboradas. O Missal de 1920 representou o auge do rito tridentino antes das reformas do século XX, sendo a base para missais leigos como o de Beda Keckeisen em 1947.

O Missal Quotidiano de Beda Keckeisen (1947): Tradição para os Leigos

Publicado em 1947 pelo Mosteiro de São Bento da Bahia, o Missal Latim-Português de Dom Beda Keckeisen, O.S.B., não é uma edição oficial do Missale Romanum, mas uma adaptação bilíngue para os fiéis baseada no Missal de 1920.

Mudanças em Relação a 1920: Introdução de traduções em português ao lado do latim, tornando o Ordinário, Próprio do Tempo e dos Santos acessíveis aos leigos brasileiros. Inclusão do Próprio do Brasil, com festas locais como Nossa Senhora Aparecida (antes de sua elevação oficial em 1980), adaptando o calendário à realidade nacional. Adição de orações devocionais (ladainhas, preparação para a Missa), ausentes no Missale Romanum oficial, para enriquecer a piedade popular.

Estrutura: Seguia o modelo tridentino de 1920, com ritos pré-1955 (ex.: Sábado Santo matinal com 12 profecias), sem alterações no Cânon ou nas rubricas. Esse missal refletiu o vigor do catolicismo tradicional no Brasil antes do Vaticano II, oferecendo uma ponte entre o clero e os fiéis sem modificar o rito.

O Missal de 1955: As Reformas de Pio XII

Em 16 de novembro de 1955, Pio XII introduziu uma reforma significativa na Semana Santa, com efeitos aplicados a partir de 25 de março de 1956. Essa edição do Missale Romanum foi a primeira a alterar substancialmente os ritos tridentinos.

Mudanças em Relação a 1920/1947: Reforma da Semana Santa: O Sábado Santo foi transferido da manhã para a noite, reduzindo as 12 profecias para 4 e simplificando bênçãos (ex.: fogo novo e círio pascal). A Sexta-feira Santa teve orações condensadas, e o Tríduo Pascal ganhou um tom mais pastoral.
Manutenção do calendário de 1920 fora da Semana Santa, com oitavas como Pentecostes ainda intactas.
Rubricas ajustadas para facilitar a celebração, refletindo um desejo de maior participação dos fiéis, mas sem abandonar o latim ou a estrutura tradicional.

Estrutura: O Ordinário da Missa e o Cânon permaneceram idênticos, mas o Próprio do Tempo (especialmente a Páscoa) foi reformulado. As mudanças dividiram opiniões: alguns viam-nas como um avanço pastoral; outros, como um prenúncio das reformas pós-Vaticano II.

O Missal de 1962: A Última Edição Tridentina

Promulgado em 23 de junho de 1962 por João XXIII, o Missale Romanum de 1962 foi a última edição do rito tridentino antes do Novus Ordo. É a versão associada a Dom Lefebvre e à FSSPX.

Mudanças em Relação a 1955: Inserção de São José no Cânon da Missa, uma mudança histórica aprovada em 8 de novembro de 1962, após séculos de debate teológico. Reclassificação das festas em quatro classes (I, II, III, IV), substituindo os termos duplos, semiduplos e simples, para simplificar o calendário. Eliminação de oitavas menores (ex.: Pentecostes) e vigílias menos significativas, reduzindo a complexidade litúrgica. Incorporação total das reformas da Semana Santa de 1955, agora padrão.


Estrutura: O Ordinário, Próprio do Tempo, Próprio dos Santos e Comum dos Santos foram mantidos, mas com um calendário mais enxuto e rubricas simplificadas. O Missal de 1962 foi um compromisso entre tradição e modernização, sendo a última edição antes da ruptura do Vaticano II.
O Pós-Vaticano II e o Novus Ordo

O Concílio Vaticano II (1962-1965) levou ao Novus Ordo Missae de 1969, promulgado por Paulo VI. Com línguas vernáculas, um ciclo trienal de leituras e uma estrutura simplificada, ele abandonou o rito tridentino, gerando controvérsia entre tradicionalistas.

A Luta de Dom Lefebvre pela Tradição

Dom Marcel Lefebvre (1905-1991), ordenado padre em 1929 e bispo em 1947, tornou-se o principal defensor do rito tridentino após o Vaticano II. Missionário na África e delegado apostólico, ele conheceu o rito em sua forma pré-1955, mas escolheu o Missal de 1962 como o ideal de continuidade litúrgica. Fundando a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) em 1970, Lefebvre rejeitou o Novus Ordo, criticando-o como uma ruptura modernista que comprometia a doutrina e a sacralidade.

Formando sacerdotes para celebrar exclusivamente o Missal de 1962, ele enfrentou oposição da Igreja oficial, culminando em sua excomunhão em 1988 após ordenar bispos sem aprovação papal. Apesar disso, seu legado perdura: o Summorum Pontificum de Bento XVI (2007) reconheceu o valor do rito tridentino, embora o Traditionis Custodes de Francisco (2021) tenha restringido seu uso. Para Lefebvre, preservar o Missal de 1962 era preservar a fé católica em sua integridade, um testemunho de resistência que ecoa até hoje.

29 mar - SÁBADO DA 3ª SEMANA DA QUARESMA


Introito
Salmo 5, 2-3. Verba mea áuribus pércipe, Dómine, intéllege clamórem meum... Escuta as minhas palavras com teus ouvidos, Senhor, compreende o meu clamor: atende à voz da minha oração, meu Rei e meu Deus. Salmo ibid., 4. Porque a ti orarei, Senhor: pela manhã ouvirás a minha voz.

Epístola (Dan.13., 1-9, 15-17, 19-30 et 33-62)
Livro de Daniel. Havia um homem que habitava em Babilônia, chamado Joaquim, e tomou por mulher uma chamada Susana, filha de Helcias, muito formosa e temente a Deus, porque seus pais, sendo justos, tinham ensinado sua filha segundo a lei de Moisés. Era Joaquim muito rico, e tinha um pomar contíguo à sua casa; e os judeus concorriam muito a ela, por ser ele o mais honrado de todos. Foram naquele ano constituídos juízes dois anciãos do povo, dos quais disse o Senhor que a iniquidade saiu de Babilônia dos anciãos juízes, que pareciam reger o povo. Estes frequentavam a casa de Joaquim, e todos os que tinham algum negócio vinham ter com eles. Sucedia que, quando o povo se retirava ao meio-dia, entrava Susana no pomar de seu marido, e passeava. Os dois anciãos, que a viam todos os dias entrar e passear, conceberam uma má paixão por ela, e perverteram o seu coração, desviando os seus olhos para não olharem para o céu, nem se lembrarem dos justos juízos de Deus.
Sucedeu que, estando ela um dia a banhar-se, como fazia nos dias antecedentes, porque fazia muito calor, veio ao pomar só com duas criadas, e quis banhar-se, por causa do calor. Não havia ali ninguém, senão os dois anciãos escondidos, que a espiavam. Disse Susana às criadas: Trazei-me o óleo e os unguentos, e fechai as portas do pomar, para eu me banhar. Elas fizeram como lhes ordenara, e fecharam as portas do pomar, e saíram pelas portas laterais para trazer o que lhes fora mandado, não sabendo que os anciãos estavam escondidos dentro. Logo que as criadas saíram, levantaram-se os dois anciãos, correram para ela, e disseram: Eis que as portas do pomar estão fechadas, ninguém nos vê, e nós estamos apaixonados por ti; consente-nos, pois, e une-te a nós. Se não quiseres, daremos testemunho contra ti, que esteve contigo um mancebo, e que por isso mandaste sair as tuas criadas. Susana, suspirando, disse: Estou em aperto por todos os lados; porque, se eu fizer isto, é-me a morte; e, se o não fizer, não escaparei das vossas mãos. Melhor me é, porém, cair nas vossas mãos sem o fazer, do que pecar na presença do Senhor. E Susana deu um grande grito; mas os anciãos gritaram também contra ela. E correndo um deles, abriu as portas do pomar. Ouvindo os da casa o grito no pomar, entraram à pressa pela porta lateral para ver o que era. E quando os anciãos começaram a falar, os servos ficaram muito confusos, porque nunca se ouvira tal coisa de Susana.
No outro dia, quando o povo se juntou em casa de Joaquim, seu marido, vieram também os dois anciãos cheios de um mau intento contra Susana, para a fazerem morrer. E disseram diante do povo: Mandai chamar Susana, filha de Helcias, mulher de Joaquim. E mandaram-na chamar. Veio ela com seus pais, seus filhos e todos os seus parentes. Era Susana muito delicada e formosa de rosto; e aqueles malvados mandaram que lhe descobrissem o rosto (porque estava coberto), para se fartarem da sua beleza. Choravam os seus e todos os que a viam. Levantando-se os dois anciãos no meio do povo, puseram as mãos sobre a cabeça dela. Ela, chorando, olhou para o céu, porque o seu coração confiava no Senhor. Disseram os anciãos: Estando nós sós a passear no pomar, entrou esta com duas criadas, e fechou as portas do pomar, e despediu as criadas. Veio ter com ela um mancebo que estava escondido, e se deitou com ela. Nós, que estávamos num canto do pomar, vendo esta iniquidade, corremos para eles; e os vimos juntos em pecado, mas não pudemos apanhar o homem, porque era mais forte do que nós, e abrindo as portas fugiu. A esta, porém, apanhamos, e perguntando-lhe quem era o mancebo, não no-lo quis dizer. Disto somos testemunhas. A multidão creu neles, como anciãos e juízes do povo, e a condenaram à morte. Susana deu um grande grito e disse: Ó Deus eterno, que conheces o que está oculto, que sabes todas as coisas antes que aconteçam, tu sabes que estes levantaram contra mim um falso testemunho; e eis que eu morro, sem ter feito nada do que estes maldosamente inventaram contra mim. E o Senhor ouviu a sua voz. E quando ela era levada ao suplício, suscitou Deus o espírito santo num mancebo chamado Daniel, o qual exclamou com grande voz: Eu sou limpo do sangue desta! Voltando-se todo o povo para ele, disse: Que palavra é essa que disseste? Ele, estando no meio deles, disse: Sois vós tão loucos, filhos de Israel, que sem exame nem conhecimento da verdade condenastes uma filha de Israel? Voltai ao lugar do juízo, porque estes deram falso testemunho contra ela. Tornou, pois, todo o povo com grande pressa; e disseram-lhe os anciãos: Vem, senta-te no meio de nós, e dá-nos parte, pois Deus te deu a honra da velhice. Disse-lhes Daniel: Separai-os um do outro, e eu os examinarei. Apartados que foram um do outro, chamou um deles e disse-lhe: Ó tu, que envelheceste em dias de maldade, agora vieram os teus pecados, que antes cometeste, dando sentenças injustas, oprimindo os inocentes e absolvendo os culpados, quando o Senhor diz: Não matarás o inocente e o justo. Agora, pois, se a viste, dize-me: debaixo de que árvore os viste juntos? Respondeu ele: Debaixo de um lentisco. Disse Daniel: Bem mentiste contra a tua cabeça; porque eis que o anjo de Deus, tendo recebido a sentença dele, te partirá pelo meio. E mandando-o sair, ordenou que viesse o outro, e disse-lhe: Ó semente de Canaã, e não de Judá, a formosura te enganou, e a concupiscência perverteu o teu coração; assim fazíeis às filhas de Israel, e elas, por medo, se uniam convosco, mas uma filha de Judá não consentiu na vossa iniquidade. Dize-me, pois, agora: debaixo de que árvore os apanhaste juntos? Respondeu ele: Debaixo de um azinheiro. Disse-lhe Daniel: Também tu mentiste bem contra a tua cabeça; porque o anjo do Senhor está esperando com a espada para te cortar pelo meio, e vos exterminar a ambos. Então toda a multidão deu um grande grito, e bendisse a Deus, que salva os que esperam nele. E levantaram-se contra os dois anciãos (porque Daniel os convencera pela sua própria boca de falso testemunho), e lhes fizeram como eles tinham intentado fazer ao próximo; e segundo a lei de Moisés os mataram; e salvou-se naquele dia o sangue inocente.

Evangelho (João 8:1-11)
Mas Jesus foi para o Monte das Oliveiras. E pela manhã cedo tornou ao templo, e todo o povo vinha ter com ele; e, assentando-se, os ensinava. Ora, os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher que fora apanhada em adultério, e, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi agora mesmo apanhada em adultério. Na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: Aquele de vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire a pedra. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Eles, porém, ouvindo isto, saíram um a um, começando pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio. Então, erguendo-se Jesus, e não vendo a ninguém mais senão à mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? Ela disse: Ninguém, Senhor. E Jesus lhe disse: Nem eu te condeno; vai, e não peques mais.

Homilias

Santo Agostinho – Sermão 13 sobre o Evangelho de João - A cena revela a misericórdia divina que supera a justiça humana. Os acusadores, cheios de hipocrisia, buscam condenar a mulher, mas são eles mesmos condenados por suas consciências ao ouvir as palavras do Salvador. Aquele que escreve no chão não apenas denuncia o pecado inscrito nos corações endurecidos dos fariseus, mas também aponta para a terra como testemunha da fragilidade humana, que Deus, em sua bondade, veio redimir. A mulher, deixada sozinha com Cristo, representa a Igreja, purificada não por méritos próprios, mas pela graça daquele que não condena, mas restaura. O mandamento "não peques mais" é um chamado à conversão, pois o perdão de Deus não é licença para o pecado, mas uma porta para a santidade. Aqui se manifesta o mistério da encarnação: o Verbo, que conhece os segredos dos corações, julga com verdade e salva com amor, mostrando que a Lei, sem a caridade, é morta.

São Tomás de Aquino – Suma Teológica, Secunda Secundae, Q. 34, Art. 1 (sobre o pecado e a misericórdia) - A atitude de Cristo neste evento demonstra a ordenação da justiça à misericórdia, pois Deus, sendo a suma bondade, não deseja a morte do pecador, mas sua conversão e vida. Os fariseus representam a justiça humana, que, sem a luz da graça, torna-se cega e incapaz de julgar retamente, pois todos os homens são pecadores e dependem da misericórdia divina. Escrever no chão simboliza a lei natural inscrita na criação, que condena o pecado, mas também a humildade de Cristo, que se inclina para elevar o caído. A mulher, por sua vez, é figura da alma humana, que, ao encontrar-se com o Salvador, é libertada da pena temporal e eterna, desde que se afaste do mal. A frase "quem não tiver pecado" não nega a autoridade de punir o pecado, mas ensina que tal poder deve ser exercido com caridade e sem soberba, pois o juízo final pertence somente a Deus, que sonda os corações.

São João Crisóstomo – Homilia 86 sobre o Evangelho de João - A sabedoria de Cristo brilha ao desarmar os acusadores com uma única sentença, mostrando que a condenação do próximo é muitas vezes um reflexo da própria culpa. Os fariseus, ao partirem, reconhecem em silêncio que a Lei, mal interpretada, pode se tornar instrumento de morte em vez de vida. A mulher, ao permanecer diante do Salvador, encontra não apenas o perdão, mas a dignidade restaurada, pois o Senhor não a humilha, mas a chama a uma nova existência. Este encontro é um espelho da providência divina: Deus permite que o pecado seja manifesto para que a graça abunde, e a alma, antes escrava da carne, torne-se livre pelo Espírito. O silêncio de Jesus enquanto escreve no chão é um convite à contemplação, pois nele se revela o mistério da paciência divina, que espera o arrependimento do homem para lhe oferecer a salvação.

28 mar - SEXTA-FEIRA DA 3ª SEMANA DA QUARESMA


Comemoração de S. João Capistrano, Confessor

(24 de junho de 1386 – 23 de outubro de 1456) foi um frade franciscano italiano, conhecido por sua vida de intensa espiritualidade e feitos notáveis. Nascido em Capestrano, Abruzzo, ele inicialmente seguiu a carreira jurídica, tornando-se governador de Perúgia, mas, após ser preso durante um conflito político, experimentou uma conversão profunda na prisão, inspirado por São Francisco de Assis. Abandonou sua vida secular, ingressou na Ordem Franciscana em 1416 e dedicou-se à pregação, à reforma da ordem e à defesa da fé cristã. Um de seus maiores feitos foi liderar, aos 70 anos, uma cruzada em 1456 contra os turcos otomanos, contribuindo decisivamente para a vitória na Batalha de Belgrado, que freou a expansão islâmica na Europa. Sua vida espiritual foi marcada por austeridade, devoção ao Nome de Jesus e um ardente zelo apostólico. Uma obra significativa associada a São João de Capistrano é o "Speculum Conscientiae" (Espelho da Consciência), um tratado moral e teológico que reflete sua preocupação com a ortodoxia e a reforma espiritual. Um texto representativo de seu espírito pode ser extraído de suas pregações, como: “Invocai o nome de Jesus. Só nele há salvação!”.

Introito (Sl 85, 17| ib., 1)
Fac mecum, Dómine, signum in bonum... Fazei brilhar em mim, Senhor, um sinal de vossa bondade, para que o vejam os que me odeiam e sejam confundidos: pois Vós, Senhor, sois o meu auxílio e a minha consolação. Sl. Inclinai, Senhor, o vosso ouvido, e escutai-me, porque sou um desvalido e um pobre.

Epístola (Num. 20, 1-3 e 6-13)
Livro dos Números. Naqueles dias, reuniram-se os filhos de Israel contra Moisés e Aarão, e preparando uma revolta, disseram: Dai-nos água para bebermos. Saíram Moisés e Aarão do meio do povo, entraram no tabernáculo da aliança e lançando-se por terra, clamaram ao Senhor e Lhe disseram: Senhor Deus, ouvi o clamor deste povo e abri-lhe o vosso tesouro, a fonte de água viva, para saciá-lo, deixando ele de murmurar. E manifestou-se sobre eles a glória de Deus. E o Senhor falou a Moisés, dizendo: Toma a vara e reúne o povo, tu e Aarão, teu irmão, e fala à pedra, perante eles; e ela produzirá água. Quando da pedra fizeres sair água, beberá todo o povo e também os seus animais. Tomou pois, Moisés, a vara que estava diante do Senhor, como Ele havia ordenado, e reuniu o povo, diante da pedra, dizendo-lhe: Ouvi, rebeldes e incrédulos. Poderemos porventura fazer brotar água dessa pedra para vós? Moisés elevou então a mão e tendo batido duas vezes na pedra com a vara, dela brotou quantidade tão copiosa de água que todo o povo bebeu, assim como os animais. Disse então o Senhor a Moisés e a Aarão: Porque não acreditastes em mim para me glorificar perante os filhos de Israel, vós não fareis entrar este povo na terra que lhes darei. Esta é a água da contradição, em que os filhos de Israel murmuraram contra o Senhor, e na qual Ele foi santificado perante eles.

Evangelho (Jo 4, 5-42)
Naquele tempo, veio Jesus à cidade da Samaria chamada Sicar, junto ao campo que Jacó havia dado a seu filho José. Ali existia o poço de Jacó. Cansado da caminhada, sentou-se Jesus à borda do poço. Era quase a hora de sexta. Vindo uma mulher de Samaria a buscar água, disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. (Seus discípulos tinham ido à cidade para comprar víveres.) Disse-Lhe então a Samaritana: Como Tu, que és judeu, me pedes de beber, a mim, que sou mulher Samaritana? Porque os judeus não se comunicam com os Samaritanos. Jesus lhe respondeu: Se conhecesses o Dom de Deus, e Àquele que te diz: Dá-me de beber, talvez tu Lhe fizesses este mesmo pedido e Ele te daria a água viva [corrente]. Respondeu-Lhe a mulher: Senhor, não tens com que tirar água, e fundo é o poço; de onde tens, pois, água viva? És, porventura, maior que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço e que também dele bebeu, assim como os seus filhos e os seus rebanhos? Respondeu Jesus e lhe disse: Todo aquele que bebe dessa água terá ainda sede, porém aquele que beber da água que eu lhe der, não mais terá sede, porque a água que eu lhe der, nele transformar-se-á em fonte de água viva, que brotará até a eternidade. Disse-Lhe a mulher: Senhor, dá-me também dessa água a fim de que eu não tenha mais sede e não venha mais aqui para buscá-la. Jesus lhe disse: Vai, chama o teu marido e vem aqui. Respondeu a mulher e disse: Não tenho marido. Disse-lhe Jesus: Disseste bem que não tens marido; porque tiveste cinco e aquele com quem vives não é teu marido, isto é verdade. E a mulher respondeu-Lhe: Senhor, vejo que és um Profeta. Nossos país adoraram nesta montanha, e vós dizeis que Jerusalém é o lugar em que se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, acredita em Mim: aproxima-se a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém, adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. A hora virá, porém, ou já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espirito e em verdade. Taís são os adoradores que o Pai procura. Deus é Espírito; e os que O adoram, em espírito e em verdade O devem adorar. Disse-Lhe a mulher: Sei que o Messias, (que é chamado o Cristo) deve vir. Quando Ele vier, nos anunciará todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Sou eu, que te falo. Nesse momento chegaram os seus discípulos e admiraram-se que falasse com uma mulher. Nenhum deles, no entanto, Lhe disse: Que perguntais? ou então: por que falais com ela? Deixando ali a sua ânfora, a mulher partiu para a cidade e disse aos habitantes: Vinde, e vede um homem que me disse tudo quanto eu fiz; não será porventura o Cristo? Saíram eles, pois, da cidade e vieram para junto de Jesus. Seus discípulos, entretanto, O suplicavam, dizendo-Lhe: Mestre, comei. Ele porém, lhes disse: Tenho para comer um alimento que vós não conheceis. Diziam entre si os discípulos: Acaso, ter-Lhe-á alguém trazido alimento ? Jesus lhes disse: Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que me enviou para cumprir a sua obra. Não dizeis: Ainda quatro meses e virá a colheita ? Eis que vos digo: Erguei os vossos olhos e vede os campos que já se tornam maduros para a ceifa. E o que colhe recebe uma recompensa e reúne frutos para a vida eterna, a fim de que o que semeia se alegre tanto quanto o que colhe. Nisto se verifica esta palavra: um é o que semeia, e outro o que colhe. Eu vos enviei a colher onde não trabalhastes; outros trabalharam e vós entrastes nos trabalhos deles. Ora, muitos Samaritanos dessa cidade acreditaram n’Ele, pela palavra da mulher que dava este testemunho: Ele me disse tudo quanto eu fiz. Vindo a Ele, os Samaritanos pediram-Lhe que permanecesse ali. E com eles ficou Jesus dois dias. Em número maior, porém, foram os que acreditaram n’Ele, por suas palavras. E diziam à mulher: Não é mais por causa do que nos disseste que cremos n’Ele; mas porque nós mesmos O ouvimos e sabemos que Ele é, em verdade, o Salvador do mundo.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 104) - A água viva que Cristo oferece é o Espírito Santo, que brota no coração dos fiéis como uma fonte de vida eterna, purificando a alma de todo pecado e inflamando-a com o amor divino. A samaritana representa a Igreja que vem dos gentios, chamada por Cristo para abandonar os falsos cultos e adorar em espírito e verdade, superando as divisões entre judeus e samaritanos. O poço de Jacó simboliza a Lei antiga, que sacia temporariamente, mas não pode dar a plenitude da graça, que só Cristo, o verdadeiro Messias, concede. Os cinco maridos da mulher são as paixões mundanas ou os falsos deuses que ela serviu, enquanto o sexto, que não é seu marido, aponta para a imperfeição da vida carnal que ela ainda leva, até ser plenamente unida a Cristo, o verdadeiro esposo. A colheita de que fala o Senhor é a reunião das almas para a salvação, onde os apóstolos ceifam o que os profetas semearam, mostrando que a obra de Deus transcende o tempo e une todos os povos na fé. A revelação de Cristo como "Eu sou" é a manifestação do Verbo eterno, que se faz conhecer aos humildes e os eleva à comunhão com o Pai.

São Tomás de Aquino (Suma Teológica, II-II, q. 2, a. 9 e Comentário a João 4) - A água viva significa a graça divina, que é dada pelo Espírito Santo e conduz à vida eterna, distinta da água material que apenas sacia o corpo temporariamente. A samaritana, ao pedir essa água, mostra um desejo inicial de fé, mas ainda imperfeito, pois busca bens terrenos; Cristo, porém, a eleva ao conhecimento sobrenatural ao revelar sua vida e sua própria identidade como Messias. A adoração em espírito e verdade é o culto interior da alma, que transcende lugares físicos como o monte ou Jerusalém, pois Deus, sendo espírito, é adorado pela caridade e pela fé, não por ritos externos apenas. Os cinco maridos representam os sentidos corporais, que escravizam a alma ao prazer sensível, enquanto o sexto, que não é marido, é a razão corrompida que não a une a Deus; só Cristo, o sétimo, a liberta e a ordena ao fim último. A colheita pronta indica a disposição das almas para receber a graça, preparada pela pregação dos profetas e consumada pela missão dos apóstolos, que participam da obra redentora de Cristo. A comida do Salvador é a obediência ao Pai, mostrando que sua vontade é a salvação universal, que abrange até os samaritanos, outrora excluídos.

Santo Ambrósio (Tratado sobre o Evangelho de João) - A água viva é o batismo, que lava os pecados e faz brotar a vida da graça, sendo Cristo a fonte inesgotável que sacia a alma sedenta de justiça. A samaritana simboliza a humanidade caída, que, ao encontrar Cristo, abandona o cântaro das obras mortas e corre para anunciar a salvação aos outros. Os cinco maridos são as eras do mundo ou os falsos ídolos que a alma serviu antes de conhecer o verdadeiro Deus, e o sexto é a instabilidade da vida presente, que não a satisfaz plenamente. A adoração em espírito e verdade é a oferta do coração puro, que não se prende a templos materiais, mas se eleva a Deus pela virtude e pela contemplação. A colheita é a Igreja, que reúne os frutos da pregação apostólica, mostrando que Cristo veio para todos, judeus e gentios, unindo-os num só povo santo. O alimento de Cristo é a cruz, pela qual ele cumpre a vontade do Pai e redime o mundo, chamando todos à fé.
São Bernardo de Claraval – (Sermão sobre a Mulher Samaritana) - A mulher samaritana é a alma humana, afastada de Deus pelo pecado e pela ignorância, mas chamada à conversão pelo Salvador que a encontra em sua miséria. A água viva é o amor divino, que purifica e renova, levando a alma a abandonar os falsos prazeres do mundo, representados pelos cinco maridos, e a buscar a união com o verdadeiro Esposo, que é Cristo. O monte e Jerusalém são figuras das disputas vãs sobre a religião externa, enquanto a adoração em espírito e verdade é o coração contrito que se oferece a Deus como sacrifício vivo. O Filho, ao revelar-se como Messias, mostra que a salvação não é apenas uma promessa futura, mas uma realidade presente na sua pessoa, que convida todos à intimidade com o Pai. A comida do Salvador é o zelo pelas almas, um fogo que consome seu coração e o leva a cumprir a obra da redenção, enquanto os discípulos são chamados a participar dessa chama, ceifando o que Ele semeou com seu sangue.

Decadência de uma "Igreja em movimento" que se tornou uma "Igreja em fuga", Arcebispo Héctor Agüer


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No artigo "A decadência da Igreja e o pontificado de Francisco", escrito pelo Arcebispo Héctor Agüer e publicado em 25 de março de 2025 no blog Rorate Caeli o Arcebispo Emérito de La Plata, Argentina, reflete sobre os doze anos do pontificado do Papa Francisco, analisando o que ele percebe como uma decadência na Igreja Católica sob sua liderança. Publicado em Buenos Aires, o texto oferece uma crítica contundente, baseada na perspectiva de um observador argentino, sobre as mudanças promovidas por Francisco e seus impactos na essência e missão da Igreja.

Agüer começa destacando a crise vocacional e a apatia dos fiéis. Ele menciona que os seminários estão praticamente vazios — alguns, como um centenário na Argentina, não receberam nenhum seminarista em 2025 — e que os bispos parecem desconectados da realidade, vivendo "em suas próprias nuvens". O povo, segundo ele, está desorientado, e muitos fiéis anseiam por tempos melhores, enquanto a Igreja parece falhar em cumprir o mandato de Cristo de fazer discípulos de todas as nações.

O autor atribui essa decadência a uma mudança de direção no pontificado de Francisco, que ele vê como uma ruptura com a Tradição da Igreja. Ele critica a ênfase do Papa em um "horizontalismo humanista" alinhado com uma agenda globalista, em vez de uma pregação centrada no conhecimento e amor a Jesus Cristo. Agüer aponta decisões específicas, como a nomeação de bispos progressistas, a promoção de institutos religiosos alinhados com essa visão e a supressão de grupos tradicionais, como o recente caso do Instituto Miles Christi, anunciado em 6 de março de 2025.

O artigo também aborda a teologia de Francisco, que Agüer considera deficiente em vários aspectos. Ele cita as entrevistas do Papa com Eugenio Scalfari, nas quais Francisco teria sugerido que as almas impenitentes "desaparecem" em vez de irem para o inferno, uma visão que desafia a doutrina tradicional sobre a eternidade da condenação. Além disso, o autor critica a rejeição do título de "Co-Redentora" para Maria, argumentando que isso reflete uma Mariologia empobrecida, e a falta de ênfase na centralidade de Cristo.

Outro ponto de destaque é a postura de Francisco sobre a guerra e a paz. Enquanto Agüer reconhece a prudência em condenar a proliferação de armas nucleares, ele argumenta que o Papa ignora a possibilidade de guerras justas, um conceito presente na Tradição da Igreja, optando por uma visão pacifista que não reflete a complexidade moral do tema.

O arcebispo conecta essas críticas à formação jesuíta de Francisco, sugerindo que as oscilações históricas da Companhia de Jesus podem explicar parte de sua abordagem. Ele contrasta o atual pontificado com papas anteriores, como Leão XIII, São Pio X e Pio XI, que se destacaram por preservar a Tradição e combater o modernismo. Para Agüer, Francisco é um "inimigo da Tradição", perseguindo aqueles que a defendem, seja por meio de deslocamentos de bispos conservadores ou da elevação de cardeais alinhados com sua reforma.

Por fim, Agüer lamenta que a "Igreja em movimento" proposta por Francisco, voltada para alcançar os afastados, tenha se tornado uma "Igreja em fuga" de sua própria identidade. Ele ora pela saúde física e espiritual do Papa, mas mantém que suas críticas refletem uma orientação consistente do pontificado, que ele vê como prejudicial à missão evangelizadora e à integridade doutrinal da Igreja.

27 mar - QUINTA-FEIRA DA 3ª SEMANA DA QUARESMA


Comemoração de S. João Damasceno, Confessor e Doutor

Nascido em 675 em Damasco, Síria, foi um monge, sacerdote e teólogo que se destacou como um dos últimos Padres da Igreja Oriental e Doutor da Igreja, proclamado assim em 1890 por Leão XIII. Filho de uma rica família cristã árabe, inicialmente serviu como administrador no califado muçulmano antes de renunciar aos bens terrenos por volta de 700 e ingressar no mosteiro de São Sabas, perto de Jerusalém, onde foi ordenado sacerdote. Dedicou-se à vida ascética, à literatura e à defesa da fé, especialmente contra a iconoclastia, morrendo em 4 de dezembro de 749. Sua vida espiritual foi marcada por uma profunda devoção à Virgem Maria e pela busca da santidade através da oração e do estudo, sendo conhecido como o "São Tomás do Oriente" por sua erudição teológica. Uma de suas obras mais célebres é "A Fonte do Conhecimento" (Fountain of Knowledge), que sistematiza a filosofia e a teologia cristã em três partes: "Capítulos Filosóficos", "Sobre as Heresias" e "Exposição Exata da Fé Ortodoxa". Um texto representativo é: "Não despreze a matéria, pois ela não é desprezível. Nada do que Deus fez é desprezível" (Contra imaginum calumniatores, I, 16).

Introito (-| Sl 77, 1)
Salus pópuli ego sum, dicit Dóminus... Eu sou a salvação do povo, diz o Senhor; quando por mim em qualquer tribulação clamarem, eu os ouvirei; e serei perpetuamente o seu Senhor. Sl. Povo meu, escuta a minha lei: inclina os teus ouvidos às palavras de minha boca.

Epístola (Jr 7, 1-7)
Profeta Jeremias. Naqueles dias, a palavra do Senhor me foi assim dirigida: Fica de pé, à porta da casa do Senhor e ali prega estas palavras: Ouvi a palavra do Senhor, vós todos de Judá, que penetrais por estas portas, para adorar o Senhor. Eis o que diz o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel: Endireitarei os vossos caminhos e as vossas inclinações e habitarei convosco neste lugar. Não confieis em palavras enganadoras, dizendo: Eis o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor. Porque se orientardes bem os vossos caminhos e as vossas inclinações, se fizerdes justiça entre o homem e seu próximo se ao estrangeiro, ao órfão e à viúva não levantardes calúnia, nem derramardes o sangue do inocente neste lugar, se junto a deuses estranhos não caminhardes para a vossa infelicidade, eu habitarei convosco neste lugar, na terra que concedi a vossos pais, por todos os tempos, diz o Senhor onipotente.

Evangelho (Lc 4, 38-44)
Naquele tempo, saindo Jesus da sinagoga, entrou em casa de Simão. Ora, a sogra de Simão tinha uma forte febre e houve quem intercedesse a Jesus por ela. De pé, ao seu lado, ordenou Jesus à febre e esta a deixou. E levantando-se logo, ela os servia. Quando o sol estava no ocaso, todos os que tinham enfermos de várias doenças traziam-nos a Jesus. E Ele, impondo as mãos sobre cada um, curava-os. Saíam também os demônios de muitos deles, clamando e dizendo Vós sois o Filho de Deus. Ele os ameaçava, entretanto, para que não dissessem que sabiam que Ele era o Cristo. Quando se fez dia, Jesus saiu e foi para um lugar deserto. E as multidões O procuravam e foram até Ele; e queriam retê-Lo, com medo que os deixasse. Ele porém lhes disse: É preciso que eu vá a outras cidades anunciar o Reino de Deus: porque para isso fui enviado. E assim pregava nas sinagogas da Galileia.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 77) - A cura da sogra de Pedro revela a prontidão divina em aliviar os sofrimentos humanos, mas não se limita a um ato físico; é um sinal da restauração da alma. A febre simboliza as paixões desordenadas que consomem o homem interior, e a repreensão de Cristo é o poder da graça que as subjuga. Quando a mulher se levanta para servir, demonstra-se que a verdadeira saúde espiritual conduz ao serviço, pois a alma curada não permanece ociosa, mas se volta para a caridade. A imposição das mãos sobre os enfermos ensina que a misericórdia divina é pessoal e direta, tocando cada um em sua necessidade particular. Os demônios que reconhecem o Filho de Deus são silenciados, pois a verdade de Cristo não depende de testemunhos impuros, mas da revelação ordenada pelo próprio Deus. A retirada de Jesus ao deserto mostra que a contemplação é o fundamento da missão, pois sem a união com Deus na solidão, o anúncio do Reino perde sua força. Ele prega em outras cidades porque a salvação não é privilégio de poucos, mas um dom universal, destinado a todos os povos.

São Tomás de Aquino (Suma Teológica, Suplemento, Q. 29, Art. 1) - A cura da sogra de Simão por Cristo é um ato que manifesta a virtude divina, pois só Deus tem poder sobre a natureza para ordenar a doença a cessar imediatamente. Este milagre não é apenas um benefício corporal, mas um sinal da redenção espiritual, pois a febre representa o calor do pecado que afasta o homem da ordem divina. A mulher que se levanta para servir exemplifica a alma elevada pela graça, que, liberta do peso do mal, se ordena ao bem através da caridade ativa. A cura dos enfermos com a imposição das mãos indica que Cristo, como mediador, transmite a virtude divina aos homens, restaurando-os à harmonia com Deus. Os demônios silenciados revelam a autoridade de Cristo sobre as potências espirituais, mostrando que o conhecimento da sua divindade, mesmo por seres malignos, está subordinado à sua vontade soberana. A saída ao deserto e o anúncio do Reino às outras cidades demonstram que a missão de Cristo é ordenada pelo Pai, sendo a pregação um ato de obediência que visa a salvação universal, unindo os homens à beatitude eterna.

Santo Ambrósio (Comentário ao Evangelho de Lucas, Livro 4) - A cura da sogra de Pedro é um mistério da misericórdia divina que se inclina sobre a fraqueza humana, pois Cristo, ao repreender a febre, restaura não apenas o corpo, mas a dignidade da alma para o serviço do Reino. O levantar-se imediato da mulher aponta para a prontidão da graça, que não admite demora na resposta ao chamado divino. A multidão que traz os enfermos ao entardecer simboliza a humanidade que, nas trevas do pecado, busca a luz de Cristo, e a imposição das mãos é o toque do Salvador que renova a criação decaída. Os demônios que proclamam sua divindade são calados porque a revelação do mistério de Cristo deve vir da pureza da fé, não da astúcia maligna. A retirada ao deserto ensina que a oração é o sustento da missão, e a pregação em outras cidades mostra que o Evangelho é um fogo que deve se espalhar, consumindo o erro e iluminando os corações para a verdade eterna.

Sobre a Revolução Litúrgica e as Reformas da Semana Santa de Pio XII, por Dom Viganò


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Publicado no site do Seminário São José, o texto original é uma transcrição de uma palestra do Arcebispo Carlo Maria Viganò, proferida em 27 de outubro de 2023, na qual ele analisa criticamente as reformas litúrgicas da Semana Santa implementadas durante o pontificado de Pio XII, entre 1951 e 1956, e as contextualiza como parte de um processo mais amplo de transformação litúrgica que culminou no Concílio Vaticano II e na Missa de Paulo VI (Novus Ordo).

O Arcebispo Viganò inicia enfatizando que sua análise não visa atacar a pessoa de Pio XII, mas examinar os eventos de seu pontificado com uma perspectiva histórica e teológica crítica, especialmente à luz das consequências posteriores. Viganò sugere que essas reformas, embora promulgadas por um papa legítimo, representaram um ponto de inflexão que abriu caminho para mudanças mais radicais, como as do Vaticano II.

As reformas litúrgicas da Semana Santa começaram experimentalmente em 1951, com a revisão da Vigília Pascal, e foram concluídas em 1956 com a promulgação do Ordo Hebdomadae Sanctae Instauratus. Essas mudanças foram impulsionadas por uma comissão liderada por figuras como Annibale Bugnini, Carlo Braga e Ferdinando Antonelli, que Viganò identifica como protagonistas de uma agenda modernista.
 
A Vigília Pascal, tradicionalmente celebrada na manhã do Sábado Santo, foi transferida para a noite, supostamente para restaurar uma prática antiga, mas Viganò questiona a necessidade e os fundamentos históricos dessa decisão.
 
Ritos tradicionais foram simplificados ou alterados, como a redução das leituras e a introdução de elementos como o uso do vernáculo e a participação ativa dos fiéis, que romperam com a sacralidade e o simbolismo da liturgia anterior.

Viganò cita declarações dos reformadores, como Bugnini, que descreveu a reforma como "um aríete que penetrou na fortaleza da liturgia estática", e Antonelli, que a viu como "o ato mais importante na história da liturgia desde São Pio V". Essas afirmações revelam, segundo ele, uma intenção revolucionária.

Viganò argumenta que a liturgia tradicional, codificada por São Pio V após o Concílio de Trento, era um reflexo da Tradição viva da Igreja, enraizada em séculos de prática e simbolismo. Ele rejeita a ideia de que a Tradição fosse um obstáculo ao progresso litúrgico, como sugeriram os reformadores, afirmando que ela é, na verdade, o fundamento da liturgia. Para ele, as reformas de Pio XII introduziram uma mentalidade racionalista e experimental, típica do Movimento Litúrgico, que priorizou a adaptação às sensibilidades modernas em detrimento da continuidade orgânica.

Embora reconheça a ortodoxia doutrinária de Pio XII, Viganò aponta que o papa foi influenciado por assessores modernistas, como Bugnini e Augustin Bea, que exploraram sua confiança e fragilidade física nos últimos anos de seu pontificado (ele sofreu uma doença grave entre 1954 e 1955). Ele sugere que Pio XII, apesar de suas boas intenções, não percebeu plenamente as implicações das reformas, que serviram como uma "ponte" para o Novus Ordo. Viganò critica a falta de resistência de Pio XII aos modernistas, contrastando-o com São Pio X, que combateu vigorosamente tais tendências.

O arcebispo vê as reformas da Semana Santa como um prelúdio direto às mudanças do Concílio Vaticano II. Ele destaca que os mesmos princípios — participação ativa, simplificação, uso do vernáculo e adaptação ao "homem moderno" — foram ampliados na Sacrosanctum Concilium e na Missa de Paulo VI. Para Viganò, a reforma de Pio XII foi um "cavalo de Troia" que permitiu a infiltração de ideias revolucionárias na Igreja, culminando na perda da centralidade do sacrifício propiciatório da Missa em favor de uma visão comunitária e ecumênica.

Viganò argumenta que as reformas comprometeram a lex orandi (lei da oração), que deve refletir a lex credendi (lei da fé). Ele cita exemplos como a supressão de orações tradicionais (e.g., as preces pelos judeus na Sexta-feira Santa) e a introdução de práticas como a Comunhão na mão, que teriam enfraquecido a reverência e a doutrina eucarística. Ele também critica a "pastoralidade" como pretexto para mudanças que, na prática, diluíram o caráter sagrado da liturgia.

Nos últimos parágrafos, Viganò conclui que as reformas da Semana Santa de Pio XII, embora válidas em termos de autoridade papal, foram um erro histórico que abriu as portas para a crise litúrgica moderna. Ele exorta os católicos a rejeitar essas mudanças e retornar à liturgia tradicional pré-1955, que ele considera mais fiel à fé católica. Reconhecendo a dificuldade de questionar um ato papal, ele invoca a epikeia (princípio de equidade) e a cessação da lei em circunstâncias prejudiciais ao bem comum, argumentando que os frutos negativos das reformas justificam essa postura.

26 mar - QUARTA-FEIRA DA 3ª SEMANA DA QUARESMA


Introito (Sl 30, 7-8 | ib., 2)
Ego autem in Dómino sperábo... Espero em Vós, Senhor: exulto e me regozijo por vossa misericórdia, porque Vós olhastes para minha miséria. Sl. Senhor, em Vós espero: não serei confundido para sempre; por vossa justiça, livrai-me e salvai-me.

Epístola (Ex 20, 12-24)
Livro do Êxodo. Assim disse o Senhor Deus: Honra a teu pai e a tua mãe a fim de que vivas muito tempo sobre a terra, que o Senhor, teu Deus, te concederá. Não matarás. Não cometerás adultério. Não farás furtos. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo. Não desejarás a casa de teu próximo, nem cobiçarás a sua mulher, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença. Ora, todo o povo viu os trovões, os raios e o som da trombeta e o cume da montanha fumegando; amedrontados e possuídos de pavor, pararam ao longe, dizendo a Moisés: Fala-nos e nós te ouviremos: mas não nos fale o Senhor para que não pereçamos. E Moisés disse ao povo: Não temais, porque para vos provar veio Deus, e para que seu temor em vós esteja, e não pequeis. Continuou pois, o povo, à distância. E aproximou-se Moisés da nuvem na qual Deus se achava. Disse ainda o Senhor a Moisés: Dize isto aos filhos de Israel: Vistes que do céu eu Vos falei. Não fareis deuses de prata, nem deuses de ouro, para vós. Construireis para mim um altar de terra, e sobre ele oferecereis vossos holocaustos e hóstias de pacificação, as vossas ovelhas e os vossos bois, em todos os lugares em que se fizer memória de meu Nome.

Evangelho (Mt 15, 1-20)
Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus, escribas e fariseus de Jerusalém, perguntando: Por que os teus discípulos transgridem a tradição dos antepassados? Vê que eles não lavam as suas mãos, quando comem o pão. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: E vós, por que violais a lei de Deus por causa de vossa tradição? Porquanto Deus disse: Honra a teu pai e a tua mãe. E ainda: Aquele que amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe sofra castigo de morte. No entanto vós dizeis: Aquele que disser a seu pai ou a sua mãe: Toda oferenda que eu faço do meu te aproveitará, poderá deixar de honrar a seu pai ou a sua mãe; e assim o manda mento foi anulado por vós, por causa de vossa tradição. Hipócritas! Acertadamente profetizou Isaías sobre vós, quando disse-. Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração longe se acha de mim. Prestam-me um culto inútil, ensinando doutrinas e preceitos humanos. E tendo reunido as multidões, disse-lhes: Ouvi e compreendei: Não é o que entra na boca o que mancha o homem. Então, aproximaram-se os seus discípulos, dizendo: Sabeis que os fariseus, ouvindo estas palavras, ficaram escandalizados? Ele porém respondeu: Toda planta que não foi plantada por meu Pai celeste será arrancada pela raiz. Deixai-os; são cegos que conduzem cegos. Ora, se um cego conduz outro cego, ambos cairão no abismo. Respondendo, disse-Lhe Pedro: Explicai-nos esta parábola. E Ele disse: Também vós sois sem inteligência? Não compreendeis que tudo quanto entra na boca vai ao ventre e é expelido? Mas o que sai pela boca parte do coração é isso é o que mancha o homem; porque é do coração que saem os maus pensamentos: os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos e as blasfêmias. Estas são as coisas que mancham o homem. No entanto, comer sem lavar as mãos não mancha o homem.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 179) - A verdadeira pureza não reside nos gestos externos, mas na disposição interior da alma. Os fariseus se apegam a rituais como se estes fossem a essência da justiça, mas esquecem que a verdadeira contaminação vem do coração, onde se originam as intenções más. A lei de Deus não foi dada para ser um jugo de aparências, mas para ordenar o amor, que é o fundamento de toda a criação. Quando o homem honra tradições humanas acima dos mandamentos divinos, ele inverte a ordem estabelecida por Deus, colocando o criado acima do Criador. A boca fala o que o coração contém, e assim a impureza não é o que se ingere, mas o que se cultiva no interior: a cobiça, a inveja, o ódio. Cristo, ao ensinar isso, revela que a salvação não vem da obediência cega a regras, mas da transformação do coração pelo amor e pela graça. Os guias cegos são aqueles que, presos à letra, perdem o espírito da lei, e arrastam outros à ruína. A multidão é chamada a ouvir e entender, porque a verdadeira sabedoria é reconhecer que Deus sonda os corações, não as mãos lavadas.

São Tomás de Aquino (Suma Teológica, II-II, Q. 47, Art. 11) - A prudência, virtude suprema da razão prática, é o que falta aos fariseus que acusam os discípulos de Cristo. Eles julgam segundo a aparência externa, sem considerar a ordem da caridade que a lei divina prescreve. A pureza ritual que defendem é um bem secundário, subordinado ao bem maior da justiça e da misericórdia, que procedem do coração reto. O erro deles está em elevar a tradição humana ao nível do preceito divino, o que é uma inversão da hierarquia moral. Cristo, ao corrigir essa visão, mostra que os atos exteriores têm valor apenas enquanto expressão da intenção interior, pois o homem é um composto de corpo e alma, e a alma é a raiz de sua dignidade. Os males que profanam o homem – como a ira e a falsidade – nascem da vontade desordenada, não do corpo em si. Assim, a verdadeira religião é aquela que purifica a alma pelo alinhamento com a vontade de Deus, não aquela que se detém em práticas materiais sem propósito espiritual. Os cegos que guiam outros cegos simbolizam os mestres que, sem a luz da razão iluminada pela fé, conduzem o povo ao erro.

Santo Hilário de Poitiers, Comentário sobre Mateus - A controvérsia entre Cristo e os fariseus revela a fraqueza da compreensão humana diante da verdade divina. Os fariseus, ao insistirem na purificação das mãos, mostram que desconhecem a verdadeira fonte da santidade, que é a alma purificada pela presença de Deus. Cristo ensina que o coração é o templo onde o Espírito habita, e é dali que brotam tanto a virtude quanto o pecado. A tradição dos homens, quando contraria o mandamento divino, torna-se uma idolatria sutil, pois substitui a vontade de Deus pela vontade humana. A parábola que Pedro pede para ser explicada é um chamado à inteligência espiritual, para que os discípulos vejam além do visível e compreendam que o Reino de Deus não se constrói com rituais vazios, mas com a renovação interior. Os males elencados por Cristo são as obras da carne que guerreiam contra o espírito, e só a graça divina pode vencê-las. Assim, a verdadeira pureza é um dom que vem do alto, não um mérito das mãos humanas.

25 mar - ANUNCIAÇÃO DE NOSSA SENHORA


Introito (Sl 44:13, 15 e 16 | ib., 2)
Vultum tuum deprecabúntur omnes dívites plebis... Todos os ricos do povo com dádivas suplicam o vosso olhar. Virgens que a seguem são conduzidas até o Rei; as suas companheiras são apresentadas ao Rei no meio da alegria e do júbilo. Sl. Exulta o meu coração com alegre canto: ao Rei dedico as minhas obras.

Epístola (Is 7, 10-15)
Profeta Isaías. Naqueles dias, falou o Senhor a Acaz, dizendo-lhe: Pede ao Senhor, teu Deus, que te envie um sinal nas profundezas da terra, ou no mais alto dos céus. Acaz respondeu: Não pedirei tal, nem tentarei o Senhor. Então Isaías disse: Escutai, pois, ó casa de Davi. Porventura não vos basta cansar a paciência dos homens, senão que ainda ousais fatigar a do meu Deus? Por isso Ele mesmo vos dará um sinal. Eis que uma Virgem conceberá e dará à luz um Filho e o seu nome será Emanuel. Ele tomará leite e mel, para que saiba condenar o mal e preferir o bem.

Evangelho (Lc 1, 26-38)
Naquele tempo, foi o Anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um varão que se chamava José, da casa de Davi; e o Nome da Virgem era Maria. Entrando o Anjo onde ela estava, disse-lhe: Ave, cheia de graça; o Senhor é contigo: bendita és tu entre as mulheres. Ouvindo isto, ela se assustou e pensava no que significaria esta saudação. Mas o Anjo lhe disse: Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás em teu seio e darás à luz um Filho, e pôr-Lhe-ás o Nome de Jesus. Ele será grande e será chamado o Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; e reinará eternamente na casa de Jacó e seu Reino não terá fim. Perguntou então Maria ao Anjo: Como se fará isso, se-não conheço varão? Respondeu-lhe o Anjo: O Espirito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso também o Santo que nascer de ti, será chamado Filho de Deus. E eis que Isabel, tua parenta, concebeu um Filho na sua velhice; e este é o sexto mês daquela que é chamada estéril, porque a Deus nada é impossível. Então disse Maria: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a sua palavra.

Homilias

São Bernardo de Claraval – Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Sermão 23 - A Virgem é saudada como cheia de graça porque nela reside a plenitude da divindade, não apenas como um dom passageiro, mas como um estado permanente que a torna a morada eleita de Deus. O anúncio do anjo revela que o Verbo eterno, que estava com Deus desde o princípio, escolheu descer ao seio humano para redimir a criação caída. A humildade de Maria é o fundamento de sua eleição; ela não se exalta, mas se submete, e nisso se manifesta a verdadeira grandeza que atrai o olhar divino. O Filho que ela concebe não é apenas um rei terreno, mas o Rei dos reis, cujo domínio transcende o tempo e o espaço, estabelecendo um reino espiritual que restaura a humanidade à sua dignidade original. O consentimento de Maria é um ato de cooperação com o plano divino, um sim que ecoa através das gerações como o portal da salvação. A sombra do Altíssimo que a cobre é o mistério da encarnação, onde o humano e o divino se encontram sem confusão, um milagre que supera toda compreensão natural e exalta a fé como a luz que guia os corações à verdade.

São Tomás de Aquino – Suma Teológica, Parte III, Questão 30, Artigo 1 - A anunciação é o momento em que a ordem sobrenatural irrompe na criação, pois o anjo, sendo um mensageiro da vontade divina, manifesta a eleição de Maria como o instrumento pelo qual o Verbo se faz carne. A graça que a enche não é apenas um favor transitório, mas uma disposição habitual que a prepara para ser a Mãe de Deus, um estado ontológico que a eleva acima de toda criatura. O Filho que dela nasce é a Segunda Pessoa da Trindade, assumindo a natureza humana sem perder a divina, e assim se estabelece a união hipostática que é o fundamento da redenção. A resposta de Maria, "faça-se em mim", é um ato de virtude perfeita, pois demonstra a obediência da vontade humana à divina, alinhando-se ao fim último da criação, que é a glória de Deus. O Espírito Santo, ao cobri-la com sua sombra, opera um milagre que transcende as leis naturais, pois a concepção virginal não depende da causalidade humana, mas da potência infinita de Deus, que faz o impossível tornar-se real. Este evento é o início da nova aliança, onde a humanidade é elevada à participação na vida divina.

Hugo de São Vítor (De Sacramentis, Livro I, Parte VI, Capítulo 5) - A vinda do anjo à Virgem é o início visível do mistério da encarnação, pelo qual Deus, em sua sabedoria infinita, escolhe descer à condição humana para elevar o homem à divindade. A saudação "cheia de graça" proclama que Maria foi adornada com uma santidade singular, não por seus próprios méritos, mas pela eleição divina que a preparou desde o princípio para ser o tabernáculo do Verbo. Sua perturbação é sinal de uma alma contemplativa, que se volta para dentro de si mesma para discernir o significado profundo das palavras celestiais. O anúncio do nascimento de um rei eterno da casa de Davi revela que o plano de salvação abrange toda a história, unindo o Antigo e o Novo Testamento em um só desígnio de redenção. A concepção pelo Espírito Santo é um mistério que excede a razão humana, mostrando que a geração do Filho de Deus não segue as leis da natureza, mas é um ato de poder divino que santifica a carne assumida. O "faça-se" de Maria é a entrega total de sua vontade à vontade de Deus, tornando-a a primeira entre os redimidos e modelo de toda a Igreja, que deve igualmente submeter-se ao Criador. A referência a Isabel sublinha a harmonia do plano divino, onde os milagres se entrelaçam para preparar o caminho do Salvador, desde o precursor até o Messias. Este evento é a porta pela qual a eternidade entra no tempo, e a humildade da Virgem se torna o fundamento da exaltação de toda a humanidade, chamada a participar da glória do Filho.

24 mar - SEGUNDA-FEIRA DA 3ª SEMANA DA QUARESMA


Comemoração de S. Gabriel, Arcanjo

Introito (Sl 55, 5 | ib., 2)
In Deo laudábo verbum, in Dómino laudábo sermónem... Em Deus me glorio, por causa de sua promessa: no Senhor me glorio por causa de sua palavra. Espero em Deus; não temo; que poderá fazer-me o homem? Sl. Tende piedade de mim, ó Deus, pois o inimigo me calca aos pés e procura oprimir-me, todo o dia.

Epístola (4 Reis 5, 1-15)
Naqueles dias, Naaman, general do exército do rei da Síria, era um homem poderoso e considerado junto de.seu senhor, porque por ele havia o Senhor salvo a Síria. Era um homem forte e rico, porém leproso. Ora, da Síria haviam fugido alguns ladrões, e levaram cativa da terra de Israel, uma menina que foi posta ao serviço da mulher de Naaman. Disse ela à sua senhora: Oxalá o meu senhor fosse ter com o Profeta que está em Samaria; sem dúvida, ele o havia de curar da lepra que tem. Ouvindo isto, Naaman foi procurar o seu senhor e contou-lhe o fato, dizendo: Tal e tal coisa disse a menina da terra de Israel. Respondeu-lhe o rei da Síria: Vai, e mandarei uma carta ao rei de Israel. Ele partiu, pois, e tomou consigo dez talentos de prata, seis mil moedas de ouro e dez roupas de festa; e levou a carta ao rei de Israel. Esta era assim redigida: Quando tiveres recebido esta carta, saberás que eu te mandei o meu servo Naaman, para o curares de sua lepra. Quando o rei de Israel acabou de ler a carta, rasgou as suas vestimentas e disse: Acaso sou eu Deus, que pode tirar ou dar a vida? Por que me enviou ele este homem para eu o curar de sua lepra? Reparai bem e vede que ele procura uma ocasião para me perder. Quando Eliseu, homem de Deus, ouviu falar que o rei de Israel rasgara suas vestes, mandou-lhe dizer: Por que rasgaste tuas vestes? Venha esse homem a mim e saiba que ainda há um profeta em Israel. Veio, pois, Naaman, com os seus cavalos e carros e parou a soleira da casa de Eliseu. E enviou-lhe Eliseu um mensageiro, dizendo-lhe: Vai lavar-te sete vezes no Jordão e o teu corpo ficará são. Irado, retirou-se Naaman, dizendo: Pensei que ele viesse a mim, e de pé, invocasse o Nome do Senhor, seu Deus, e tocasse sua mão no lugar da lepra e assim me curasse. Não serão porventura melhores, Abana e Farfar, rios de Damasco, do que todas as águas de Israel, podendo eu lavar-me ali e ficar são? Ele já se havia voltado e ia retirar-se, indignado, quando os seus servos se aproximaram e lhe falaram: Pai, mesmo que coisas difíceis te dissesse o Profeta, certamente deverias fazê-las; quanto mais que só te disse: Lava-te e ficarás limpo. Desceu, pois, Naaman, e lavou-se sete vezes no Jordão, conforme o ordenara o homem de Deus, e limpa ficou a sua carne como a carne duma criancinha; e curado ficou. Voltando ao homem de Deus, com toda a sua comitiva, veio e apresentou-se diante dele, dizendo-lhe: Verdadeiramente, sei que não há outro Deus em toda a terra, como O que está em Israel.

Evangelho (Lc 4, 23-30)
Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus: Sem dúvida, aplicais a mim este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; as grandes coisas feitas por ti em Cafarnaum, de que ouvimos falar, faze-as aqui em teu país.E acrescentou: Em verdade, eu vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria. Digo-vos, na verdade: havia muitas viúvas no tempo de Elias, em Israel, quando o céu foi fechado durante três anos e seis meses, havendo uma grande fome em toda a terra. E a nenhuma foi Elias enviado, senão a uma viúva de Sarepta, no país de Sidon. E havia muitos leprosos em Jerusalém, no tempo do profeta Eliseu e nenhum deles foi curado, a não ser Naaman, o sírio. Cheios de cólera ficaram todos, na sinagoga, ouvindo estas palavras. E levantando-se, O expulsaram da cidade e O levaram até a beira do monte sobre o qual a sua cidade fora edificada, para dali O lançarem abaixo, Jesus, porém, passou no meio deles, e se afastou.

Homilias

Orígenes: Homilias sobre o Evangelho de Lucas, Homilia 33 - A rejeição de Jesus em Nazaré revela a dureza do coração humano que se fecha à graça divina por causa da familiaridade e do orgulho. Os nazarenos, ao ouvirem que a salvação se estende além de Israel, inflamaram-se de ciúme, pois não suportaram que os gentios fossem favorecidos por Deus em detrimento dos eleitos. Este evento prefigura a Cruz, onde o Salvador seria novamente rejeitado, mas também sua vitória, pois, ao passar pelo meio deles, demonstra que o poder divino transcende a maldade humana. A ira deles é um sinal da resistência à verdade que liberta, enquanto a passagem de Jesus pelo meio da multidão simboliza a Ressurreição, onde a morte não pôde detê-lo. A mensagem é clara: a salvação não se limita a um povo, mas é universal, e isso provoca escândalo aos que se julgam superiores. Assim, o mistério da eleição divina se manifesta: Deus escolhe os humildes e os estrangeiros para confundir os sábios e os arrogantes, chamando todos à conversão.

São Tomás de Aquino: Suma Teológica, Parte III, q. 27, a. 1 - A rejeição de Cristo em sua pátria é um exemplo da incapacidade humana de reconhecer a divindade escondida na humildade. Os nazarenos, presos à visão carnal, não compreenderam que o Filho de Deus, por sua natureza divina, não precisava provar-se com milagres para os convencer, mas veio para ensinar a fé que transcende os sinais. A menção às viúvas e aos leprosos fora de Israel mostra que a graça divina opera segundo a vontade soberana de Deus, não segundo os méritos humanos ou as expectativas terrenas. A ira deles reflete a concupiscência do coração que rejeita a ordem divina quando esta contraria os desejos próprios. A passagem de Jesus pelo meio da multidão é um sinal de sua omnipotência, pois, sendo verdadeiro Deus, nenhuma força humana pode impedi-lo de cumprir sua missão. Este evento ensina que a salvação exige humildade para aceitar os caminhos de Deus, que muitas vezes desafiam a razão natural e os preconceitos terrenos.

23 mar - III DOMINGO DA QUARESMA


Introito (Sl 24, 15-16 | ib., 1-2) (Áudio)
Oculi mei semper ad Dóminum, quia ipse evéllet de láqueo pedes meos... Meus olhos estão sempre no Senhor, pois Ele tirará os meus pés do laço. Olhai para mim, e compadeceis-Vos de mim, porque estou só e pobre. Sl. A Vós, Senhor, elevo a minha alma. Meu Deus, em Vós confio; não serei confundido.

Epístola (Ef 5, 1-9)
São Paulo Apóstolo aos Efésios. Irmãos: Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados; e andai no amor, como Cristo nos amou, e se entregou por nós a Deus como oferenda e sacrifício de suave odor. A imoralidade, porém, e toda impureza ou avareza, nem sequer entre vós se nomeie, como a Santos convém; nem palavras torpes, nem loucas, nem leviandades que não têm cabimento; rendei antes, ações de graças. Porque, ficai sabendo e entendendo bem, que nenhum homem impuro, imoral ou avaro, o que é sujeição a ídolos, tem herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém vos seduza com palavras inúteis; porque, por estas coisas, vem a ira de Deus sobre os filhos rebeldes. Não sejais portanto, seus companheiros. Outrora [no paganismo] éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Andai como filhos da luz. O fruto da luz consiste em toda bondade, justiça e verdade.

Evangelho (Lc 11, 14-28)
Naquele tempo, expulsou Jesus a um demônio, e este era mudo. E tendo lançado fora o demônio, o mudo falou e as multidões admiraram-se. Alguns deles, porém, disseram: É por Belzebu, príncipe dos demônios, que Ele expulsa os demônios. E outros para tentá- Lo, pediam um sinal do céu. Conhecendo, porém, os seus pensamentos, Jesus disse-lhes : Todo reino dividido em si mesmo será destruído e uma casa cairá sobre outra. Se, pois, Satanás está em desacordo em si mesmo, como subsistirá o seu reino? Dizeis que é por Belzebu que expulso os demônios. Ora, se é por Belzebu que expulso os demônios, vossos filhos por quem os expulsam? Por isso eles próprios serão os vossos juízes. Se, entretanto, é pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é evidente que chegou para vós o Reino de Deus. Quando um poderoso, guarda, armado, a entrada de sua casa, em paz está tudo o que possuí. Se sobrevier, porém, outro mais forte do que ele e o vencer, tirar-lhe-á todas as suas armas, em que confiava, e repartirá os seus despojos. Quem não está comigo é contra mim; e quem não recolhe comigo, dispersa. Quando o espírito imundo sai de um homem, anda por lugares secos, buscando repouso. E não o encontrando, diz: Voltarei para minha casa de onde saí. E quando chega e a encontra varrida e ornada, vai e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, aí fazem habitação. E o último estado desse homem torna-se pior do que o primeiro. Quando Ele assim falava, uma mulher, levantando a voz, do meio do povo, disse-Lhe: Bem-aventurado o ventre que Te trouxe e os peitos que sugaste. Ele porém respondeu: Bem-aventurados, antes, aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põe em prática.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 71, sobre Lucas 11) - A libertação do mudo pelo poder divino é um sinal da vitória sobre o reino das trevas, mas a acusação de que tal poder vem do chefe dos demônios revela a cegueira do coração humano que rejeita a luz por amor às sombras. O reino dividido não pode subsistir porque a unidade é própria da verdade, enquanto a divisão é fruto da falsidade; assim, o maligno não age contra si mesmo, mas é o dedo de Deus que rompe as cadeias do silêncio e da opressão. O homem forte armado representa o diabo que mantém a alma cativa, mas Cristo, o mais forte, desarma-o, tomando os despojos que são as almas redimidas para a glória do Pai. O espírito imundo que retorna com piores companheiros mostra que a alma, uma vez liberta, deve ser preenchida pela graça divina, pois o vazio a torna vulnerável à ruína eterna. A bem-aventurança não está apenas na carne que gerou o Salvador, mas na obediência à Palavra, que é a verdadeira maternidade espiritual, unindo todos os fiéis ao Verbo encarnado. A multidão que busca sinais é repreendida, pois a fé verdadeira não depende de prodígios, mas da adesão interior à vontade divina que se manifesta na humildade do Filho de Deus.

São Tomás de Aquino (Suma Teológica, III, q. 41, a. 2; e Comentário a Lucas) - A expulsão do demônio mudo é um ato pelo qual Cristo manifesta a potência divina contra o poder do mal, mostrando que o Reino de Deus não apenas chegou, mas triunfa sobre as forças adversas pela virtude do Espírito Santo, simbolizado pelo "dedo de Deus". O argumento dos acusadores é refutado pela razão: um reino em guerra consigo mesmo perece, e assim o diabo não pode ser a causa da própria destruição; antes, é a autoridade divina que submete todas as coisas à ordem da salvação. O homem forte é o príncipe deste mundo, cuja força reside na escravidão do pecado, mas o mais forte, Cristo, o vence pela cruz, distribuindo os despojos que são os méritos da redenção aos eleitos. O retorno do espírito imundo ensina que a alma, purificada pelo batismo ou pela penitência, deve ser guardada pela prática das virtudes, pois a negligência a expõe a um estado pior que o inicial, sendo a perseverança na graça essencial à beatitude. A bem-aventurança proclamada aos que ouvem e guardam a Palavra exalta a fé ativa, que é a união da vontade humana à vontade divina, superando até mesmo os laços naturais, pois a obediência ao Verbo é o caminho à vida eterna.

22 mar - SÁBADO DA 2ª SEMANA DA QUARESMA


Introito (Sl 18,8 | ib., 2)
Lex Dómini irreprehensíbilis, convértens ánimas... A lei do Senhor é sem falha, e dá força às almas. O testamento do Senhor é fiel e dá sabedoria aos pequenos. Sl. Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos.

Epístola (Gn 27, 6-40)
Livro do Gênesis. Naqueles dias, disse Rebeca a seu filho Jacó: Ouvi teu pai falando a Esaú, teu irmão, e dizendo-lhe: Traze-me a tua caça e prepara-me de que comer e te abençoarei diante do Senhor, antes de morrer. Segue agora, filho meu, o conselho que te vou dar: Vai ao rebanho e traze-me dois dos melhores cabritos para que eu prepare para teu pai um prato de que muito gosta, para que, depois de lho teres apresentado, tendo ele comido, te abençoe antes de morrer. Ao que ele respondeu:, Sabes que Esaú, meu irmão, é um homem peludo e eu não tenho pelos. Se meu pai me tocar e me reconhecer, tenho medo que pense que eu o quis iludir e atraía assim maldição, em vez de bênção. Disse-lhe sua mãe: Caía sobre mim esta maldição, meu filho; atende ao que te aconselho e traze-me o que te pedi. Ele partiu e trouxe a caça, dando-a a sua mãe. Preparou ela o alimento da forma que o pai dele gostava. E pôs em Jacó as melhores vestes de Esaú, as quais ela guardava em sua casa, envolvendo as mãos de Jacó com as peles dos cabritos e cobrindo a parte nua do pescoço. Entregando-lhe o guisado, deu-lhe também os pães que havia cozido. Tendo Jacó levado tudo a Isaac, disse-lhe: Meu pai! E ele respondeu: Ouço. Quem és tu, meu filho? Disse Jacó: Sou teu filho primogênito Esaú. Fiz o que me recomendaste; levanta-te, senta-te e come da minha caça para que tua alma me abençoe. Novamente disse Isaac a seu filho: Como pudeste tão depressa encontrar caça, meu filho? Respondeu ele: Foi vontade de Deus que se apresentasse depressa a mim aquilo que desejava. Disse ainda Isaac: Aproxima-te, meu filho, para que te toque e conheça se és ou não o meu filho Esaú. Chegou-se Jacó ao pai, e Isaac o apalpou, dizendo: Esta voz é em verdade a voz de Jacó, porém as mãos são as de Esaú. E não o reconheceu por causa dos pelos que o cobriam e o tornavam semelhante ao mais velho. Abençoando-o, pois, disse: És tu meu filho Esaú? Respondeu Jacó: Eu sou. Disse o pai: Traze-me, meu filho, os guisados de tua caçada e minha alma te abençoará. Jacó lhos serviu e depois que ele os comeu, apresentou-lhe também vinho. Depois de bebê-lo, disse Isaac: Chega-te a mim e dá-me um ósculo, meu filho. Aproximou-se ele e beijou-o. Sentindo o perfume que suas vestes exalavam, abençoou-o, dizendo: O perfume de meu filho é como o perfume de um campo florido, que foi abençoado pelo Senhor. Deus te conceda o orvalho do céu e a fertilidade da terra, trigo e vinho, em abundância. Sirvam-te as nações, e façam-te honra as tribos. Sê o Senhor de teus irmãos e curvem-se diante de ti os filhos de tua mãe. Maldito seja aquele que te amaldiçoar e cumulado de bênçãos aquele que te abençoar. Mal Isaac acabara de falar, tendo partido Jacó, chegou Esaú, trazendo os guisados que havia preparado com sua caça, para seu pai. E disse-lhe: Levanta-te, meu pai, e come a caçada de teu filho, a fim de que tua alma me abençoe. Disse-lhe Isaac: Quem és tu? Ele respondeu: Sou Esaú, teu filho primogênito. Possuído de profundo espanto, admirou-se Isaac, além do que se pode crer, e disse: Quem é então aquele que me trouxe do que havia caçado, e eu comi de tudo antes que tu chegasses? Eu o abençoei e ele será o bendito. Ouvindo Esaú estas palavras de seu pai, deu um grito de dor, e ficando consternado em extremo, disse: Dá-me também tua bênção, meu pai. E este respondeu: Teu irmão veio enganar-me e recebeu a bênção que era tua. E continuou Esaú: Com justeza lhe foi dado o nome de Jacó: porque esta é a segunda vez que me suplanta: tirou-me antes o direito de primogenitura e agora, nesta segunda vez, roubou a minha bênção. E disse novamente ao pai: Não reservaste, porventura, uma bênção para mim? Respondeu-lhe Isaac: Eu o estabeleci como teu senhor e sujeitei todos os seus irmãos à sua dominação. Assegurei-o na posse do trigo e do vinho. E depois disto, meu filho, que te posso ainda conceder? Replicou-lhe Esaú: Acaso, não tens ao menos uma bênção para mim, meu pai? Suplico-te que também a mim abençoes. E como rompesse em grande pranto, comoveu-se Isaac, e disse-lhe: Na abundância da terra e no orvalho do céu, está a tua bênção.

Evangelho (Lc 15, 11-32)
Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus e aos escribas esta parábola: Um homem tinha dois filhos. E disse o mais novo deles ao pai: Pai, dá-me a parte da herança que me cabe. E este fez a partilha de seus bens. Passados alguns dias, reunindo tudo quanto lhe pertencia, partiu o filho mais jovem para uma terra longínqua e ali dissipou toda a sua herança, vivendo em orgias. Depois de ter perdido tudo, houve naquela região uma grande fome e ele se achou em extrema penúria. Saiu dali, pois, e foi servir em casa de um dos habitantes daquele país. Este o mandou para uma sua vivenda no campo, a guardar porcos. E o jovem desejava saciar sua fome com a comida que era para os porcos, mas ninguém lhe dava. Tendo refletido, disse consigo mesmo: Quantos mercenários existem em casa de meu pai, tendo pão em grande fartura, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, dizendo-lhe: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de chamar-me teu filho; trata-me como a um de teus mercenários. E erguendo-se, foi a seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou, e compadecido, correu a seu encontro, abraçando- o e beijando-o. E disse-lhe o filho: Pai, pequei contro o céu e contra ti. Já não sou digno de chamar-me teu filho. O pai disse então a seus servos: Trazei depressa a veste mais rica e vesti-lha: ponde em seu dedo um anel, e sapatos em seus pés. Trazei depois um vitelo gordo e matai-o. Comamo-lo e façamos festa porque meu filho, que aqui vedes, estava morto e ressuscitou; havia-se perdido e foi encontrado. E começaram a banquetear-se. Quando seu filho mais velho, que estava no campo, voltava à casa, ao se aproximar ouviu músicas. E chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo. E ele lhe disse: Teu irmão regressou, e teu pai mandou matar um vitelo gordo, porque o encontrou com saúde. Indignou-se com isso [o mais velho] e não queria entrar. O pai, saindo então, começou a rogar-lhe que o fizesse. Respondendo, disse ele ao pai: Há tantos anos que te sirvo e nunca transgredi nenhuma ordem tua, e jamais tu me deste um cabrito para me banquetear com meus amigos. Logo, porém, que este teu filho voltou, após ter dissipado sua herança com mulheres, tu ordenaste que matassem um novilho gordo. Então seu pai lhe disser Filho, tu estás sempre comigo, e tudo que me pertence é teu. Era porém justo que fizéssemos festa e nos regozijássemos, porque este teu irmão que estava morto, reviveu; andava perdido, e foi encontrado.

Homilias

Santo Agostinho – Sermão 112A (Sermo 112A, De Parabola Filii Prodigi) - A parábola revela o abismo da miséria humana e a altura da misericórdia divina, pois o filho mais jovem simboliza a alma que, ao buscar a liberdade fora de Deus, cai na escravidão do pecado. Sua partida para uma terra longínqua é o afastamento do coração da presença divina, e a fome que sofre reflete a privação da graça, que só o Pai pode suprir. O retorno não é apenas um ato de arrependimento, mas a restauração da imagem divina no homem, pois o Pai, ao correr ao seu encontro, mostra que a iniciativa da salvação vem de Deus, não do mérito humano. O filho mais velho, por sua vez, representa aqueles que, presos à justiça própria, não compreendem a gratuidade do amor divino, que não se mede por obras, mas por compaixão. A festa é o símbolo do Reino, onde os pecadores reconciliados são elevados acima dos justos que nunca se perderam, ensinando que a misericórdia excede a justiça. Assim, a parábola é um chamado à conversão universal, pois todos, pecadores ou justos, precisam da graça para entrar na alegria do Pai.

São Tomás de Aquino – Suma Teológica, II-II, q. 30, a. 1 (Sobre a Misericórdia) - A parábola expõe a essência da misericórdia divina como um atributo perfeito de Deus, que se inclina para aliviar a miséria humana sem exigir pré-condições. O filho mais jovem, ao dissipar sua herança, representa o pecador que desperdiça os dons naturais e sobrenaturais recebidos na criação e na graça. Sua volta ao Pai não é apenas um movimento físico, mas uma elevação da vontade, guiada pela razão iluminada pela graça, que o leva a reconhecer sua indignidade. O Pai, que o acolhe sem reprovação, manifesta a misericórdia como um ato de liberalidade divina, pois Deus não apenas perdoa, mas restaura plenamente a dignidade perdida, simbolizada pela túnica, o anel e as sandálias. O filho mais velho, ao rejeitar a festa, ilustra a falha da justiça humana que busca méritos próprios, enquanto a misericórdia do Pai transcende tal lógica, oferecendo a salvação como dom gratuito. A parábola, assim, ensina que a beatitude eterna é alcançada não por obras, mas pela participação na bondade divina, que se alegra mais com a conversão do perdido do que com a constância do justo.

21 mar - SEXTA-FEIRA DA 2ª SEMANA DA QUARESMA


Comemoração de S. Bento de Núrsia

nascido por volta de 480 em Núrsia (atual Norcia, Itália) e falecido em 21 de março de 547 no Monte Cassino, é considerado o patriarca do monaquismo ocidental. Fundou a Ordem dos Beneditinos, estabelecendo o mosteiro de Monte Cassino, que se tornou um marco na história religiosa e cultural da Europa. Sua vida foi marcada por uma busca intensa por espiritualidade, começando como eremita em uma caverna em Subiaco, onde desenvolveu uma profunda conexão com Deus. Por volta de 529, escreveu a "Regra de São Bento", um guia para a vida monástica que enfatiza equilíbrio, oração e trabalho ("Ora et Labora"). Uma das obras mais significativas associadas a São Bento é a própria "Regra de São Bento", um texto que reflete sua sabedoria prática e espiritual. Um trecho representativo é: "Antes de tudo, pede-se a Deus com oração insistentíssima que Ele leve a termo as boas obras começadas, para que não tenhamos de nos envergonhar por causa de nossa má conduta". Com razão pode-se chamar S. Bento o salvador da cultura cristã. Foram seus monges que conduziram quase a Europa inteira para a doutrina do Cristianismo.

Introito (Sl 16, 15 | ib. 1)
Ego autem cum iustítia apparébo in conspéctu tuo... Com justiça, comparecerei diante de vossa face; feliz serei quando se manifestar a vossa glória. Sl. Ouvi, Senhor, a justiça da minha causa e atendei à minha súplica.

Epístola (Gen 37, 6-22)
Livro do Gênesis. Naqueles dias, disse José a seus irmãos: Escutai o sonho que tive: Parecia-me que convosco eu ligava feixes, no campo, e que meu feixe se levantava e ficava de pé; enquanto vossos feixes, rodeando o meu, prostravam-se, adorando-o. Responderam seus irmãos: Serás porventura nosso rei? E seremos nós submetidos a teu poder? Estes sonhos e estas conversas alimentavam a inveja e o ódio que dele tinham. Teve ainda [José] outro sonho, que assim contou aos irmãos: Vi, em sonhos, que o sol, a lua e onze estrelas pareciam me adorar! Quando ele narrou este sonho a seu pai e a seus irmãos, seu pai, o repreendeu e lhe disse: Que significará este sonho que tiveste? Será que eu, tua mãe e teus irmãos, nos curvaremos diante de ti na terra? Invejavam-no assim os seus irmãos; porém o pai considerava em silêncio todas estas coisas. Como seus irmãos se achassem em Siquém para fazer pascer os rebanhos de seu pai, disse Israel [Jacó] a José: Teus irmãos levaram as ovelhas a pastar em Siquém; vem e eu te enviarei a eles. Ao que ele respondeu: Estou pronto. E disse-lhe Jacó: Vai e vê se teus irmãos estão bem e também seus rebanhos, e dize-me depois quanto se passa, Tendo sido enviado do vale do Hebron, chega a Siquém. Um homem, encontrando-o a errar pelo campo, perguntou-lhe o que procurava. Ele respondeu: Procuro meus irmãos; indica-me onde pascem suas ovelhas. Esse homem lhe respondeu: Retiraram-se deste lugar e ouvi-os dizer: Vamos a Dotain. Seguiu, pois, José a seus irmãos e os encontrou em Dotain. Quando estes o viram de longe, antes que se aproximasse deles, planejaram matá-lo; e diziam uns aos outros: Vede, aí vem o sonhador; vinde, matemo-lo e joguemo-lo numa velha cisterna. Diremos que um animal feroz o devorou e depois veremos para que serviram seus sonhos. Ouvindo isto, Ruben procurava livrá-lo de suas mãos e dizia-lhes. Não o mateis, nem derrameis seu sangue; jogai-o antes nesta cisterna, que está no deserto, conservando puras as vossas mãos. Ele dizia isto, querendo tirá-lo de suas mãos para o reconduzir a seu pai.

Evangelho (Mt 21, 33-46)
Naquele tempo, disse Jesus às turbas dos judeus e aos príncipes dos sacerdotes esta parábola: Havia um pai de família que plantara uma vinha, rodeando-a de uma sebe; e cavando um lagar, ali construiu uma torre. Alugando-a depois a lavradores, partiu para um país longínquo. Quando se aproximou o tempo da colheita, enviou seus servos aos lavradores para recolherem os frutos da vinha. Os lavradores, porém, agarraram seus servos, bateram num deles, mataram o outro e apedrejaram ainda o terceiro. Ele lhes enviou ainda outros servos em maior número que os primeiros e eles os trataram da mesma forma. Por fim, mandou-lhes seu filho, dizendo: respeitarão o meu filho. Vendo, porém, os lavradores, o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro, vinde, matemo-lo e tomemos sua herança. E agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. Quando vier, pois, o dono da vinha, que fará a esses lavradores? Eles Lhe responderam: Ele fará perecer miseravelmente estes homens maus e alugará sua vinha a outros lavradores que lhe darão frutos, em seu tempo. Disse-lhes Jesus: Já lestes, acaso, nas Escrituras: A pedra que foi desprezada por aqueles que construíam, esta mesma tornou-se a pedra angular? Foi o Senhor quem fez isto, e é coisa admirável a nossos olhos. Por isso digo-vos que o Reino de Deus vos será tirado e será dado a uma nação que produza seus frutos. E aquele que cair sobre esta pedra será feito em pedaços, e aquele sobre quem ela cair, por ela será esmagado. Quando os príncipes dos sacerdotes e fariseus ouviram estas parábolas, compreenderam que Jesus se referia a eles. E procurando prendê-Lo, temeram as as multidões, porque elas O olhavam como a um Profeta.

Homilias

Santo Agostinho (Sermão 87) - A vinha é a Igreja, plantada por Deus com grande cuidado e amor, cercada pela proteção da Lei e da graça divina. Os lavradores representam aqueles a quem foi confiado o povo de Deus, mas que, por ganância e dureza de coração, rejeitaram os mensageiros enviados para corrigir seus caminhos. Os servos espancados e mortos são os profetas, que anunciaram a justiça e foram perseguidos por aqueles que preferiam a iniquidade. O envio do filho é o ápice da paciência divina, pois Deus oferece seu próprio Filho como última esperança de redenção. No entanto, a morte do filho fora da vinha aponta para a crucificação de Cristo fora dos muros de Jerusalém, um ato que revela a profundidade do pecado humano. A pedra rejeitada que se torna angular é o próprio Cristo, cuja ressurreição transforma a rejeição em vitória, estabelecendo um novo povo, a Igreja, que produz frutos de justiça e santidade. Aqueles que tropeçam nessa pedra são os que resistem à graça, enquanto os que são esmagados por ela enfrentam o julgamento final. O Reino de Deus, assim, não é posse de um povo por direito de nascimento, mas é dado àqueles que respondem com fé e obediência.

São Tomás de Aquino (Suma Teológica, III, q. 46, a. 4; Comentário a Mateus) - A parábola revela a providência divina na história da salvação, onde a vinha simboliza o povo eleito, cultivado por Deus com a Lei e os profetas. Os lavradores são os líderes que, por livre-arbítrio, escolheram a injustiça, rejeitando os servos, que são os profetas, e matando o filho, que é Cristo, o Verbo Encarnado. A morte do filho fora da vinha significa que a redenção se estende além dos limites de Israel, alcançando todas as nações. A pedra angular é Cristo, cuja paixão e ressurreição são o fundamento da Igreja, unindo judeus e gentios em um só corpo. A transferência do Reino de Deus aos que produzem frutos indica que a graça divina exige cooperação humana, pois a salvação não é automática, mas depende da disposição para acolher a vontade de Deus. Os que rejeitam essa pedra caem no erro e na condenação, enquanto os que são esmagados por ela sofrem as consequências de sua obstinação no pecado. A parábola ensina, assim, a necessidade da humildade e da vigilância para participar do Reino.

Hugo de São Vítor (De Sacramentis, Livro I, Parte VI) - A vinha é a criação ordenada por Deus, um lugar de beleza e fecundidade, confiado aos homens para que o cultivem em harmonia com a vontade divina. Os lavradores são os pastores da alma humana, chamados a guiar o povo com sabedoria, mas que, por orgulho, se voltaram contra os servos, os profetas, enviados para restaurar a ordem. O filho é a imagem perfeita do Pai, enviado para trazer a paz, mas cuja morte mostra a recusa do coração humano em aceitar a luz da verdade. A pedra rejeitada é o mistério da Encarnação, que, ao ser desprezada, torna-se o alicerce de uma nova criação, onde o Reino de Deus floresce entre aqueles que vivem em caridade e justiça. A parábola é um convite à contemplação do amor divino, que não desiste diante da ingratidão, mas transforma a rejeição em redenção. Os frutos exigidos são as virtudes, e o julgamento dos lavradores aponta para a justiça divina que purifica o mundo, chamando todos à conversão e à participação na vida eterna.